Jacob Boehme (1575-1624), o
Filósofo Teutônico, "Príncipe de todos os Videntes medievais", nasceu
de uma família camponesa de Alt Seidenberg, a cerca de dois quilômetros de
Goerlitz, na Silésia alemã. Embora não recebesse nenhuma educação formal além
de aprender a ler e escrever, ele estava destinado a descobrir o significado
interno da Bíblia e o coração místico da vida espiritual.
Quando menino ele passava longas
horas observando o gado de seus pais a pastar perto da vila. Em meio à solitude
ele teve sua primeira visão. Ele viu um grande recinto cheio de riquezas, que
ele interpretou como sendo os poderes ocultos que ele havia de possuir. Ele fez
um voto de jamais usá-los para propósitos egoístas. Sobre a visão, ele disse:
"Só posso compará-la a uma ressurreição dos mortos". Desde então ele
começou a ler a Bíblia e os escritos de Paracelso numa abordagem esotérica.
Embora fisicamente saudável, ele
não era nem grande nem robusto, e em 1589 seus pais o levaram a um sapateiro
para que ele aprendesse o ofício. Uma vez, estando a cuidar sozinho da loja, um
estranho entrou e perguntou pelo preço de alguns sapatos. Boehme, notando um
olhar extraordinário no estranho, disse não saber dos preços dos sapatos, mas o
estranho, antes do que procurar o sapateiro, disse a Boehme que, embora ele
fosse de baixa estatura, se tornaria grande entre os homens e "causaria
muita admiração no mundo". Advertindo Boehme para que permanecesse fiel ao
seu voto original, o estranho desapareceu tão misteriosamente como havia
surgido.
Em 1599, com vinte e quatro anos,
Boehme tornou-se mestre-sapateiro e casou com uma mulher que o amou e confortou
até a morte. Sua família enfim incluía quatro filhos e duas filhas.
No ano de 1600 Giordano Bruno foi
queimado na fogueira, por ousar ensinar que o universo é infinito e por causa
do seu ataque geral ao dogmatismo Cristão sob todas as formas. O mesmo ano
testemunhou a segunda iluminação de Boehme. Em 1610 ele já tinha tido uma
terceira visão, na qual ele experimentou o esplendor divino de toda a natureza:
"Enquanto estava naquele estado", escreveu ele mais tarde, "meu
espírito via imediatamente através de tudo". 'Aurora', seu primeiro e
maior livro, foi iniciado em 27 de janeiro de 1612 e publicado mais adiante, no
mesmo ano.
Quando Gregorius Richter, o
pastor Luterano local, leu o relato de Boehme sobre "o Rubor da Aurora no
Nascimento do Sol, isto é, a Raiz e Mãe da Filosofia, Astrologia e
Teologia", ele explodiu numa ira indignada. Correndo para o Conselho
Municipal de Goerlitz, ele solicitou que Boehme fosse banido da cidade. Surpreso
e atemorizado, o Conselho cedeu e exilou Boehme, só para envergonhar-se de sua
decisão contra um homem cuja reputação, trabalho e vida religiosa eram
inatacáveis. O Concílio retificou sua ordem no dia seguinte mas só sob a
condição de que Boehme deixasse para sempre de escrever. Logo depois disso Boehme
vendeu sua sapataria em declínio e passou a viajar freqüentemente, como
comerciante, para as grandes cidades da região, incluindo Praga e Dresden. O
impulso interno de compartilhar de sua percepção interior com seus irmãos se
tornou forte demais para poder ser reprimido, e a última década de sua vida viu
a publicação de uma série de obras, incluindo 'Sobre a Verdadeira Resignação',
''A Assinatura de Todas as Coisas', 'Sobre a Regeneração', e o belo diálogo
devocional 'Sobre a Vida Supra-sensorial'.
Richter investiu novamente,
denunciando no púlpito Boehme e diante do próprio. "Seguireis vós",
bradou Riochter, "as palavras de Jesus Cristo" - um carpinteiro -
"ou as palavras de um sapateiro?". Boehme calmamente respondeu:
"Não é o eu que eu sou quem conhece estas coisas, mas Deus as conhece em
mim".
Quando Abraham von Franckenburg
publicou 'O Caminho até Cristo', uma coleção de escritos de Boehme, a fúria de
Richter impôs um novo exílio sobre Boehme. Ele retirou-se para Dresden sem que
lhe fosse permitido despedir-se de sua família. Na mesma época, o Imperador
reuniu um grupo de eminentes teólogos, e Boehme foi convidado a expor e
explicar suas concepções. Sua pureza de alma e expressão modesta comoveram
tanto os membros do concílio que eles expressaram publicamente que havia sido
um privilégio aprender com ele e julgaram-se incompetentes para questionar sua
ortodoxia. Os Doutores Gerhard e Meissner se tornaram seus seguidores.
Vingado pelas melhores mentes
religiosas de sua época, Boehme soube que seu trabalho estava terminado. Ele
previu a hora de sua morte, preparou-se, deixou seus negócios em ordem, e
morreu em 17 de novembro de 1624, dizendo: "E agora rumo ao Paraíso"
- uma declaração oculta de acordo com sua teologia esotérica. Seus inimigos em
Goerlitz impediram seu funeral até que o Conde Hannibal von Drohna os obrigou. A
magnífica cruz colocada em sua tumba foi destruída pelos seus oponentes. Mas
seus seguidores, muitas vezes perseguidos, continuaram a imprimir suas obras e
viram que elas acabaram caindo nas mãos daqueles que apreciavam seu caráter
transcendente e espiritual.
Os escritos de Boehme formam um
todo sinfônico, articulando temas centrais, embelezando-os em muitos níveis de
significado, voltando a eles e fundindo-os em uma visão unificada de Deus, do
Homem e da Natureza. Seus vasto sistema místico e metafísico é expresso em
termos metafóricos, freqüentemente de sua própria lavra, e em uma linguagem
bíblica simbólica.
De acordo com os 'Seis Pontos
Teosóficos' de Boehme, o Sem-raiz eterno, "que existe e também não
existe", se manifesta primordialmente como vontade, "uma falta de
raiz que deve ser considerada como um eterno nada".
"Não é um espírito, mas uma
forma do espírito, como o reflexo em um espelho. Pois a forma de um espírito é
vista no reflexo ou no espelho, e ainda assim não há nada que o olho ou o
espelho vejam; mas é vendo em si mesmo, pois não há nada mais profundo do que
ele.
"Esta vontade primeira,
dirigida para o Sem-raiz, percebe a potencialidade abstrata do espírito como um
véu sobre ele. Quando a vontade volta-se para fora de si mesma, o véu se torna
uma luminosidade informe.
"Pois se a imagem se separa
do espelho, o espelho passa a ser uma clara luminosidade, e sua luminosidade é
um nada; e mesmo assim todas as formas da Natureza estão ocultas ali como um
nada; mas ainda são verdadeiras, embora não em essência".
"E assim", conclui
Boehme, "um é livre do outro, mas o espelho é o verdadeiro continente da
imagem". O Sem-raiz permanece alheio a toda relação com a Natureza numenal,
embora a contenha".
O desejo pristino surge nesta
vontade e produz essências, a base do ser, manifestando-se como o Coração,
"pois é a Palavra da vida, ou sua essencialidade". O movimento em
direção ao Coração, "indo para dentro de si mesmo até o centro da
raiz" é chamado Espírito, "pois ele é aquele que encontra, e desde a
eternidade encontra onde não há nada". Estes três - Vontade, Palavra e
Espírito - são a "santa Tri-unidade de Deus", a Deidade manifesta
contra o Sem-raiz absoluto, e a fonte da natureza.
O poder pelo qual a Natureza
evolui é a Magia. "A Magia é a mãe da eternidade, do ser de todos os
seres", escreveu Boehme em seu 'Seis Pontos Místicos', "pois ela cria
a si mesma, e é entendida no desejo".
Em si ela não é nada mais que uma
vontade, e esta vontade é o grande mistério de todas as maravilhas e segredos,
mas faz vir a ser a si mesma pela imaginação daquele que deseja. É o estado
original da Natureza.
A Verdadeira Magia não é uma
entidade, mas antes o espírito desejoso ou criativo de todos os seres.
É uma matriz sem substância, mas
manifesta a si mesma no ser substancial. A Magia é espírito, e o ser é seu
corpo; mas os dois são um só, e corpo e alma são apenas uma só pessoa. A Magia
é o maior segredo, pois está acima da Natureza e conforma a Natureza à sua
vontade. É o mistério do Ternário, isto é, é a vontade no desejo seguindo em
direção ao coração de Deus.
Os três aspectos da Deidade dão
cada um nascimento aos outros, e a magia é a potência criativa que surge em sua
reciprocidade e que faz com que todas as coisas venham a ser. "Em suma: a
Magia é a atividade do espírito-Vontade". Assim, os aspectos material,
moral e espiritual da existência manifesta têm suas origens na Magia.
A natureza manifesta tem duas
qualidades, chamadas, em seus aspectos éticos, de bem e mal, embora ambos sejam
na realidade a vontade eterna. A qualidade boa leva ao coração da Deidaede, e a
qualidade raivosa afasta da Divindade (Godheit) em direção à diferenciação. Em
seu comentário sobre 'Aurora', Louis Claude de Saint-Martin assinala:
"Pela palavra 'ira' o autor entende o poder eterno em si, separado do
amor, justiça e luz". A ira de Deus, exemplificada em numerosas lendas
Bíblicas, é o poder eterno da vontade invocado e canalizado através das
vontades refletidas dos homens, quando eles se afastaram do amor universal, da
justiça imparcial e da iluminação interna.
A Árvore da Vida é, portanto,
também a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, e "o fruto que cresce da
árvore significa os homens". O homem tem inclinações para o bem e para o
mal. Quando ele é atraído para o mundo da manifestação, o mal predomina; mas
quando ele responde à seiva vitalizante da árvore, o bem o eleva à Deidade, que
é a própria seiva. A maioria da humanidade agora "está meio-morta" e "conhece
apenas em parte", embora a natureza "tenha em todas as épocas guiado
e instruído os homens sábios, santos e inteligentes" que "sempre com
seus escritos e ensinamentos têm sido uma luz para o mundo".
"Quando a alma é acesa ou
iluminada pelo Espírito Santo, então ela triunfa no corpo, como um grande fogo,
que faz o coração e os afetos tremer de alegria".
A Filosofia, a Astrologia e a
Teologia são os três ramos do conhecimento que constituem a Aurora, simbolizada
na Árvore da Vida. A Filosofia trata da vontade divina, da natureza da Deidade,
dos arquétipos de todas as coisaas e das qualidades boa e irada na natureza. A
Astrologia, "de acordo com o espírito e os sentidos, e não de acordo com a
especulação", demonstra os poderes da natureza, dos astros e dos
elementos, e como estes afetam todas as criaturas. A Teologia explica a
natureza do princípio Crístico, como ele constitui um reino em guerra contra o
princípio irado do mundo perecível, e como os homens se tornam habitantes de um
ou de outro reino.
Os mundos espiritual, sideral e
terrestre estão em relações mútuas e são unidos por correlações e
correspondências através do poder deífico que se irradia através das formas ou
matrizes abstratas até os diversos graus de objetividade. Em 'A Assinatura de
Todas as Coisas' Boehme escreve:
"Todo o mundo externo visível, com todos os seus seres, é uma assinatura,
ou figura, no mundo interno espiritual; o que quer que haja internamente, e
qualquer que seja sua operação, terá seu caráter externo conformado do mesmo
modo; como o espírito de cada criatura estabelece e manifesta a forma interna
de seu nascimento através de seu corpo, do mesmo modo o faz o Ser Eterno".
Os seis dias da criação
simbolizam as "seis formas do poder atuante" na natureza, através do
qual o mundo visível vem a expressar a "divina corporalidade pela qual são
gerados todas as coisas e vêm a formar um ser", isto é, o cosmo. Eles têm
seu repouso e síntese no sétimo, que superintende mas jamais anima diretamente
seja a substância divina seja a matéria terrestre. Os seis poderes que ele
emite são "o divino som... pelo qual são manifestas todas as formas".
A Natureza pode ser entendida em
termos de sete propriedades.
Existem especialmente sete formas
na natureza, tanto na natureza eterna como na externa; pois o externo procede
do eterno. Os filósofos antigos deram nomes aos sete planetas de acordo com as
sete formas da natureza. Mas eles, com isso, entenderam outra coisa - não só os
sete astros, mas as propriedades sétuplas na geração de todas as essências.
Saturno representa o
desejo-energia de uma matriz, que nutre-se da vontade livre da eternidade, e
que se torna energia harmoniosamente ordenada, a imagem da eternidade. Esta
condição é representada por Júpiter. Saturno permite ao eterno se manifestar
como essência, e Júpiter significa a potência de sensibilidade. Marte
representa a manifestação do desejo-energia como poder ardente, a origem do
sentimento e ]om isso do sofrimento. Ele também é a origem do desejo-amor e,
portanto, é o princípio que pode aspirar à unidade com o eterno, ou à separação
dele. O Sol simboliza a "luz da natureza" pela qual são contemplados
os outros planetas. Vênus é o começo da corporalidade e dá origem ao desejo
falso ou terrestre. Mercúrio é o símbolo da discriminação, o separador de todo
pensamento e consciência. Quando desperto, é santo e divino, mas pode matar tão
facilmente como pode criar. A Lua é "a essência reunida" da
corporalidade. O artista espiritual sabe como os 'planetas' devem ser reunidos,
as combinações cujas influências são daninhas e aquelas onde se rejubilam
mutuamente e conjugam suas potências em uma exaltação divina.
Talvez o maior ensinamento de
Boehme a respeito da senda espiritual seja seu 'Diálogo sobre a Vida
Supra-sensorial'. Um Discípulo questiona seu Mestre: "Como posso chegar à
vida supra-sensorial?" O Mestre responde:
"Filho, quando puderes te
lançar n'AQUILO, onde residem todas as criaturas, mesmo que só por um momento,
então ouvirás o que Deus fala... Bendito serás doravante se puderes ficar longe
do pensamento em ti mesmo e da vontade pessoal, e puderes parar a roda de tua
imaginação e de teus sentidos... então passarás ao supra-imaginário, e à vida
intelectual, que é um estado de vida acima das imagens, figuras e
sombras".
Então nada poderá fazer mal à
pessoa, pois ela se torna como todas as coisas. Mas "se fores como todas
as coisas, deves esquecer todas as coisas". Desejar uma ou outra coisa é
estabelecer um laço com ela, e este laço separa a pessoa do resto da natureza
ao mesmo tempo que permite à pessoa ser afetada e modificada em sua própria
natureza. O único desejo que leva à vida supra-sensorial é o desejo do Cristo,
o Coração da Deidade, pois nele a pessoa entrega toda a vontade à vontade
original do ser.
Quando o Discípulo pergunta:
"O que é aquilo que devo abandonar?", o Mestre responde que todos os
amores parciais devem ser abandonados em favor do amor de Cristo, pois "no
amor há certa grandeza e amplitude de coração que é inexprimível". Neste
amor "a pessoa não pode ter vontade alguma de amigos espirituais e
relacionamentos, que estão todos enraizados juntos com ela no amor que vem de
cima".
"A virtude do amor é NADA e
TUDO, ou aquele nada visível de onde procedem todas as coisas; seu poder está
em todas as coisas; sua altura é a de Deus; sua grandeza é tão grande como
Deus. Sua virtude é o princípio de todos os princípios; seu poder sustenta os
céus e mantém a terra; sua altura é mais alta do que os mais altos céus; e sua
grandeza é até maior do que a própria manifestação da Divindade na luz gloriosa
da essência divina, sendo infinitamente capaz de manifestações cada vez maiores
em toda a eternidade. O que mais posso dizer? O amor é mais alto do que o mais
alto. Sim, de certa forma é maior do que Deus; embora no sentido maior de
todos, Deus é AMOR, e amor é Deus. Sendo o Amor o princípio mais alto, é a
virtude de todas as virtudes, pois elas derivam dele. Sendo o Amor a maior
majestade, é o poder de todos os poderes, pois a partir dele eles operam
variadamente. E é a raiz mágica e santa, ou o poder espiritual de onde todas as
maravilhas de Deus foram produzidas pelas mãos de seus servos eleitos, em todas
as suas gerações sucessivas. Quem quer que descubra isso, descobre todas as
coisas".
O Discípulo, tendo aprendido que
a sabedoria do mundo é loucura quando comparada à sabedoria divina, pergunta
como a luz da sabedoria inferior deve ser usada. O Mestre responde que "em
tua alma existem duas vontades, uma inferior, para te levar para as coisas
externas e inferiores, e uma vontade superior, que te leva para as coisas
internas e superiores". Estas duas se colocam uma contra a outra no homem
não-regenerado. Similarmente, a alma tem dois olhos, que encontram sua imagem
nos olhos da forma física.
"O olho direito busca em ti
à frente, na eternidade. O olho esquerdo em ti procura atrás, no tempo".
Assim como "devemos aprender
a distinguir bem entre a coisa e aquilo que é só uma imagem sua", devemos
sacrificar a vontade inferior à vontade divina da qual ela é a imagem. Então os
dois olhos podem se fundir numa unidade de visão na qual contemplamos "com
o olho da eternidade as coisas eternas" e "com o olho das coisas
naturais, e ambos contemplando assim as maravilhas de Deus, e com isso
sustentando a vida do veículo externo ou corpo". Nas palavras do
'Evangelho de Mateus', "A luz do corpo é o olho: se portanto tiveres só um
olho, todo o teu corpo ficará cheio de luz".
Tendo instruído seu Discípulo de
que "Tudo está na vontade", o Mestre adverte:
"... quando o corpo
terrestre perece, então a alma deverá ser aprisionada na mesma coisa que tiver
recebido e deixado entrar; e se não deixares entrar a luz de Deus, sendo
privado da luz deste mundo, não poderá senão se encontrar em uma prisão
escura".
A alma iluminada, tanto na morte
como na vida, transcende as condições de lugar e tempo, pois sua luz é a luz
primordial que vela o mistério daquele Sem-raiz que está além da deidade.
A despeito de virulenta oposição,
os ensinamentos deste homem de visão que penetrou no cerne universal do pensamento
Cristão se espalharam rapidamente pela Europa e Inglaterra. Eles indicaram o
caminho em direção a uma percepção da verdade e a uma devoção ao divino que
transcendeu o dogma e a intolerância das igrejas, atravessou as superstições e
embelezamentos da teologia, e abriu o livro da Natureza tríplice onde o Eterno
incessantemente inscreve suas palavras.