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OS
ENSINAMENTOS DE JESUS E A TRADIÇÃO ESOTÉRICA CRISTÃ
O
Reino para a Igreja
Em primeiro
lugar, deve ficar claro que estamos usando o termo ?igreja? com sua conotação
hierárquica usual dentro de nossa tradição e não no seu sentido original.
O termo original grego, eklhsia tinha
o significado de assembléia, da qual participavam igualmente todos os que
estavam reunidos. Nos primórdios do cristianismo, significava a comunidade
fraterna dos seguidores de Jesus, os praticantes de seus ensinamentos. A
comunidade inteira, irmanada pelo ideal fraterno do amor, compartilhava das
tarefas e do poder. Os diferentes ministérios eram exercidos por todos, em
consonância com os dons carismáticos de cada um. Com o passar do tempo, os líderes
das comunidades cristãs começaram a utilizar o termo igreja para retratar a
hierarquia em comando. Foi instituída uma divisão clara entre a hierarquia
clerical, que detinha todo o poder, referida como ?igreja?, e a comunidade
dos fiéis, que devia obedecer às instruções do clero sob o comando de seu
bispo. Dentro desse esquema, as grandes virtudes do leigo passaram a ser
apresentadas como a fé na doutrina e a obediência ao clero, ficando a prática
dos ensinamentos de Jesus em segundo plano. É a essa igreja restrita, hierárquica
e totalitária que nos referimos a seguir.
A importância
do Reino na mensagem de Jesus não podia ser negada pela ortodoxia, mesmo não
sendo realmente entendida. Passemos a palavra aos teólogos para que expressem
sua sincera perplexidade sobre o real significado do conceito que sabem ser
central nos ensinamentos do Salvador e que, ao longo dos quase vinte séculos
da história das igrejas cristãs, vem sendo interpretado de diferentes
maneiras:
?Não
é fácil definir com precisão o que significa realmente a expressão
?reino de Deus?. Ao longo da história da teologia, a interpretação
desta expressão mudou muitas vezes, de acordo com a situação e o espírito
da época. A palavra ?reino? é expressão arcaica que não desperta
nenhuma ressonância em nossa atual experiência da realidade. A expressão
precisa ser retraduzida para poder exprimir seu significado. Por isto, o
problema que diz respeito à mensagem de Jesus sobre o reino é de como
superar a distância hermenêutica[1]
entre o que o reino de Deus significava no ensinamento de Jesus e o que
significa hoje para nós.
Jesus
nunca definiu o reino de Deus com uma linguagem discursiva. Apresentou sua
mensagem do reino em parábolas. As parábolas devem ser vistas como a escolha
por parte de Jesus do mais adequado veículo para a compreensão do reino de
Deus.?[2]
Os autores do
texto acima não esclarecem o significado da expressão, porém, compensam sua
perplexidade com o uso generoso do jargão teológico. Mais adiante, esses
autores sugerem uma interpretação sobre a natureza paradoxal do reino, que
se lhes configura como algo que se inicia no presente, mas que ainda está por
vir:
?Embora
a presença histórica do reino, dentro e através do ministério de Jesus,
seja fortemente afirmada, deve ainda vir a consumação do que agora é apenas
experimentado de maneira antecipatória. Embora Jesus tenha ficado na tradição
dos grandes profetas, sua mensagem é profundamente influenciada pelas
expectativas apocalípticas da época. Apesar disto, não compartilhou do
pessimismo dos escritores apocalípticos no tocante a este mundo, mas
descreveu de maneira realista o poder do mal. Sua mensagem do reino de Deus só
pode ser entendida em seu contraste com o reino do mal, que está em ação
neste mundo, permeando tudo. Jesus entendeu sua missão como a destruição e
derrubada das potências do mal para trazer uma libertação que tende a
acabar com todo o mal e à transformação da criação inteira.?[3]
Esse
tipo de consideração teológica obscura não é restrito aos autores desse
texto. Idéias semelhantes permeiam os escritos da maioria dos teólogos,
fazendo com que, em alguns casos, suas tentativas de explicar a natureza do
reino beirem a incoerência:
?(Jesus)
pregava algo novo: a chegada da plenitude dos tempos, do ?Reino? que
realizava de modo eminente as profecias da Salvação. O ensinamento de Jesus
continha sem dúvida mais que um anúncio, mas estava centrado nessa mensagem,
a da misericórdia divina, que tornava próxima dos homens a salvação
escatológica.[4]
Na pregação sobre o ?mistério do Reino de Deus? (Mc 4:11), ou sobre o
ingresso na ?vida?, revela-se chegada a hora de os homens se defrontarem
com a divina misericórdia. Sim, é verdade que Deus reina desde sempre, sobre
o céu e a terra, sobre Israel e sobre as nações pagãs, mas além disto Ele
prepara um Reino Escatológico, todo feito de consolação exuberante e de
experiência de Seu amor, e é o que Jesus anuncia como aproximado enfim do
homem.?[5]
Num esforço
ingente para transmitir aos seus leitores um conceito que parece não ter
entendido, o autor dessa passagem balança entre o aqui e agora e o futuro
?escatológico?, tateando com o respaldo de citações bíblicas:
?Na
mensagem de Jesus, o ?Reino de Deus?, a salvação escatológica, era algo
que já chegara com sua pessoa e que, tendo embora uma futura manifestação
gloriosa, não estava ligado apenas a essa condição epifânica[6]
e futura. A mensagem de Jesus fora preparada no Antigo Testamento quanto à idéia
de um Reino de Deus iniciado dentro da história. Abrir-se-ia com o Messias,
disseram os Profetas, a nova e eterna Aliança, em que Deus fixaria seu santuário
em Israel, dali estabelecendo seu reinado sobre todos os povos, numa era de
santidade e paz.
O
Reino de Deus, que Jesus proclama, transcende a concepção da felicidade
terrena, erigida sob o signo do triunfo político de Israel. Neste sentido
difere das interpretações comuns dadas aos dias do Messias. Mas também não
se identifica simplesmente com a expectativa do Reino da ressurreição, após
o Juízo Final. De um lado anuncia ele que em dia ainda futuro se perceberá
que o Filho do homem está às portas (Mc 13:32). Mas desde já o Filho do
homem veio à terra, e o advento do Reino de Deus é qualquer coisa ?que não
se deixa observar?, pois está presente entre os homens (Lc 17:20-21)?[7]
Os teólogos
afirmam que existem várias referências aparentes ao fim dos tempos e do
julgamento final nos evangelhos. A descrição dos sinais dos fins dos tempos
é apontada com freqüência como sendo a parábola da figueira, reproduzida
quase sem modificações nos três evangelhos sinóticos.
Aprendei
da figueira esta parábola: quando o seu ramo se torna tenro e as suas folhas
começam a brotar, sabeis que o verão está próximo. Da mesma forma também
vós, quando virdes todas essas coisas, sabei que ele está próximo, às
portas. Em verdade vos digo que esta geração não passará sem que tudo isso
aconteça. Passarão o céu e a terra. Minhas palavras, porém, não passarão.
Daquele dia e da hora, ninguém sabe, nem os anjos dos céus, nem o Filho, mas
só o Pai. (Mt 24:32-36; e passagens semelhantes em Mc 13:28-29; Lc
21:29-31).
Um bom e
dedicado teólogo não poderia se esquecer de garantir um papel para a Igreja
no Reino, ainda que esse último não esteja bem definido[8].
Como já dizia S. Jerônimo, o poder das palavras ressonantes é bem maior do
que se poderia imaginar no mundo, tanto no seu tempo como agora.
?É
o reino ora presente que cria a igreja e a conserva constantemente viva. Por
isto, a igreja é o resultado da vinda do reino de Deus ao mundo. O poder dinâmico
do Espírito, que torna eficazmente presente a intencionalidade salvífica e
final de Deus, é verdadeira causa da comunidade chamada igreja. Embora o
reino não possa ser identificado com a igreja, isto não significa que o
reino não esteja presente nela. Podemos dizer que a igreja é uma realização
?inicial?, ?proléptica? ou antecipada do plano de Deus para a
humanidade. Na expressão do Vaticano II, ?ela se torna na terra o germe
inicial do Reino?. Em segundo lugar, a igreja é um instrumento ou
sacramento, através do qual este projeto de Deus no mundo se realiza na história?.[9]
Um dos
principais responsáveis pelos conceitos materializantes e apocalípticos do
Reino dentre os teólogos foi Agostinho, uma das figuras centrais da
ortodoxia, que escreveu várias obras, sendo que sua ?Cidade de Deus? foi,
desde então, especialmente influente na literatura da Igreja. Agostinho
apresentou o símbolo primordial do pecado, que produziu o mito da queda de Adão
como sendo o pecado original. Foi dele, também, a idéia especulativa de que
a Igreja seria o Reino de Deus, um Reino englobando a totalidade da humanidade
redimida, sendo essa entidade chamada por ele de Cidade de Deus, a cidade dos
santos. Esse Reino de Deus não era necessariamente a Igreja como existia então,
mas como seria no fim dos tempos. Alguns séculos depois, os teólogos da
Idade Média passaram a conceber o Reino de Deus como a Igreja com sua
hierarquia clerical no mundo.[10]
Nem
todos os estudiosos dentro da Igreja compartilham dessas posições confusas
e, de certa forma, inconseqüentes. Aqueles que passam por experiências místicas
geralmente conseguem transcender as limitações do dogmatismo e chegam
intuitivamente ao entendimento do Reino como foi ensinado por Jesus. A citação
a seguir demonstra essa assertiva, com um enfoque que muito se aproxima da
interpretação esotérica a ser apresentada no próximo capítulo:
?Jesus
nunca definiu o reino de Deus. Descreveu o reino com parábolas e similitudes
(Mt 13; Mc 4), com imagens como vida, glória, alegria e luz. Paulo, em Rm
14:17, apresenta uma descrição que está bem próxima de uma definição:
?o Reino de Deus não consiste em comida e bebida, mas é justiça, paz e
alegria no Espírito Santo?.
A
declaração que Jesus faz do reino está, em última análise, enraizada em
sua experiência do Abba (Pai em hebraico). A mensagem do reino foi-lhe
?enviada? durante a oração, por isto, está intimamente ligada e é
determinada por sua experiência pessoal de Deus como Abba. Na experiência de
Jesus, Deus era aquele que vinha com amor incondicional, como aquele que
tomava a iniciativa e entrava na história humana de um modo e em um grau
desconhecido dos profetas. Esta experiência de Deus decidiu toda a sua vida e
formou o autêntico núcleo de sua mensagem do Reino.
Num
determinado momento de sua vida, Jesus deu-se conta de que Jhwh queria
conduzir Israel, e finalmente todos os homens, àquela intimidade com ele que
ele mesmo havia experimentado em seu relacionamento pessoal, que ele chamava
de pai. Isto é expresso muito explicitamente no ?Pai-Nosso?. Nele Jesus
autoriza seus discípulos a imitarem-no, ao dirigirem-se a Deus como Abba.
Agindo assim, fá-los participar de sua comunhão pessoal com Deus. Somente os
que podem pronunciar este Abba com a disposição de uma criança poderão
entrar no reino de Deus?.[11]
Esse apanhado resumido da posição das autoridades eclesiásticas sobre o Reino parece indicar que a maioria dos teólogos permanece confusa e até mesmo perplexa a respeito da natureza do Reino, mas que alguns estudiosos dentro do clero chegaram intuitivamente a um conceito mais elevado. Os místicos, no entanto, nunca tiveram problema para entender o conceito do Reino, pois têm experiência própria do Reino de Deus no seu interior e o refletem em suas vidas.
[1]
Hermenêutica quer dizer interpretação dos textos sagrados.
[2]
R. Latouelle e R. Fisichella (ed.), Dicionário
de Teologia Fundamental (edição conjunta das editoras Vozes e Santuário,
1994), pg. 738-39
[3]
Dicionário de Teologia Fundamental,
op.cit., pg. 740.
[4]
Para os teólogos, ?escatologia? significa a doutrina sobre a consumação
do tempo e da história. O uso desse termo não é muito feliz, tanto em
sua etimologia como em sua conotação teológica, pois, em grego, o
significado primário da palavra (escató + logia) é ?tratado acerca
dos excrementos?, ou ?coprologia?. Em seu sentido teológico, o
termo escatologia é derivado da palavra grega eschaton,
que significa final ou término, daí a doutrina do final dos tempos.
[5]
C.F. Gomes, Riquezas da Mensagem Cristã (R.J.: Lumen Christi, 1981), pg. 347.
[6]
No jargão teológico significa aparição ou manifestação divina.
[7]
Riquezas da Mensagem Cristã,
op.cit., pg. 487-488.
[8] Neste particular, vale o alerta de um místico: ?Os teólogos se esquecem que servem melhor por meio do desabrochar de seus próprios poderes espirituais e não pela expansão e glorificação de suas instituições.? The Mystical Christ, op.cit., pg. 18.
[9] Dicionário de Teologia Fundamental, op.cit., pg. 744
[10] Norman Perrin, Jesus and the Language of the Kingdom (Philadelphia: Fortress Press, 1976), pg. 63.
[11]
Estes três parágrafos, extremamente elucidativos, também citados no Dicionário
de Teologia Fundamental, op.cit., pg. 742, foram escritos por outro
autor, ao que parece H. Schermann (Gottes
Reich, 21-64).
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