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OS
ENSINAMENTOS DE JESUS E A TRADIÇÃO ESOTÉRICA CRISTÃ
Capítulo
18
RENÚNCIA
A renúncia
é parte integral do processo de kenosis
dos antigos místicos, o esvaziamento da personalidade que abre espaço
para que a mente possa ser preenchida com o Espírito, dando nascimento, então,
ao Cristo interior. A essência da renúncia é um estado de espírito que
coloca as coisas do mundo em segundo plano e dá prioridade aos interesses da
alma. Por isso Jesus disse:
?Não
ajunteis para vós tesouros na terra, onde a traça e o caruncho os corroem e
onde os ladrões arrombam e roubam, mas ajuntai para vós tesouros nos céus,
onde nem a traça nem o caruncho corroem e onde os ladrões não arrombam e
roubam; pois onde está o teu tesouro aí estará também teu coração?
(Mt 6:19-21).
O objetivo do
renunciante é morrer para o mundo, abdicando as práticas mundanas da busca
do prazer e do poder. Isso está muito bem sintetizado na brilhante imagem de
Paulo: ?Vós vos desvestistes do homem
velho com as suas práticas e vos revestistes do novo, que se renova para o
conhecimento segundo a imagem do seu Criador? (Cl 3:9-10).
O símbolo
cristão da morte é a cruz. No símbolo do madeiro estão representados dois
pólos, o da dor e o da alegria, pois, a dor da morte, como renúncia ao
mundo, é o pré-requisito para a ressurreição, ou alegria do renascimento.
Por isso foi dito que ?Se o grão de
trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer produzirá
muito fruto? (Jo 12:24). O mesmo ensinamento é apresentado noutra
imagem diretamente relacionada com a vida e a morte: ?Quem
ama sua vida a perde e quem odeia a sua vida neste mundo guarda-la-á para a
vida eterna? (Jo 12:25). O apego egoísta é morte, e o altruísmo é
vida para o discípulo.
Jesus deixa
claro que a renúncia a este mundo é fundamental para se atingir o outro
mundo, o Reino de Deus. Nas parábolas do tesouro escondido e da pérola
preciosa, o homem deve vender tudo o que tem, ou seja, renunciar a tudo, para
adquirir a bem-aventurança celestial, representada pelo tesouro e pela pérola:
?O
Reino dos Céus é semelhante a um tesouro escondido no campo; um homem o acha
e torna a esconder e, na sua alegria, vai, vende tudo o que possui e compra
aquele campo.
O
Reino dos Céus é ainda semelhante a um negociante que anda em busca de pérolas
finas. Ao achar uma pérola de grande valor, vai, vende tudo o que possui e a
compra? (Mt 13:44-46).
Padres da
Igreja Primitiva, como Cassian e Evagrius de Pontus, falam de três tipos de
renúncia e insinuam uma quarta, que deve ocorrer quando a pessoa está próxima
de atingir a Theosis, ou União com
Deus. [1]
A primeira
renúncia é aos bens materiais e às coisas exteriores. Esse é um grande
passo no Caminho, sendo recomendado em quase todas as tradições espirituais.
Os padres e monges lidam com essa renúncia por meio do voto de pobreza. As
pessoas com obrigações de família não precisam literalmente vender ou doar
seus bens para seguir o Mestre, o importante é que haja um real desapego das
coisas materiais. Por isso Jesus disse: ?Qualquer
de vós, que não renunciar a tudo o que possui, não pode ser meu discípulo?
(Lc 14:33). Essa renúncia está relacionada com o tempo presente.
A segunda renúncia
é o abandono das paixões, vícios e fraquezas. É a renúncia ao desejo das
sensações e emoções prazerosas que, com o passar dos anos, condicionam
nossa mente à busca da gratificação dos sentidos. Para os monges, o voto de
castidade é tido como fundamental nesse particular. Devemos renunciar, também,
as nossas rejeições ou aversões, pois elas são sentimentos negativos que
perturbam a alma. Essa modalidade de renúncia está relacionada ao passado,
pois a busca do prazer é movida pelo apego às lembranças passadas.
A terceira
renúncia é ainda mais difícil, pois é o último passo na renúncia ao
mundo de que fala Paulo. Implica em abandonar toda expectativa de prazer,
proteção e conforto das coisas do mundo visível, para que o renunciante
possa ser gratificado e preenchido com as coisas do mundo invisível. Requer
total fé na providência divina, como indicado na parábola dos lírios do
campo (Mt 6:30-34). Essa renúncia está relacionada ao futuro.
Poderíamos
perguntar: tendo renunciado ao presente, ao passado e ao futuro, ao que mais o
homem poderia renunciar? Falta ainda aquilo que ele mais preza e que considera
como parte inalienável de seu ser, o sentimento de ser um eu separado. Quando
ocorre essa renúncia final, normalmente associada à experiência mística
conhecida como a ?noite escura da alma?, segundo os escritos de João da
Cruz,[2]
o homem está pronto para a união com Deus. Quando ocorre, então, a tão
ansiada união, o místico verifica que sacrificou seu pequenino eu para alcançar
a consciência de seu verdadeiro Eu Divino. A extensão e as implicações
dessa renúncia final são tão profundas que somente alguém que passou por
ela pode transmitir alguma idéia dessa experiência. Nas palavras de Meister
Eckhart, um dos maiores místicos da tradição cristã:
?A
renúncia em grau mais elevado ocorre quando, por amor a Deus, o homem se
despede de deus. São Paulo separou-se de deus, por amor a Deus e deixou tudo
o que poderia ter recebido de deus, assim como tudo o que poderia dar --
juntamente com qualquer idéia sobre deus, e Deus permaneceu nele como Deus em
sua própria natureza -- não como é concebido por alguém ou
?representado? -- nem tampouco como algo a ser ainda atingido, mas antes
como ?Seidade? como Deus é realmente. Então, o homem e Deus se tornam um
todo que é pura unidade. Assim, o homem se transforma na pessoa real para
quem não pode haver nenhum sofrimento, como de modo algum o pode haver na essência
divina.?[3]
Para o devoto
que ainda não alcançou esse estado supremo de união com Deus, a renúncia
é um estado de consciência caracterizado pelo desapego, que só ocorre
quando termina o desejo pelas coisas do mundo. O desapego consiste em
redirecionar o desejo para as coisas do Alto e evitar a prisão da busca do
prazer e do poder.[4]
É esse estado de desapego que liberta a alma, mesmo que permaneça a posse do
objeto. Quando Jesus recomendou ao jovem rico vender todos seus bens para
segui-lo, certamente sabia que o apego era a fraqueza que ainda amarrava
aquela alma ao mundo, como fica confirmado pela reação do jovem: ?Uma coisa ainda te falta. Vende tudo o que tens, distribui aos pobres e
terás um tesouro nos céus; depois vem e segue-me. Ele, porém, ouvindo isso,
ficou cheio de tristeza, pois era muito rico? (Lc 18:22-23).
O comentário
de Jesus a respeito da atitude do homem rico tem levado muitas pessoas à
conclusão apressada de que a pobreza é indispensável ao discipulado: ?Vendo-o
assim, Jesus disse: Como é difícil aos que têm riquezas entrar no Reino de
Deus! Com efeito, é mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do
que um rico entrar no Reino de Deus!? (Lc 18:24-25).
É importante lembrar que Jesus pregava por meio de parábolas para ?os
muitos.? Esses identificam-se com a sua personalidade no mundo e com as suas
particularidades, como por exemplo, ser rico. O discípulo avançado sabe que
a personalidade é um mero veículo da alma, considerando todas as características
e atributos da personalidade como instrumentos passageiros para sua missão no
mundo. Por isso não é necessário ser pobre no sentido material para entrar
no Reino dos Céus, até por que os pobres não são necessariamente menos
desapegados do que os ricos. Ao que parece, o importante é termos consciência
de que todas as coisas que consideramos como nossas, na verdade, pertencem a
Deus, tendo sido colocadas à nossa disposição pela generosidade do Pai.[5]
O dinheiro e os bens materiais são energia em forma concreta. A energia
financeira, assim como a energia do poder podem ser usadas tanto de forma egoísta
como altruísta. Como a maior parte dos homens do mundo são fracos e apegados
às coisas materiais, Jesus, reiterando a sabedoria milenar, disse que é difícil
o rico entrar no Reino dos Céus. É por isso, também, que o desenvolvimento
do poder, seja ele secular ou oculto, é tido como extremamente perigoso para
quem procura trilhar o caminho espiritual. Nas etapas iniciais do caminho,
enquanto o devoto ainda não desenvolveu suficientemente seu caráter, o
melhor será evitar esses tipos de tentação. Porém, chegará o dia em que o
devoto, agora um discípulo avançado, terá a missão de atuar no mundo como
um canal da Providência Divina, devendo administrar de forma altruísta e sábia
tanto a riqueza como o poder.
Nesse
particular, vale lembrar que alguns dos discípulos de Jesus eram homens de
posses, como seu irmão José de Arimatéia, Mateus, Nicodemos (também
conhecido como Bartolomeu) e os irmãos: Lázaro (outro nome para João, o
discípulo que Jesus amava), Tiago, Marta e Maria Madalena.
Assim, não são
as coisas do mundo material, per se,
que prejudicam a alma, mas sim o desejo e o apego que condicionam o indivíduo
a buscá-las para seu benefício próprio. Vencido o desejo e alcançado o
estado de desapego, o indivíduo passa a considerar tudo como passageiro,
inclusive seu próprio corpo, colocado a sua disposição para servir aos
objetivos maiores da vida. Esse é o estado último da renúncia, o estado de
desapego expresso na passagem: ?Quem
ama a sua vida a perde e quem odeia a sua vida neste mundo guardá-la-á para
a vida eterna? (Jo 12:25). Com isso, Jesus queria dizer que, o homem que
está centrado na personalidade, apegando-se a ela, está fadado a perdê-la
com a morte do corpo. Porém, o homem que está centrado em sua alma,
desdenhando a vida mundana, continuará consciente de estar vivo mesmo após a
morte do corpo físico.
A renúncia
aos prazeres normais da vida diária de interação com as coisas e as pessoas
do mundo não expressa, contudo, a verdadeira espiritualidade. Na maioria dos
casos é simplesmente uma fuga, um pequeno sacrifício que essas pessoas fazem
para evitar o que mais temem, que é encarar e lidar com seus aspectos
sombrios. A culpa por esses últimos é incessantemente expiada por autoprivações
que supostamente se constituem portas para o céu. Nenhuma renúncia, por mais
penosa que seja, extinguirá a culpa sentida por quem evita a verdadeira
purificação da alma.[6]
Algumas práticas religiosas tradicionais podem ser úteis na batalha contra o
apego. Num sentido prático, retiros e peregrinações ajudam a quebrar, ainda
que temporariamente, nossas rotinas. Quando isso ocorre, temos a possibilidade
de conscientizar-nos de que as rotinas interrompidas são apenas
condicionamentos, apegos que não fazem parte da essência do nosso ser. E com
isso podemos entender que nossos apegos rotineiros não são necessários para
a nossa felicidade, ao contrário, são um óbice à nossa elevação
espiritual. Por isso, os retiros e as peregrinações são especialmente
importantes na promoção do desapego porque oferecem a oportunidade de
afastar-nos de toda a parafernália que nos envolve na vida diária, como a mídia
e as diversões. O principal propósito dessas coisas parece ser de
distrair-nos, mantendo-nos ocupados com as ilusões do mundo exterior e
alheios à realidade interior. Nos retiros, a realidade interior tem uma
chance de ser resgatada, facilitando nossa reorientação para o real, ao
deixarmos para trás as rotinas ilusórias que nos aprisionam à vida mundana.
Para o
buscador da Verdade, a meta da peregrinação não é Roma, Jerusalém nem
Meca, mas o santuário interior escondido no coração, objeto também dos
retiros. Nas peregrinações e retiros, vivendo uma vida simples e frugal,
livre das distrações do mundo e com o coração sintonizado com o alto (?pois
onde está o teu tesouro aí estará também o teu coração? - Mt
6:21), teremos oportunidade de despojar-nos dos apegos e condicionamentos e
voltarmos a atenção inteiramente para Deus. Para o homem moderno, assediado
por mil demandas familiares, profissionais e de entretenimentos, o maior
sacrifício ou renúncia nessas ocasiões é o tempo dedicado ao retiro ou
peregrinação.[7]
Jesus legou
esse ensinamento aos buscadores de todos os tempos, de forma velada, na
passagem sobre o óbolo da viuva (Lc 21:1-4). Ao ver uma viuva pobre oferecer
duas moedinhas para o Tesouro do Templo, Jesus observou a seus discípulos que
ela havia contribuído muito mais do que os outros, inclusive os ricos que
ofertavam grandes quantias, porque estes davam do que lhes sobrava, enquanto
ela havia oferecido tudo o que possuía para viver. A viuva representa o
verdadeiro devoto e as duas moedinhas a totalidade da natureza humana, ou
seja, o corpo e a alma. Aquele que realmente ama a Deus sente que deve ofertar
ao Pai celestial todo o seu tesouro ? não as coisas terrenas que são supérfluas,
mas sim o que temos de mais precioso nessa vida, o nosso corpo e nossa alma.[8]
Essa é a renúncia que abre as portas do Reino de Deus.
Enquanto o
homem está orientado para as coisas do mundo, toda renúncia é tida como
penosa, representando um sacrifício. Etimologicamente, a palavra ?sacrifício?
vem do latim e significa tornar sagrado, oferecer algo à divindade. Assim,
podemos tornar nossa vida sagrada, sacrificando todas as nossas ações. Como
as nossas intenções são mais importantes ainda que nossos atos, podemos
tornar sagrada a nossa vida diária, sem efetuar grandes mudanças em nossas
rotinas, simplesmente oferecendo ou dedicando cada ação à Deus.[9]
Devemos estar sempre atentos às nossas intenções porque Deus está no âmago
de nosso ser e ?julga as disposições
e as intenções do coração. E não há criatura oculta à sua presença.
Tudo está nu e descoberto aos olhos daquele a quem devemos prestar contas?
(Hb 4:12-13).
O sacrifício
que contribui para o crescimento da alma é aquele que envolve a escolha
deliberada entre um bem menor e um bem maior, sendo o menor sacrificado pelo
maior. Assim, sacrificamos o prazer de vários alimentos e iguarias que
engordam pelo bem maior da silhueta e da saúde; o atleta sacrifica o descanso
preguiçoso pelo cansaço estimulante dos exercícios que o manterão em
forma; o estudante sacrifica inúmeras horas de lazer para estudar com afinco
para poder vencer na vida. Todos esses exemplos indicam que o sacrifício é,
em última análise, uma transmutação da força. O prazer do paladar é
transmutado em prazer da estética e da saúde, o prazer do descanso em prazer
do condicionamento físico, o prazer do lazer em satisfação pelo crescimento
profissional. Essa transmutação era o segredo dos alquimistas, que buscavam
transmutar o chumbo da personalidade em ouro da natureza espiritual.
Nesse sentido
vale lembrar que a questão dos méritos relativos da ação e da não-ação
foi examinada extensivamente na obra Bhagavad
Gita: ?A renúncia às ações e o
desempenho desinteressado das ações de acordo com a Yoga, ambos conduzem à
suprema bem-aventurança; mas, dos dois, melhor é o desempenho desinteressado
que a renúncia à ação.?[10]
O verdadeiro devoto deveria meditar no silêncio de seu coração sobre as
implicações das palavras de Jesus sobre a renúncia:
?Então disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la. De fato, que aproveitará ao homem se ganhar o mundo inteiro mas arruinar a sua vida? Ou que poderá o homem dar em troca de sua vida?? (Mt 16:24-26).
[3]
R.B. Blakney, Meister Eckhart, a
Modern Translation. Sermão
?Bem-aventurados os pobres? (N.Y.: 1941), pg. 231, citado por Thomas
Merton em Zen e as Aves de Rapina
(S.P.: Cultrix), pg. 39.
[4]
?O motivo dos teus
descontentamentos e freqüentes atribulações é que não morreste ainda,
perfeitamente, para ti mesmo, nem te desapegaste das coisas terrenas.?
Imitação de Cristo, op.cit.,
pg. 112
[5]
Renúncia, equilíbrio e discernimento são interdependentes: ?O
corpo deve ser alimentado, vestido e abrigado. A menos que dotado de
poderes sobrenaturais, o discípulo deve antes de tudo garantir essas
necessidades para a continuação da vida, mesmo se reduzidas ao mais
simples mínimo. A lei oculta tem sido sempre que a renúncia, nascida da
compreensão da realidade espiritual, deve achar expressão em todos os hábitos
e nos aspectos visíveis da vida diária do discípulo. Então, as posses
pessoais, as roupas e as finanças serão mantidas num mínimo sensato,
sendo o discernimento empregado sempre em obediência a essa regra.?
Geoffrey Hodson, A vida do Cristo do
Nascimento a Ascensão, op.cit., pg. 184.
[6]
O Caminho da Auto-Transformação,
op.cit., pg. 31.
[7] ?A peregrinação pode ser considerada como um misticismo extrovertido, assim como o misticismo é uma peregrinação introvertida. O peregrino atravessa fisicamente um caminho místico; o místico parte numa peregrinação interior.? Victor e Edith Turner, Image and Pilgrimage in Christian Culture (N.Y.: Columbia University Press, 1978), pg. 33-34.
[8] Vide, Thomas Keating, Crisis of Faith, Crisis of Love (N.Y.: Continuum, 1998), pg. 77-78.
[9]
Vide, Annie Besant, O Cristianismo Esotérico (S.P.: Pensamento), pg. 129-30.
[10]
O Cântico do Senhor (Bhagavad
Gita), tradução e
comentários de Murillo Nunes de Azevedo,
(S.P.: Cultrix, 1981), pg. 65.
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