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OS
ENSINAMENTOS DE JESUS E A TRADIÇÃO ESOTÉRICA CRISTÃ
II.
O LADO INTERNO DE UMA TRADIÇÃO
Capítulo
1
EXISTE
UM LADO INTERNO NA TRADIÇÃO CRISTÃ?
As igrejas
cristãs na atualidade professam que todos os ensinamentos de Jesus estão
contidos na Bíblia, tendo sido interpretados, no decorrer dos séculos, pelos
credos, dogmas e outros ensinamentos transmitidos pela hierarquia eclesiástica.
Apesar das passagens da Bíblia que falam claramente sobre ensinamentos
reservados e dos escritos dos Padres da Igreja Primitiva referindo-se aos Mistérios
de Jesus, a atitude ortodoxa é de que não existe um lado interno na tradição
cristã. Caso isso fosse verdade, essa seria a única grande religião sem
ensinamentos esotéricos. Essa postura da igreja não é de se estranhar,
pois, como disse o Bispo Leadbeater da Igreja Católica Liberal,[1]
"com a passagem do tempo, todas as
religiões gradualmente se distanciam da forma original em que foram plasmadas
por seus fundadores. Quase sempre esta mudança é para pior."[2]
Porém,
existe um lado interno na tradição cristã, que são os ensinamentos
reservados e as práticas estabelecidas por Jesus, preservadas e desenvolvidas
por seus discípulos e grandes praticantes. Pelo fato de lidarem com os
aspectos ocultos da natureza e do homem, são geralmente preservados pela
tradição oral ou apresentados de forma alegórica. Esses ensinamentos visam
identificar o objetivo último da vida do homem no mundo e orientar os
praticantes como alcançá-lo o mais rápido possível. O lado interno,
portanto, é equivalente ao lado esotérico ou oculto da tradição.[3]
Como os
ensinamentos esotéricos, por definição, são ministrados de forma reservada
a um número relativamente pequeno de discípulos mais avançados e,
geralmente, sob o juramento de sigilo, muito pouca informação a esse
respeito chega ao domínio público. Essa situação tem um paralelo na tradição
dos mistérios, sobre a qual tanto se fala mas pouco se sabe fora do círculo
de seus iniciados.
Apesar de
quase ignorado por muitos séculos, o lado interno da tradição cristã é
uma realidade. Jesus falava de acordo com a capacidade de discernimento de
cada um, "segundo o que podiam
compreender" (Mc 4:33), sendo que para seus discípulos ministrava
ensinamentos reservados, como fica claro na seguinte passagem:
"Quando
ficaram sozinhos, os que estavam junto dele com os Doze o interrogaram sobre
as parábolas. Dizia-lhes: "A vós foi dado o mistério do Reino de Deus;
aos de fora, porém, tudo acontece em parábolas" (Mc 4:10-11).
Se aceitamos
o teor dessa passagem, que é confirmado em outras partes dos evangelhos[4]
e em documentos apócrifos,[5]
podemos assumir que a tradição cristã, pelo menos em seus primórdios, teve
um lado interno, estabelecido diretamente por Jesus. Paulo confirma esse fato
em suas epístolas quando fala de verdades veladas, reservadas aos perfeitos,[6]
ou seja, aos que tinham sido iniciados nos mistérios de Jesus: "Ensinamos
a sabedoria de Deus, misteriosa e oculta, que Deus, antes dos séculos, de
antemão destinou para a nossa glória" (1 Co 2:7). E, referindo-se aos
dons da graça de Deus, o apóstolo diz: "Desses
dons não falamos segundo a linguagem ensinada pela sabedoria humana, mas
segundo aquela que o Espírito ensina, exprimindo realidades espirituais em
termos espirituais" (1 Co 2:13). Na Epístola aos Hebreus é mencionado
que, mesmo com o passar do tempo, a maior parte dos membros das comunidades
cristãs primitivas ainda não estava apta a receber os ensinamentos internos:
"Muitas
coisas teríamos a dizer sobre isso, e a sua explicação é difícil, porque
vos tornastes lentos à compreensão. Pois, uma vez que com o tempo vós deveríeis
ter-vos tornado mestres, necessitais novamente que se vos ensinem os primeiros
rudimentos dos oráculos de Deus, e precisais de leite, e não de alimento sólido.
De fato, aquele que ainda se amamenta não pode degustar a doutrina da justiça,
pois é uma criancinha! Os adultos, porém, que pelo hábito possuem o senso
moral exercitado para discernir o bem e o mal, recebem o alimento sólido."
(Hb 5:11-14)
No evangelho
de João existem várias passagens de natureza profundamente esotérica
apresentadas de forma velada. Existem, também, indicações de que outros
evangelhos de natureza esotérica foram escritos mas não foram conservados
pela tradição ortodoxa, como o Evangelho de Matias, referido por Jerônimo,
o Evangelho secreto de Marcos,[7]
e os Evangelhos de Tomé e de Felipe, encontrados na biblioteca de Nag Hamaddi.
Clemente de Alexandria, um dos maiores patriarcas da Igreja, falando sobre o
trabalho de Marcos e os ensinamentos secretos de Jesus, escreve: "(Desta
forma) ele (Marcos) organizou um evangelho mais espiritual para aqueles que
estavam sendo purificados. No entanto, não divulgou as coisas que não
deveriam ser reveladas, nem escreveu os ensinamentos hierofânticos do
Senhor... Incluiu certas explicações que, ele sabia, conduziriam os ouvintes
ao santuário mais interno daquela verdade oculta por sete (véus)."[8]
A prática de
diferenciar os níveis de ensinamento conforme a preparação dos ouvintes era
comum entre os judeus, tanto da tradição rabínica como dos essênios, que
transmitiam dois tipos de ensinamentos, um externo para o povo e os neófitos,
e outro interno, para os estudantes avançados.[9]
Os grandes
seres que legaram ensinamentos à humanidade, que mais tarde transformaram-se
em religiões, sempre levaram em consideração as necessidades específicas
das almas em diferentes estágios evolutivos. Para as massas eram ministradas
instruções simples, voltadas para as necessidades prementes de orientação
moral, de consolação e de esperança para os aflitos. Assim, as parábolas e
outros ditados de Jesus contêm, numa primeira leitura, uma "moral da estória",
um ensinamento prático, geralmente apresentado com imagens da vida diária de
seus ouvintes. Porém, para as pessoas mais instruídas e já despertas
espiritualmente, as mesmas parábolas, devidamente interpretadas, ofereciam
outra camada de ensinamentos mais profundos que haviam sido velados pela
alegoria. Finalmente, para seus discípulos mais chegados, foram ministrados
ensinamentos secretos conservados pela tradição oral e só mais tarde
confiados à linguagem escrita, ainda que de forma altamente simbólica.
O bispo
Leadbeater afirma categoricamente que existe um lado esotérico do
cristianismo, apesar dos protestos em contrário das correntes ortodoxas
dominantes. Em suas pungentes palavras:
"Originalmente,
o cristianismo era uma doutrina de magnífica elaboração -- aquela doutrina
que repousa nos fundamentos de todas as religiões. Quando a história do
Evangelho, que tinha significação alegórica, foi degradada a uma
pseudonarrativa histórica da vida de um homem, a religião tornou-se confusa.
Por essa razão, todos os textos relativos às coisas elevadas foram
distorcidos e, portanto, não mais correspondem à verdade subjacente. Por ter
o cristianismo esquecido muito de seu ensinamento original, é costume
atualmente negar que algum dia tenha tido qualquer instrução esotérica."[10]
Nos primeiros
séculos de nossa era os ensinamentos internos de Jesus foram preservados
principalmente pelos grupos conhecidos como gnósticos, que transmitiam
oralmente seus segredos, de forma gradual, aos seus seguidores. A massa dos fiéis
recebia os ensinamentos da tradição aberta, muitos dos quais derivados dos
ensinamentos esotéricos. Com o tempo, porém, a corrente ortodoxa passou a
dar uma interpretação de cunho histórico e literal às verdades profundas,
transformando-as em dogmas. Um estudioso chega a sugerir que:
"Os
dogmas tradicionais da Igreja que chegaram a nós ao longo dos séculos são
materializações grosseiras do verdadeiro ensinamento sobre a natureza e
origem espiritual do homem contido na gnosis. Esses dogmas são o resultado do
historicismo literal das narrativas -- alguns casos, porém, tendo uma base
semi-histórica -- que tinham a intenção original de servir como alegorias
cobrindo profundas verdades espirituais.
A
verdade, portanto, não é que o gnosticismo seja uma "heresia", um
afastamento do verdadeiro cristianismo, mas precisamente o oposto, isso é,
que o cristianismo em seu desenvolvimento dogmático e eclesiástico é uma
caricatura dos ensinamentos gnósticos originais."[11]
Com o
crescente acervo de informações sobre o lado esotérico dos ensinamentos de
nossa tradição, seria lícito perguntar por que esses dados não foram
apresentados de forma sistemática para o grande público? A verdade é que
nunca houve interesse nesse particular dentro da Igreja. Ao contrário, as
autoridades eclesiásticas, depois de Clemente de Alexandria e Orígenes,
sempre negaram que houvesse um lado esotérico da tradição cristã. Um dos
principais fatores para essa atitude remonta à aliança da incipiente igreja
com o Imperador romano Constantino no início do século IV. O cristianismo
popular, introduzido por Constantino como religião oficial do Império Romano
não podia se dar ao luxo de aceitar uma visão interna e esotérica, fora do
controle da hierarquia. A nova religião tinha que servir como instrumento de
garantia do reino terrestre. Um "Reino" espiritual não tinha lugar nesse
esquema. Para a Igreja Romana, essa aliança trouxe inúmeras vantagens, como
a cessação das perseguições e o poder temporal sobre assuntos religiosos.
Porém, o preço pago foi demasiado alto: o afastamento do que havia de mais
precioso na herança cristã e a alienação de milhares de buscadores
sinceros que foram anatemizados ao longo dos séculos. Dessa tentação não
escaparam, mais tarde, as igrejas da reforma protestante, que também se
uniram aos príncipes desse mundo.
A Bíblia
permaneceu a suprema fonte da tradição, em que pese a importância concedida
à tradição oral, principalmente nos meios monásticos. Toda tentativa de
sistematização dos ensinamentos do Mestre sempre foi vista com extrema
suspeita, pois o resultado de qualquer nova apresentação dos ensinamentos
iria, no mínimo, afetar as prioridades e valores relativos da estrutura dogmática
estabelecida pela Igreja.[12]
A atitude usual, porém, ia muito além da suspeita, chegando à rejeição
peremptória das novas interpretações, pois, por definição, seriam
diferentes da ortodoxa, sendo, portanto, taxadas de heresias e combatidas
literalmente a ferro e fogo. Dado o poder quase absoluto da Igreja a partir do
século IV até o século XIX, todas as tentativas de sistematização,
inclusive dos ensinamentos esotéricos de Jesus que vieram a público, não
tiveram sucesso, geralmente terminando com os escritos e seus escritores sendo
execrados ou lançados na fogueira.
Com a
liberdade de pensamento e expressão conquistada no século passado e
consolidada a partir da segunda metade deste século, um número crescente de
estudos vem sendo realizado: inicialmente comparando os provérbios e parábolas
semelhantes nos evangelhos sinóticos, que levaram à teoria do evangelho Q
(inicial da palavra alemã Quelle,
que significa fonte, para a suposta fonte original das logia de Jesus) e, mais
recentemente, a comparação e análise das formulações dos sinóticos com
as equivalentes nos evangelhos gnósticos, principalmente com o Evangelho de
Tomé. As interpretações das parábolas de Jesus foram outro grande avanço
no entendimento dos ensinamentos do Mestre.[13]
Partimos, portanto, da hipótese de que os ensinamentos de Jesus, o vivo, como o Mestre era chamado pelos gnósticos, foram o instrumento para trazer salvação aos homens, entendida como a admissão ao Reino dos Céus. Esses ensinamentos seriam a medicação salvadora receitada pelo grande terapeuta à humanidade. O diagnóstico foi feito, a medicação receitada. Resta a cada ser humano exercitar seu livre arbítrio e decidir se toma a medicação necessária, em tempo hábil, na atual encarnação. Caso o diagnóstico e a prescrição sejam aceitos, deve-se envidar todo o esforço possível para fazer o tratamento, que é, como na homeopatia, feito à longo prazo, ativando os princípios curadores existentes no interior de cada um. A revelação foi feita, a ajuda divina está disponível, mas o paciente deve fazer a sua parte.
[1]
A Igreja Católica Liberal foi estabelecida em 1916 na Inglaterra, a
partir da Igreja Velho-Católica da Holanda, seguindo a sucessão apostólica.
Atualmente existem dioceses dessa igreja cristã em mais de quarenta países,
com seu centro internacional em Londres, Inglaterra. Não é romana nem
protestante, mas uma das muitas igrejas de tradição católica de origem
semelhante, tais como as igrejas orientais (ortodoxa grega, russa, síria,
copta), as igrejas episcopais (Comunhão Anglicana) e as igrejas velho-católicas
(Comunhão de Utrecht), que são independentes de Roma. A Igreja Católica
Liberal aspira combinar a antiga forma de adoração sacramental com a
mais ampla medida de liberdade intelectual e de respeito pela consciência
individual. Para maiores detalhes vide: Igreja Católica Liberal, "Informação
Geral," (Diocese do Brasil, 1985).
[2]
C.W. Leadbeater, A Gnose Cristã (Brasília: Editora Teosófica, 1994), pg. 89.
[3] "Os aspectos esotéricos da religião são as percepções, conceitos, definições e reações às imagens, símbolos, mitos e rituais religiosos de pessoas num nível mais elevado de consciência. Essas percepções envolvem algo que deve ser aprendido "de dentro", de visões internas, experiência e contatos diretos. Ainda que alguns aspectos do lado esotérico da religião possam ser conceituados, ensinados e transmitidos para aqueles que são capazes de atuar nos andares superiores de sua consciência, outros aspectos, o coração essencial do modo esotérico, são estritamente pessoais e não podem ser comunicados ou transmitidos a outros, pois só podem ser revelados através da experiência pessoal direta." Divine Light and Fire, op.cit., pg. 34-35.
[4] Mt 13:10-13; 13:17; Mc 4:34; Lc 8:9-15; Lc 24:27; Jo 20:30; Jo 21:25.
[5]
Vide: J. Robinson, ed., The Nag
Hammadi Library (San Francisco: Harper); W. Schneemelcher, ed., New
Testament Apocrypha (Louisville, USA: Westminster/John Knox Press,
1991); R. Branco, Pistis Sophia. Os
Mistérios de Jesus (R.J.:
Bertrand Brasil, 1997)
[6]
I Co 2:6-9; I Co 4:1; Ef 3:9; Cl 1:26.
[7] Morton Smith, The Secret Gospel: The Discovery and Interpretation of the Secret Gospel According to Mark (Clearlake, Cal.: The Dawn Horse Press, 1982)
[8] Morton Smith, The Secret Gospel, op.cit., pg. 15.
[9] The Secret Gospel, op.cit., pg. 81-84.
[10] A Gnose Cristã, op.cit., pg. 89.
[11] William Kingsland, The Gnosis or Ancient Wisdom in the Christian Scriptures (Dorset, G.B.: Solos Press, 1993), pg. 16-17.
[12]
Um exemplo dessa intransigência foi o desaparecimento da obra de Papias,
bispo de Hierápolis (Ásia Menor), que escreveu em aproximadamente 140
d.C. um livro em cinco volumes, intitulado: "Interpretação
das Palavras do Senhor." Essa obra foi perdida, sendo conhecida
apenas por alguns fragmentos relatados por Eusébio e Irineu.
[13] Dentre os principais expoentes poderíamos citar C.H. Dodd, The Parables of the Kingdom (N.Y.: Scribner, 1961), J. Jeremias, The Parables of Jesus (N.Y.: Scribner, 1963), N. Perrin, Rediscovering the Teachings of Jesus (Londres: SCM Press, 1967) e J.D. Crossan, In Parables. The Challenge of the Historical Jesus (Sonoma, Cal.: Polebridge Press, 1992).
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