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OS
ENSINAMENTOS DE JESUS E A TRADIÇÃO ESOTÉRICA CRISTÃ
Capítulo
22
LEMBRANÇA
DE DEUS
A alta
vibração obtida durante o período de meditação diário tende
geralmente a diminuir quando a pessoa volta-se para as exigências da vida
cotidiana. O objetivo do devoto é manter essa vibração elevada ao longo
do dia, como é sugerido no Evangelho de João: ?Permanecei
em mim como eu em vós? (Jo 15:4). A instrução evangélica
continua, indicando o que ocorre quando o homem consegue manter essa
sintonia com Deus: ?Se
permanecerdes em mim e minhas palavras permanecerem em vós, pedi o que
quiserdes e vós o tereis? (Jo 15:7). Para alcançar esse
propósito, Paulo recomenda a prática da oração permanente, instando: ?Orai
sem cessar? (1 Ts 5:17).
No livro
anônimo Relatos de um Peregrino
Russo, o autor narra como entende a oração interior, a oração do
coração que transforma o homem. Dentre as várias passagens
interessantes destaca-se uma sobre a importância da oração permanente e
como ela pode ser alcançada:
?É
preciso lembrar-se de Deus em todo tempo, em todo lugar e em todas as
coisas. Se fabricas alguma coisa, deves pensar no Criador de tudo o que
existe; se vês a luz do dia, lembra-te Daquele que criou a luz para ti;
se olhas o céu, a terra e o mar e tudo o que eles contêm, admira,
glorifica Aquele que tudo criou; se te vestes com uma roupa, pensa Naquele
de quem a recebeste e lhe agradece, a Ele que provê a tua existência. Em
resumo, que todo movimento seja para ti um motivo para celebrar o Senhor:
assim rezarás sem cessar e tua alma estará sempre alegre?.[1]
Se
permanecêssemos conscientes de nossa natureza divina última, estaríamos
mergulhados permanentemente na lembrança de Deus, pois Deus é imanente.
Para que esse processo tenha um poder transformador em nossa vida ele deve
ser vivencial e não meramente intelectivo. Quando essa lembrança passa a
ser uma realidade em nossa vida, somos submetidos, a cada momento, ao
esmeril divino que desbasta as arestas de nossas imperfeições. A
realidade, porém, é que a maior parte dos aspirantes mantém a
atenção, o dia todo, na sua natureza inferior, esquecido do seu Eu
Superior. Para que haja progresso no Caminho são necessários exercícios
de recordação de nossa verdadeira natureza divina, ou seja, a lembrança
de Deus. Esses exercícios são muito mais valiosos do que sua aparente
simplicidade sugere.[2]
A
?Lembrança de Deus? é uma prática recomendada por algumas ordens
monásticas, como a carmelita. No monaquismo da igreja cristã oriental,
esse exercício é conhecida como Mneme
Theou (lembrança de Deus). Para essas ordens, Mneme
Theou é um componente essencial na vida de transformação da mente (metanoia).
A mente inteiramente voltada para Deus não deseja pensar a respeito de
nada mais. A todo momento e em qualquer situação, quando ela precisa de
ajuda para resolver seus problemas, volve-se não para as pessoas ou as
coisas do mundo, mas para Deus.[3]
O processo de
centralização em Deus foi chamado de ?orientação magnética para
Deus? por um bispo russo conhecido como Theophanis, o recluso, que no
final do século passado traduziu o original grego de Philokalia[4]
para o russo, acrescentando vários textos adicionais. Theophanis escreveu
como essa orientação magnética para Deus pode ser desenvolvida:
?O
objetivo é nos esforçarmos em direção a Deus; inicialmente isso é
feito só na intenção. Deve ser feito em nossa vida real -- uma
gravitação natural que é doce, voluntária e permanente. Esse é o tipo
de atitude que nos mostra quando estamos no caminho certo. Só se torna
claro que Deus está nos tocando quando experimentamos essa aspiração
viva; quando nosso espírito vira as costas para tudo o mais e fixa-se
Nele deixando-se levar.
No
início isso não vai acontecer; a pessoa fervorosa ainda está
inteiramente voltada para si mesma. Apesar de ter-se ?decidido? por
Deus, isso só ocorre em sua mente. Então, quando seu coração começa a
se purificar e assumir a atitude correta, ele passa a trilhar o Seu
caminho com amor e contentamento. A alma começa, então, a retirar-se de
tudo mais como que do frio e a gravitar em direção a Deus, que a
aquece.
Esse
princípio de gravitação é implantado na alma fervorosa pela Graça
divina. Por sua inspiração e orientação a atração cresce em
progressão natural, nutrida internamente mesmo sem o conhecimento da
própria pessoa. Passa a ser, então, uma profunda felicidade estar
sozinha com Deus, longe dos outros e esquecida das coisas externas. Ela
adquire o reino de Deus dentro de si mesma, que é paz e alegria no
Espírito Santo.?[5]
Dada a
realidade da vida moderna, com a constante premência de tempo para
realizar inúmeras atividades, pode parecer-nos que o método de
lembrança de Deus foi mais apropriado para a época em que a vida era
mais tranqüila, e quando os homens podiam voltar-se para a introspeção,
mesmo que estivessem cuidando de seus afazeres mais simples e menos
estressantes daquela época. Porém, quanto maior a demanda do mundo,
maior a necessidade de estarmos constantemente sintonizados com Deus para
mantermos o alto nível vibratório que conduz à transformação (metanoia),
que por sua vez leva à união ou ioga. Por isso Jesus dizia: ?Vigiai e orai, para que não entreis em tentação, pois o espírito
está pronto, mas a carne é fraca? (Mt 26:41).
Para nos
lembrarmos de Deus, temos que esquecer de nós mesmos, de nossos
pensamentos, de nossos interesses, de nossos insistentes medos e anseios.
Esse processo está relacionado com a renúncia das lembranças passadas e
das esperanças futuras, a fim de que possamos nos lembrar de Deus, agora
no presente, como o centro de nossa vida. É também uma conseqüência do
primeiro e maior mandamento, amar a Deus de todo coração, com toda a
alma e de todo nosso entendimento (Mt 22:38). Se Deus é realmente o nosso
maior tesouro, nele deverá estar sempre nosso coração,[6]
como ocorre com as pessoas verdadeiramente apaixonadas. Esse é o
espírito da lembrança de Deus.
Quando o
praticante engaja-se no processo de lembrança de Deus, ainda que
inicialmente de forma imperfeita e com lapsos freqüentes durante o dia,
ele inicia uma nova etapa no Caminho. Antes ele lutava contra seus
demônios interiores sozinho. Agora ele terá um aliado permanente a seu
lado, o próprio Senhor do Universo, a Luz infinita que automaticamente
repele a escuridão, a Onisciência divina que vence toda ignorância. A
partir de então o progresso será muito mais rápido, porque a Verdade é
incompatível com a falsidade do mundo, o Amor com o egoísmo da
personalidade. Como Deus é Verdade e Amor, enquanto estivermos
sintonizados com Ele, as vibrações distorcidas do mundo material não
terão lugar em nosso coração. Estaremos vivendo, então, numa
vibração elevada, praticando naturalmente as virtudes divinas e
avançando no Caminho da Perfeição.
A lembrança
de Deus pode dar-se de diferentes maneiras de acordo com o temperamento de
cada homem. Ela pode aparecer como uma constante sintonia com Deus, em que
a pessoa percebe a presença de Deus no íntimo de seu coração. Para o
indivíduo que ama a natureza ou que tem um pendor poético, a lembrança
pode ser a percepção de Deus na beleza de toda manifestação da
natureza e em todos os seres.
Para o
devoto, pode ser mais natural viver com o Cristo a seu lado, em permanente
comunhão, como se Ele fosse seu companheiro inseparável. Ele está
sempre a nossa disposição; somos nós que temos que optar por nos
mantermos a Seu lado, sem perder-nos em considerações mundanas e
fúteis. Poderemos, também, observar nosso comportamento e nossas
tendências, contrastando o Cristo interior que procura nos levar para o
alto, com a personalidade, que nos puxa para baixo. E, quando alguma
atividade demandar toda a nossa atenção, podemos oferecer ou dedicar a
Deus aquela tarefa, pedindo que Ele guie o nosso coração para podermos
realizá-la da melhor maneira possível.
Deve ficar
claro, no entanto, que a prática da presença de Deus não é uma mera
técnica que possa ser adotada por qualquer um a qualquer momento. Ela é
uma conseqüência do profundo amor a Deus sentido pelo devoto que, na
alegria de seu anseio por comungar com o Supremo, procura estender o seu
contentamento a todo momento e a toda ocasião.
Muitos
aspirantes, convencidos da importância da prática da lembrança de Deus,
tentam incorporá-la à sua rotina diária, mas verificam que, por razões
que não conseguem entender, não fazem muito progresso. Sentem como se
seu coração não estivesse realmente engajado, como se lá dentro do
coração algo estivesse dizendo que isso não é mesmo para ele. Esses
casos, que infelizmente não são raros, geralmente são um reflexo da
imagem que temos de Deus. Esse é um assunto de importância
transcendental. Geralmente não nos damos conta de que a maior parte das
práticas espirituais dependem do que sentimos a respeito de Deus e
não do que pensamos a seu respeito.
Nossos
sentimentos a respeito de Deus dependem da imagem que fazemos a seu
respeito. Esta imagem não é o resultado do conceito que temos de Deus,
que é nossa visão intelectiva, mas sim da imagem que formamos
inconscientemente durante nossa infância, como uma extensão natural da
imagem de nossos pais, a autoridade que conhecemos. Dependendo de como a
criança é tratada pelos pais, se com disciplina rigorosa e castigos, com
indulgência e permissividade ou com frieza e descaso, a criança, aos
poucos, vai formando uma imagem sobre a autoridade que conhece, os pais.
Essa imagem tende a ser transferida para a autoridade suprema, Deus.
Assim, pais rigorosos e punitivos tendem a criar uma imagem de um Deus
justiceiro, ao qual devemos temer e procurar manter distância, porque sua
proximidade pode trazer castigos se ele observar nossas falhas, e como
estamos conscientes de termos muitos defeitos, inconscientemente
procuramos manter a autoridade suprema distante de nós.
É
importante, portanto, que descubramos qual a imagem que fazemos de Deus,
para que a prática da lembrança de Deus possa ser realmente incorporada
a nossa rotina diária como a expressão natural do anseio da alma pelo
Supremo Bem. Se verificarmos que a imagem que temos de Deus, o que
realmente sentimos a respeito do Pai Celestial, é muito diferente do
conceito ou da idéia que temos, será necessário, antes de mais nada,
confrontarmos a imagem distorcida com nosso conceito intelectivo, que
provavelmente é mais próximo da realidade.[7]
O objetivo
último da prática da presença de Deus é levar-nos a agir no mundo como
instrumentos do Alto. Não importa como Deus seja concebido: como o Ser
Supremo que tudo abrange, ou como o Cristo interior, que comanda a
personalidade, ou como o Mestre, instrumento do Divino, cuja missão é
promover a salvação da humanidade sofredora. Quando nosso senso de
responsabilidade nos impele a agir com motivação altruísta e total
desapego pelo resultado de nossas ações, conscientes de que somos um
instrumento da Vontade Divina, estaremos vivendo com Deus no coração e
expressando o amor Divino por meio de nossas ações.
Existe na
tradição cristã algo que é às vezes confundido com a lembrança de
Deus, que é a prática da presença de Deus. Enquanto a lembrança de
Deus é um instrumento usado na senda mística, que tem por objetivo
alcançar a união com Deus, a prática da presença de Deus é, na
verdade, um corolário da consecução do objetivo último da união.
Quando o místico alcança a união com Deus, o resultado natural será
sentir a presença do Supremo Bem a todo momento, não importa se orando
ou trabalhando.
O exemplo clássico dessa prática é a experiência do Irmão Lourenço, místico humilde que entrou para um convento carmelita em Paris, no século XVII com a idade de 55 anos. Encarregado do serviço da cozinha, em breve tornou-se o confidente e orientador espiritual de seus companheiros mais instruídos no mosteiro. Seu segredo era simples: sua oração era simplesmente um sentido da presença de Deus, quando sua alma tornava-se insensível a tudo que não fosse o amor divino. O interessante, porém, é que ao término das sessões rotineiras de oração ele continuava sentindo-se na presença de Deus, louvando-o e dando graças a Ele com todo seu coração, vivendo em profunda alegria a todo momento. Até mesmo na cozinha, em meio ao buliço das panelas e da louça, do burburinho das conversas e solicitações, o Irmão Lourenço sentia a presença de Deus. Dizia que muitos monges não progrediam espiritualmente porque davam mais atenção a penitências e exercícios especiais do que ao amor a Deus, que era o fim de toda a vida espiritual.[8]
[1]
Relatos de um Peregrino Russo
(S.P.: Edições Paulinas, 1985), pg. 106.
[2]
Vide Idéias em Perspectiva,
op.cit., pg. 305.
[3] A Different Christianity, op.cit., pg. 189-90.
[4]
Philokalia
é um compêndio clássico, em cinco volumes, de textos de vários
autores dos primeiros séculos, a maior parte dos quais escritos em
grego, versando sobre a piedade cristã e a vida mística.
[5] St. Theophan, o recluso, The Heart of Salvation, citado em A Different Christianity, pg. 293.
[6]
Mt 6:21
[7]
Para maior aprofundamento dessa questão recomendamos o livro O
Caminho da Autotransformação, op.cit., capítulo 4: ?O Deus
real e a imagem de Deus?.
[8] Conversations & Letters of Brother Lawrence, The Practice of the Presence of God (Oxford: One World, 1993), pg. 17, 20-21.
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