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OS
ENSINAMENTOS DE JESUS E A TRADIÇÃO ESOTÉRICA CRISTÃ
Capítulo
26
TRANSFORMAÇÃO,
INTEGRAÇÃO E UNIÃO
A pessoa que
sente o chamado de Deus sabe que a Senda começa exatamente onde ela se
encontra. As circunstâncias de sua vida, seus relacionamentos e seus
problemas são os instrutores escolhidos pela providência divina para ajudá-la
nessa etapa do Caminho. Cada período difícil, cada revés é a essência
mesma da lição a ser aprendida. Porém, à medida que vai superando suas
fraquezas e mudando sua maneira de pensar, o devoto verifica que o seu
ambiente vai mudando, refletindo cada vez mais seu estado de espírito
interior. Isso ocorre porque, quando aprendemos uma lição, a providência
divina muda o cenário do palco da vida para que possamos vivenciar novos
aprendizados.
Nunca é
tarde para começar e nenhum problema é insuperável. As verdadeiras
barreiras não estão no mundo exterior, mas sim no interior de nossa mente,
daí a importância da metanoia,
isso é, da transformação de nossos estados mentais. Nenhum esforço é
jamais perdido. O processo de transformação é cumulativo e recorrente, e
todo esforço, pela lei de causa e efeito, dará seus frutos no devido tempo.[1]
O devoto que
verdadeiramente abraça o caminho da perfeição, procurando utilizar com todo
empenho os instrumentos de transformação colocados a sua disposição,
verifica que alguns sinais começam a aparecer com o tempo. Crescente paz e
contentamento tomam conta de seu coração. Serenidade e alegria interiores,
por sua vez, passam progressivamente a plasmar seu ambiente exterior. Circunstâncias
cada vez mais favoráveis para a prática espiritual são colocadas no caminho
daqueles que pedem essas dádivas ao Mestre. Por isso, Jesus advertia:
Todo
aquele que ouve essas minhas palavras e as põe em prática será comparado a
um homem sensato que construiu a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, vieram
as enxurradas, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, mas ela não
caiu, porque estava alicerçada na rocha. Por outro lado, todo aquele que ouve
essas minhas palavras, mas não as pratica, será comparado a um homem
insensato que construiu a sua casa sobre a areia. Caiu a chuva, vieram as
enxurradas, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela caiu. E foi
grande a sua ruína! (Mt.7:24-27).
As primeiras
etapas do processo de crescimento espiritual envolvem um ingente esforço para
a transformação da natureza inferior. São tantos os aspectos de nossa
personalidade que precisam ser modificados que só mais tarde nos damos conta
de que alguns desequilíbrios gritantes precisam ser trabalhados. Começa então
o trabalho de integração de todos os aspectos da totalidade humana.
A vida de
todos os seres é um verdadeiro milagre de integração. Quer enfoquemos a
vida global do planeta, a vida de uma pequenina célula ou a vida de um ser
humano, sem a integração de uma infinidade de processos nenhum organismo
poderia sobreviver. Muitos psicólogos e neurologistas estão chamando a atenção
para a necessidade de integração do desenvolvimento dos dois hemisférios do
cérebro. Dizem isso porque o homem moderno desenvolveu muito mais o hemisfério
esquerdo, onde são registradas e processadas as atividades intelectivas. O
hemisfério direito, onde ocorrem as atividades emotivas e intuitivas,
permanece pouco estimulado. Assim, os pesquisadores têm verificado que os
indivíduos mais bem sucedidos, tanto na vida profissional e social quanto na
familiar, são os que conseguem integrar seus sentimentos e percepções
intuitivas com o processo intelectivo.[2]
A integração
do inferior ao Superior é o processo que busca reconectar a consciência
individual à universal, que sempre existiu no mundo real apesar de não ser
percebida pelo homem em sua consciência usual. A união permanente do divino
com o terreno é aludida na última passagem do Evangelho de Mateus, quando
Jesus se despede dos discípulos dizendo: ?Eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos? (Mt
28:20). Mas essa integração deve ser percebida pelo homem. Por isso foi dito:
?Reconheçam o que têm diante dos olhos, e o que é oculto lhes será
revelado.?[3]
Para isso o buscador deve deixar desabrochar sua natureza interior, usando
toda a energia que lhe for possível direcionar para essa meta. Esse processo
está expresso no Evangelho de Tomé em linguagem paradoxal:
?Vendo
crianças sendo amamentadas, Jesus disse a seus discípulos, ?Essas crianças
sendo amamentadas são como aqueles que entram no Reino?. Eles lhe
perguntaram: ?Nós, como crianças, entraremos no Reino?? Jesus lhes
respondeu: ?Quando tornarem o dois em um, e o interior como o exterior, e o
exterior como o interior, e o que está em cima como o que está em baixo, e
quando tornarem o masculino e o feminino uma coisa só ... então haverão de
entrar no Reino?.?[4]
O uso do
instrumental transformador, as Chaves do Reino dos Céus, visa promover essa
integração. Porém, até mesmo o uso dos doze instrumentos transformadores
precisa ser integrado. As dificuldades encontradas no Caminho podem ser
invariavelmente identificadas com o uso inadequado ou insuficiente de um ou
mais instrumentos. Como a natureza humana é complexa, sua transformação
requer a utilização do instrumental como um conjunto integrado de medidas,
pois essas agem de forma interativa, complementando-se umas às outras. Uma
passagem do Evangelho de Felipe ressalta o caráter complementar de diferentes
aspectos da natureza humana necessários à consecução de um determinado
propósito:
?A
agricultura no mundo requer a cooperação de quatro elementos essenciais. A
colheita será reunida no celeiro somente se houver a ação natural da água,
da terra, do vento e da luz. A agricultura de Deus, da mesma forma, é baseada
em quatro elementos: fé, esperança, amor e conhecimento. A fé é a terra em
que fincamos raiz. A esperança é a água por meio da qual somos nutridos.
Amor é o vento por meio do qual crescemos. O conhecimento (gnosis), então,
é a luz, por meio da qual (amadurecemos).?[5]
O processo de integração da consciência é, num certo sentido, o processo
de retorno à essência das coisas, sendo facilitado por três aspectos
divinos fundamentais: o Amor, a Verdade e a Ordem. O Amor, como já vimos, é
o fator aglutinador por excelência no universo. É a força que leva á união
dos pares de opostos na natureza manifestada, masculino e feminino, superior e
inferior, Espírito e matéria, etc. Daí o ensinamento de Jesus, de que o
amor é o maior dos mandamentos. O verdadeiro amor é o amor universal sem a
conotação egoísta de posse de alguma parte desse todo.
A Verdade é
outro elemento integrador do ser, como indicam as palavras de Paulo aos Efésios:
?Seguindo a verdade em amor,
cresceremos em tudo em direção àquele que é a Cabeça, Cristo, cujo Corpo,
em sua inteireza, bem ajustado e unido por meio de toda junta e ligadura, com
a operação harmoniosa de cada uma das suas partes, realiza o seu crescimento
para a sua própria edificação no amor? (Ef 4:15-16).
Mas, como a
verdade pode promover a integração de nossa natureza inferior à superior? O
processo de integração requer o reconhecimento da realidade dessas duas
naturezas e a identificação de tudo o que impede ou dificulta a manifestação
da plenitude de nosso ser.
[6]
Se formos honestos conosco vamos verificar que, por uma série de mecanismos,
procuramos dissimular e esconder muitos aspectos de nossa natureza, tanto
inferior como superior.
Antecipando
as descobertas psicológicas dos tempos modernos, Jesus disse: ?Se
manifestarem aquilo que têm em si, isso que manifestarem os salvará. E se não
manifestarem aquilo que têm em si, isso que não manifestarem os destruirá.?[7]
Jesus, aparentemente estava se referindo à manifestação de nossos conteúdos
inconscientes, tanto de nossa natureza inferior como da superior. É óbvio
que a manifestação de nossa natureza superior é a essência do processo
evolutivo. Porém, a manifestação de tudo o que está oculto, ou melhor,
reprimido em nossa natureza inferior é condição sine
qua non para nossa libertação. Praticamente todos os processos terapêuticos
modernos estão voltados para facilitar a expressão dos conteúdos mal
resolvidos, as áreas ainda não suficientemente trabalhadas dos pacientes. É
interessante observar que o Buda já havia dado o sábio conselho para
manifestarmos nossas falhas antes das nossas virtudes.
Pode parecer estranho que a ordem possa exercer um papel integrador. A ordem, porém, é um princípio universal. Os astrônomos, físicos, biólogos e ecologistas descrevem o universo como um mecanismo de imensa complexidade regido por uma ordem intrínseca que ultrapassa a nossa imaginação. Todo elemento, seja ele um corpo celeste, uma partícula subatômica, uma célula em nosso organismo ou um elo na cadeia alimentar, está em seu devido lugar. Tudo interage como engrenagens dentro do grande mecanismo do universo. Essa harmonia fundamental só pode ser explicada pela ordem inerente ao Plano Divino. Essa ordem exterior é um reflexo da ordem interior, que no homem é alcançada quando o indivíduo torna-se totalmente consciente.
O processo de integração, que é um retorno à essência do
ser, é necessariamente acompanhado por um esvaziamento de tudo aquilo na
natureza inferior que vai contra o amor, a verdade e a ordem. Por exemplo,
somente quando o indivíduo se esvazia do desejo egoísta de reter para si os
frutos da bênção divina, colocando-se como um elo na cadeia interminável
de agentes que compartilham generosamente o que recebem, é que estará pronto
para o passo final da união com Deus. Esse ensinamento foi apresentado na parábola
da figueira que foi tornada estéril por não ter compartilhado seus frutos
(Mt 21:18-22), bem como nas parábolas da semente de trigo que deve morrer
para dar muito fruto (Jo 12:24) e da pessoa que deve morrer para alcançar a
vida eterna (Jo 12:25).
Um indício
de que o processo de esvaziamento está ocorrendo é a crescente simplicidade
que pode ser notada na vida do buscador. À medida em que seu coração se
volta para o alto e naturalmente se torna desapegado das coisas do mundo, o
devoto vai ficando indiferente a todas exigências que anteriormente fazia da
vida. A sofisticação no vestir, na alimentação, na vida social e familiar
vai dando lugar àquela simplicidade característica de todos os grandes místicos
e que foi um dos fatores marcantes da vida de Jesus e de seus discípulos.
Para o homem moderno, libertar-se da ilusão dos modismos já é uma grande
conquista. Com a presciência dos sábios, Paulo alertou-nos sobre os perigos
das exigências da vida mundana, quando disse: ?Receio, porém, que, como a serpente seduziu Eva por sua astúcia,
vossos pensamentos se corrompam, desviando-se da simplicidade devida a
Cristo? (2 Cor 11:3).
Um aspecto
dessa simplicidade é a busca da essência que se encontra escondida em todas
as tradições. É dito que Buda, ao ser perguntado qual a essência de seu
ensinamento, respondeu: ?Cesse de
praticar o mal; aprenda a praticar o bem.? É interessante notar que a
assertiva de cessar de fazer o mal é peremptória. Tudo o que prejudica o eu
individual e os outros ?eus? deve ser evitado. Fazer o bem, no entanto, não
é tão simples assim. Em nossa ignorância, muitas vezes tentamos ajudar os
outros e acabamos prejudicando-os. Por isso, Buda nos insta a aprender
a fazer o bem. Esse aprendizado é longo, até mesmo os discípulos avançados
e os iniciados ainda estão aprendendo essa divina arte.
Se Jesus
fosse perguntado qual a prática que resumiria a essência de seu ensinamento,
é possível que viesse a responder: ?Sede
perfeitos como o Pai celestial é perfeito. Para isso amai-vos uns aos outros
e procurai sempre agir com o coração, falar com o coração e pensar com o
coração.? Jesus estaria assim indicando que nossa meta é a perfeição,
que significa atingirmos a medida da estatura da plenitude do Cristo. A senda
espiritual é pavimentada com o amor, o elemento aglutinador divino que supera
todas as barreiras. Porém, esse amor precisa ser sábio e perceptivo, daí a
segunda parte da recomendação de Jesus, para usarmos o coração como guia
de todas nossas ações, palavras e pensamentos. Como Cristo habita no âmago
de nosso ser, na câmara secreta do coração, quando nos centrarmos no coração,
o Cristo passará a guiar todas as nossas ações, palavras e pensamentos,
levando-nos, sem possibilidade de extravio, ao Reino dos Céus. Quando
conseguimos ouvir a voz do coração, percebemos que a mensagem é suave e
amorosa, e inteiramente dissociada da confusão que possa reinar em nossa vida
exterior.[8]
A partir de então estaremos conscientes da divina presença em nosso coração
como Jesus indicou: ?Nesse dia
compreendereis que estou em meu Pai e vós em mim e eu em vós? (Jo
14:20).
Essa orientação
tem um paralelo em outras tradições como vemos em Luz
no Caminho: ?Considera ansiosamente o teu próprio coração. Porque através do teu
próprio coração vem a única luz que pode iluminar a vida e torná-la clara
a teus olhos?.[9]
Quando o buscador consegue ouvir a voz do silêncio em seu coração, as
leituras e instruções exteriores tornam-se secundárias, porque, a partir de
então, ele contará com a orientação do Mestre em seu interior.[10]
O devoto no
limiar da experiência de comunhão precisará se valer da intuição,
procurando identificar em suas meditações o que precisa ser feito para
vencer as barreiras que ainda impedem sua união com o supremo bem.
Nessa última
etapa, a prática da lembrança de Deus assume uma nova conotação. Em vez de
pensarmos em Cristo como o mestre que procuramos ter sempre ao nosso lado,
devemos agora orientar nossa consciência para a realidade de que Cristo
habita em nós. Algumas pessoas sentem-se inibidas em pensar sobre sua
natureza última como sendo a de Cristo, pois estão condicionadas a acreditar
que o poder divino do Cristo cósmico só se manifestou através do Cristo
histórico. Porém, o próprio Jesus reiterou um antigo ensinamento contido
nos Salmos (Sl 82:6) dizendo que somos todos deuses (Jo 10:34). Paulo foi bem
explícito ao declarar: ?Não sabeis
que sois um templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?? (1
Co 3:16). Nosso Eu Superior é o Cristo interior, e a meta nessa etapa deve
ser tornar essa realidade cada vez mais presente em nossa consciência.
Devemos ter
em conta que quando ativamos um pensamento, especialmente um pensamento bem
definido e concentrado, os resultados inevitavelmente se farão sentir. No
entanto, o fator tempo na equação divina nem sempre corresponde às nossas
expectativas humanas. Devemos ter fé que o processo de criação foi ativado
e que os resultados estão a caminho, porém não podemos criar expectativas rígidas
a respeito de como e quando esta manifestação vai ocorrer. Assim, devemos
continuar a viver em total engajamento no serviço do Senhor e com profunda
alegria na certeza de que já somos um canal da beneficência divina e que
vamos nos tornar cada vez mais conscientes de nossa verdadeira natureza, até
que, em profunda bem-aventurança, possamos dizer como o apóstolo Paulo: ?Já
não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim? (Gl 2:20).
Chega um
determinado momento, porém, em que o devoto sente em seu coração que já
chegou ao limite de sua capacidade. Isso é indicativo de que a fase do ciclo
de atividade já cumpriu o seu papel e que agora ele deve aprender o segredo
da entrega passiva e paciente a Deus. A partir de então, o progresso dependerá
da ajuda do Cristo, de nosso mestre interior. Mas, de acordo com a lei divina,
a ajuda do alto só pode ser concedida quando solicitada. Na Bíblia esse
conceito é apresentado de forma poética e delicada numa tocante passagem do
Apocalipse:
Eis
que estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta,
entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo (Ap 3:20).
Essa é uma
das mais reveladoras passagens da Bíblia. Jesus, como símbolo do divino em nós,
demonstra, com uma humildade que deve servir de modelo para todos os que
aspiram seguir seus passos, que ele está sempre à porta de nosso coração,
batendo suavemente na esperança de que estejamos atentos ao chamado sutil do
alto e venhamos abrir a porta de nosso recinto interior para que Deus possa
entrar. Cristo está sempre pronto para cear conosco. Se tomarmos as medidas
necessárias para convidá-lo a entrar em nossa casa, ele comungará conosco.
Seremos envolvidos e impregnados, primeiramente de forma inconsciente e, no
seu devido tempo, conscientemente, pela substância divina, tornando-nos unos
com ele. Mas, para que isso possa ocorrer, devemos querer ativamente essa
comunhão, o que significa uma aspiração ardente, que deve ser demonstrada
pelo nosso empenho em fazer todo o possível para que a graça divina possa
ocorrer A coisa mais importante para isso é a disposição de tirarmos de
nosso coração tudo aquilo que nos prende ao mundo (kenosis).
A Graça é,
portanto, imprescindível na última etapa do processo que leva à união com
Deus. Existe, no entanto, uma certa confusão com relação à natureza da Graça.
A maior parte dos cristãos acredita que a Graça é independente da lei
divina, sendo concedida por Deus a seus devotos de uma forma que lembra o
favoritismo e paternalismo comuns aos nossos governantes. Essa idéia é
inteiramente errônea e precisa ser corrigida. A lei e a ordem fazem parte
integrante da natureza de Deus. Todos os aspectos e níveis da manifestação
são regidos por leis inexoráveis estabelecidas pelo governante supremo de
todo o universo. Deus, portanto, não poderia ir contra suas próprias leis.
A Graça parece
uma expressão de favoritismo porque somos espiritualmente cegos e não
conseguimos perceber aquele ponto em que, com o ato de entrega da alma a Deus,
é superada a última barreira que restava para a comunhão com o Supremo Bem.
Esse momento crítico ocorre com a convergência de dois processos: o
amadurecimento ou esgotamento dos débitos cármicos do indivíduo e o acumulo
de méritos até ser atingida a massa crítica, ou melhor, a velocidade de
cruzeiro necessária para que a alma possa decolar vôo. Um carma maduro
significa que não existem mais impedimentos para o próximo passo na Senda, e
o acumulo de méritos indica que o combustível para o vôo da alma foi gerado
pelo discípulo. A entrega irrestrita a Deus, nesse caso, funciona como o
catalisador necessário para promover a combinação dos ingredientes
espirituais existentes no interior da alma até que, decorrido o tempo necessário,
ocorra a iluminação. Deus é absolutamente justo, portanto, o que chamamos
de Graça é também uma expressão da grande lei. Por isso podemos dizer que
a Graça não vem de graça; o místico deve trabalhar arduamente para merecê-la
no seu devido tempo.
A importância
da ?entrega a Deus,? característica dos últimos estágios da vida
espiritual, sempre foi enfatizada pelos místicos. Catarina de Gênova,
escreve sobre o trabalho de purificação realizado pelo amor de Deus em operação
no devoto que a Ele se entrega:
?O
último estágio do amor é aquele que ocorre e opera sem a participação do
homem. Se o ser humano se tornasse consciente das muitas deficiências ocultas
em si mesmo ele se desesperaria. Essas fraquezas são incineradas no último
estágio do amor. Deus mostra então aquelas deficiências ao homem, para que
a alma possa ver o trabalho de Deus, daquele amor em chamas. Se devemos nos
tornar perfeitos, a mudança deve ser efetuada em nós, dentro de nós e ao
nosso redor; isto é, a mudança deve ser o trabalho não do homem, mas de
Deus. Isso, o último estágio do amor, ocorre exclusivamente pelo puro e
intenso amor de Deus?.[11]
A
necessidade da entrega paciente e humilde a Deus na última etapa do caminho
é descrita numa passagem da Bíblia pouco compreendida. É dito que em sua
pregação Jesus deparou-se na região de Tiro e Sidônia com uma mulher cananéia
que gritava pedindo ajuda do Salvador:
?Senhor,
filho de Davi, tem compaixão de mim: a minha filha está horrivelmente
endemoninhada. Ele, porém, nada lhe respondeu. Então os seus discípulos se
chegaram a ele e pediram-lhe: Despede-a, porque vem gritando atrás de nós.
Jesus respondeu: Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de
Israel! Mas ela, aproximando-se, prostrou-se diante dele e pôs-se a rogar:
Senhor, socorre-me! Ele tornou a responder: Não fica bem tirar o pão dos
filhos e atirá-lo aos cachorrinhos. Ela insistiu: Isso é verdade, Senhor,
mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus
donos! Diante disso, Jesus lhe disse: Mulher, grande é a tua fé! Seja feito
como queres! E a partir daquele momento sua filha ficou curada? (Mt
15:22-28).
O
entendimento dessa passagem merece ser aprofundado, pois seus detalhes
chocantes, são indícios de que um importante ensinamento está sendo velado.
Os personagens e os fatos relatados são símbolos de verdades eternas. A
mulher cananéia, não sendo judia, simboliza uma alma que não pertence ao
grupo de discípulos do Mestre. Sua filha é a personalidade, que é descrita
como estando horrivelmente endemoninhada, ou subjugada pelas paixões
materiais, os demônios de nosso lado sombra. Jesus, representando o Cristo
interior, ao receber o apelo da alma, inicialmente responde com silêncio.
Notamos que ele não se nega a ajudá-la nem tece considerações sobre a
questão, mas simplesmente responde com silêncio, como responde às preces
dos devotos de pouca fé. Mas a alma é perseverante e continua a insistir em
seus apelos à divina Presença, demonstrando profunda humildade, mesmo em
face ao silêncio de Deus. Prostrar-se no chão significa submeter-se
inteiramente à vontade do Senhor, reconhecendo que seu destino está nas mãos
do Salvador. Esse ato de total humildade indica que a alma já procurou por
todos os meios purificar sua natureza inferior e reconhece que só o Supremo
Bem pode ajudá-la.
A alma
determinada a superar suas deficiências insiste em obter a ajuda do Cristo,
que diz algo aparentemente cruel, comparando a mulher a um cachorrinho.
Podemos estar certos de que o doce e compassivo Mestre jamais diria algo assim
a uma pessoa que implorasse ajuda, prostrada a seus pés. Essa passagem é,
portanto, inteiramente alegórica. O pão, como na eucaristia, representa o
alimento espiritual. Esse alimento é dado prioritariamente aos ?filhos?,
ou seja, aos iniciados que estão inteiramente comprometidos com a vida de
serviço ao mundo e, portanto, devem ser devidamente preparados para esse
ministério. Os cães, como os porcos, simbolizam as pessoas que ainda estão
vivendo para o mundo.
A mulher
cananéia, no entanto, mostrando que sua compreensão espiritual já era
bastante desenvolvida, responde de forma surpreendente, dizendo que os
cachorrinhos (os buscadores) comem as sobras (absorvem os ensinamentos) que
caem da mesa de seus donos (os Mestres). Todos os aspirantes estão exatamente
nesse estágio alimentando-se das instruções dadas aos discípulos aceitos,
que são ?as migalhas que caem da mesa? do banquete divino. Essa demonstração
de fé, tornada possível por uma profunda humildade e determinação, fará
com que a alma receba do Cristo, no seu devido tempo, algumas migalhas da Graça,
que possam satisfazer suas aspirações naquele momento de sua vida (curou a
sua filha).
Todos os
grandes místicos, nas etapas finais da vida unitiva, foram conhecidos pela
imensa energia com que se dedicavam a seus afazeres, totalmente esquecidos de
si mesmos, inteiramente voltados para o bem da humanidade. Significa dizer que
entrar no Reino dos Céus é continuar trabalhando no cumprimento da vontade
de Deus aqui na Terra, que é o crescimento evolutivo de todos os seres.
O místico
sabe que sua missão é descrever a natureza do tesouro espiritual que agora
é seu e compartilhar suas experiências sobre o modo de alcançá-lo. Esse
tesouro, no entanto, tem que ser buscado por cada um. A visão espiritual tem
que ser desenvolvida com o tempo, com a maturidade da alma, que não pode ser
forçada como não pode ser forçada a maturidade do corpo. O místico, como
todo discípulo avançado, prega mais pelo exemplo e pela prática do amor do
que pelas palavras, ainda que suas palavras geralmente sejam reconhecidas como
de extrema sabedoria.[12]
Faz parte da grande Lei que a humanidade seja salva por seus próprios membros que despertaram o Cristo interior . É por isso que os grande Instrutores encarnam-se periodicamente para, no corpo físico, ajudarem seus irmãos sofredores. E é por isso que o Mestre procura com tanto afinco promover o despertar espiritual daqueles que estão suficientemente maduros e, em particular, facilitar o crescimento espiritual de seus discípulos. Esses discípulos, movidos pela compaixão, tornam-se obreiros na seara do Senhor, dedicando suas vidas, encarnação após encarnação, ao progresso espiritual da humanidade, trabalhando de forma altruísta para minorar o sofrimento e promover a harmonia, cooperação e crescimento de todos os seres.
[1]
Na tradição oriental é dito que: ?Na sua
nova existência, o homem recupera novamente toda a organização
espiritual que tinha adquirido na vida passada e, assim, fica preparado
para continuar os estudos e as tarefas que conduzem à Perfeição. Com a
morte, não se perde nada daquilo que a alma adquiriu. As experiências
que o homem fez nas vidas passadas tornam-se instintos e incitam-no ao
progresso, até inconscientemente.? Bhagavad
Gita, op.cit., pg. 82.
[2]
?Num certo sentido, temos dois cérebros,
duas mentes -- e dois tipos diferentes de inteligência: racional e
emocional. Nosso desempenho na vida é determinado pelas duas -- não
apenas o QI, mas é a inteligência emocional que conta. Na verdade, o
intelecto não pode dar o melhor de si sem a inteligência emocional. O
velho paradigma defendia um ideal de razão livre do peso da emoção. O
novo nos exorta a harmonizar cabeça e coração.? Daniel Golman, Inteligência
Emocional (R.J.: Editora Objetiva), pg. 42. Vide, também, Elaine de
Beauport e Auro Sofia Diaz, Inteligência
Emocional ? As Três Faces da Mente (Brasília, DF: Editora Teosófica,
1998).
[3]
Evangelho de Tomé,
op.cit., pg. 126.
[4]
Evangelho de Tomé, op.cit.,
pg. 129.
[5]
Evangelho de Felipe,
op.cit., pg. 156.
[6] Essa idéia é apresentada em Luz no Caminho, onde se usa o desabrochar da flor como símbolo do despertar da percepção direta da verdade: ?Enquanto a personalidade toda do homem não tiver sido dissolvida e fundida; enquanto o divino fragmento que a criou não a manejar como mero instrumento de experimentação e experiências, enquanto a natureza toda não tiver sido vencida e se tornado submissa ao Eu Superior, a flor não poderá abrir-se.? Op.cit., pg. 24.
[7] Gospel of Thomas # 70, em The Nag Hammadi Library, op.cit., pg. 134.
[8] The Mystical Christ, op.cit., pg. 97.
[9]
Luz no Caminho, op.cit.,
pg. 34.
[10]
Luz no Caminho
sugere que quando o discípulo consegue ouvir a voz do Mestre interior a
vitória está em suas mãos: ?Mas, se o ouvires (o Mestre interior), imprime-o finalmente em tua memória,
de modo que nada se perca do que tenha chegado a ti, e dele procura
aprender o significado do mistério que te rodeia. Com o tempo não terás
necessidade de instrutor algum.? Op.cit., pg. 32-33.
[11]
Catarina de Gênova, citada em Divine
Light and Fire, op.cit., pg. 42
[12] Vide, The Mystical Christ, op.cit., pg. 179.
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