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OS
ENSINAMENTOS DE JESUS E A TRADIÇÃO ESOTÉRICA CRISTÃ
II.
O LADO INTERNO DE UMA TRADIÇÃO
A
vida dos místicos
Uma das mais
ricas fontes de ensinamentos ocultos da tradição cristã é a vida dos místicos.
Essa fonte e a dos grupos esotéricos constituem prova viva e sempre renovada
da tese da revelação permanente. A Igreja Católica Romana prega que a Bíblia
foi escrita sob a inspiração do Espírito Santo (por isso seria isenta de
erros). Mas a Igreja sempre foi enfática em limitar a extensão dessa inspiração,
negando-a para todos os outros documentos que não estivessem incluídos na
lista daqueles considerados canônicos. Se, teoricamente, a Igreja considera
que a inspiração teria ocorrido quando os evangelistas supostamente
escreveram a Bíblia, na prática ela deixa implícito que deveria haver algum
tipo de inspiração, senão permanente pelo menos esporádica, para explicar
como os textos bíblicos foram modificados ?oficialmente? tantas vezes ao
longo dos séculos, em concílios, sem perder a veracidade inicial.
Interpretações
teológicas à parte, o fato é que a inspiração divina sempre existiu e
continuará a ocorrer cada vez mais no futuro, à medida que maiores
contingentes de discípulos ingressem no Caminho da Perfeição. Os místicos
são, por definição, indivíduos que alcançaram um certo grau de abertura
espiritual caracterizada por níveis crescentes de contato interior.[1]
Essas visões e contatos interiores com o Eu Superior nada mais são do que
aquilo que os Padres da Igreja Primitiva chamavam de ?inspiração do Espírito
Santo?. Esse tipo de contato, que possibilita a apreensão direta da
verdade, é responsável pela firmeza inquebrantável da fé típica dos místicos.[2]
Vivendo num mundo interior de visão espiritual, o místico passa por um
processo de transformação acelerada. As experiências interiores reforçam
sua determinação de prosseguir com a transformação exterior, necessária
para o aprofundamento de sua vida interior até alcançar o objetivo de todos
os místicos, a vida unitiva, o Supremo Bem da consciência de união com
Deus.
Uma conseqüência
natural dos contatos interiores do místico é que ele passa a confiar cada
vez menos nas autoridades constituídas, mesmo em se tratando da hierarquia
eclesiástica. Para evitar conflito com seus superiores religiosos, alguns místicos
procuram experiências de caráter muito reservado.[3]
Outros orientam sua consciência de forma a que sua experiência interior seja
pautada por seus conceitos religiosos, como Mechthilde de Magdeburg.[4]
O místico, assim, torna-se, de certa forma, extremamente individualista,
ainda que humilde. Um estudioso da vida dos místicos, que pode falar com
conhecimento de causa em virtude de suas próprias experiências interiores,
diz:
?Devemos
distinguir o místico do homem piedoso. Ambos podem ser religiosos e,
igualmente, devotados a um credo ou ritual; mas o último se baseia na
autoridade da igreja ou do ritual de uma forma que o temperamento do místico
não aceita. O místico é sempre um espinho na carne de uma igreja
estabelecida, porque será guiado pela autoridade até onde lhe convier.?[5]
As igrejas
cristãs, católicas e protestantes, sempre tiveram relações tensas com seus
místicos. O católico que admira profundamente a vida de santidade de místicos
como Francisco de Assis, Teresa de Ávila e João da Cruz, conhecendo os encômios
prestados pela Igreja a estes Santos, geralmente não imagina que possam ter
sido perseguidos pela mesma Igreja que agora lhes presta louvor. Francisco de
Assis teve que se explicar ao Vaticano em virtude do rigoroso voto de pobreza
que estabeleceu para sua ordem, pois com isso causou considerável
constrangimento à hierarquia clerical da época, vivendo em grande fausto e
opulência, em meio à pobreza do povo.
Teresa de Ávila
foi examinada pela Inquisição, aquela terrível instituição que tanto
sofrimento trouxe à humanidade em nome do Deus de compaixão. Felizmente, a
ajuda divina transformou aquela tentativa de cerceamento da Inquisição numa
grande dádiva para o mundo, pois Teresa foi instruída por seu confessor, a
mando da Inquisição, a escrever suas experiências espirituais, que tanta
suspeita causavam a seus superiores. Apesar das condições inusitadas em que
foi forçada a escrever (devia entregar seus escritos cada dia a seu confessor
e, ao recomeçar no dia seguinte, ou quando viável, não tinha permissão
para consultar o que tinha escrito anteriormente),[6]
a inspiração divina, que guia todos os que realmente vivem para Deus,
permitiu que suas obras literárias servissem de fundamento e orientação
para místicos e buscadores espirituais desde então. João da Cruz, por sua
vez, foi perseguido e jogado na prisão por seus superiores eclesiásticos
onde, na solidão, passou por experiências místicas que lhe deram inspiração
para suas obras mais profundas e reveladoras.
Apesar de
todos esses percalços, o cristianismo institucional sempre reconheceu e
aceitou a realidade da experiência mística, contanto que fosse circunscrita
aos ditames da ortodoxia. ?Como a
guardiã autonomeada da salvação humana, a teologia reservou para si o poder
de decisão final em todos os assuntos religiosos. Ela condenava
incondicionalmente aqueles cuja busca por esclarecimento interior os afastava
das restrições impostas pela ortodoxia. Essas restrições aos instintos
naturais do coração e da mente dividiam a congregação e resultaram em cisões.
O místico não podia aceitar o conceito de que uma instituição mortal
pudesse ser legitimamente capacitada a ditar as regras da salvação humana. A
associação íntima entre Deus e o homem está além da alçada do clero.?[7]
O caminho místico,
como descrito pela tradição monástica ocidental, desde os primeiros séculos
com os anacoretas e cenobitas, passando pela Idade Média e Renascença,
inclui uma imensa variedade de experiências. Evelyn Underhill, em seu
monumental tratado sobre misticismo, alerta que:
?Não
se descobriu nenhum místico em quem todas as características observadas de
consciência transcendental estivessem resumidas e que, por isto, possa ser
tratado como caso típico. Em alguns casos, estados mentais que são distintos
e mutuamente exclusivos ocorrem simultaneamente. Em outros, estágios que
foram considerados como essenciais são inteiramente omitidos, em outros,
ainda, sua ordem parece ser invertida. Parece inicialmente que nos
confrontamos com um grupo de seres que chegam ao mesmo fim sem obedecer a
nenhuma lei geral.?[8]
Em que pese
essa enormidade de experiências distintas, alguns estudiosos dividem a vida
dos místicos em três etapas:
·
Via negativa, ou purgativa.
Primeira etapa, em que o postulante deve proceder uma mudança radical de
vida, com o assíduo combate aos vícios, paixões e apegos. Constitui um
processo de despojamento das coisas do mundo, também conhecido por kenosis (palavra grega que significa esvaziamento), para abrir espaço
em seu coração para preenchimento com as coisas espirituais.
· Via positiva, ou iluminativa. A etapa intermediária de cunho mais
positivo, em que o místico procura cultivar as virtudes que, promovendo a
sintonia com a perfeição divina, levam às expansões de consciência
conhecidas como iluminação.
·Via unitiva, ou perfeita. O coroamento de todo o esforço do místico,
marcado pela contemplação que leva o praticante à suprema manifestação
terrestre da realidade divina. Nessa etapa, o místico passa por experiências
que interpreta como ?ver a Deus,? chegando, mais tarde, a unir-se a Ele.
Pode-se perceber na via unitiva três níveis de realização espiritual: a
união rara, a intermitente e a estável ou plena.[9]
Essa
classificação em etapas será útil para a compreensão da metodologia de
transformação apresentada na última parte deste livro. Teresa de Ávila, no
entanto, sugere que a experiência mística passa por sete estágios.[10]
Sua classificação é extremamente útil para o entendimento dos tipos de oração
ou meditação. Esses sete estágios, ou moradas, como ela prefere chamar, têm
um paralelo com o processo de individuação, como apresentado por Jung. Os três
primeiros representam a primeira fase do processo de individuação,
caracterizado pela expansão da personalidade e sua adaptação ao mundo
exterior. As três últimas moradas representam a segunda fase do processo de
individuação, caracterizado pelo retraimento necessário para a adaptação
à vida interior. O quarto estágio é uma etapa de transição em que o indivíduo
começa a redirecionar a ênfase de sua vida do exterior para o interior.[11]
O misticismo, portanto, não é um credo mas uma qualidade de percepção espiritual. Por isso, a experiência dos místicos é de suma importância para o estudo do lado interno da tradição cristã, pois eles demonstram em sua vida que o instrumental que nos foi legado por Jesus para que se possa alcançar a meta final de união com Deus ainda está disponível e vem sendo usado com sucesso por inúmeros peregrinos ao longo dos séculos.
[1]
O contato interior ocorre quando a consciência usual do indivíduo é
influenciada por sua parte divina, seu Eu Superior. Esse contato ocorre em
diferentes níveis, podendo ir desde um impulso inconsciente para pensar
sobre algum conceito ou idéia, até a instrução consciente por vozes
nem sempre identificadas, como é o caso dos místicos.
[2] Otto, Rudolf, Mysticism East and West. A Comparative Analysis of the Nature of Mysticism (The Macmillan Co., 1932), pg. 29-37.
[3] Dan Merkur, Gnosis. An Esoteric Tradition of Mystical Visions and Unions (State University of New York Press, 1993), pg. 11.
[4] Mechthild of Magdeburg, The Revelations of Mechthild of Magdeburg (1219-1297) (Londres: Longmans, Green, 1953), pg. 9.
[5] C. Jinarajadasa, The Nature of Mysticism (Adyar, India: Theosophical Publishing House, 1934), pg. 4
[6]
Teresa de Ávila, Castelo Interior ou Moradas (S.P.: Paulus, 1981), pg. 11, 80.
[7] Manly Hall, The Mystical Christ (Los Angeles: The Philosophical Research Society, 1993), pg. 101.
[8] Evelyn Underhill, Mysticism. The Nature and Development of Spiritual Consciousness (Oxford, One World, 1993), pg. 167-68.
[9]
Frei Raimundo Cintra, Mergulho no Absoluto (S.P., Edições Paulinas, 1982), pg. 24.
[10]
Vide a inspiradora obra de Teresa de Ávila, Castelo
Interior ou Moradas (S.P.: Paulus, 1981)
[11]
Um estudo profundo e inspirado dos paralelos entre a obra de Teresa de Ávila,
Castelo Interior ou Moradas e o
trabalho de Jung, foi apresentado por um padre da ordem carmelita, John
Welch, intitulado Spiritual Pilgrims
(N.Y.: Paulist Press, 1982).
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