Convite para um diálogo
Marcelo
Barros
Todo livro é um diálogo
entre quem escreve e quem lê. Este é, especialmente, um exercício espiritual de
diálogo porque, nele, o autor dialoga com o cristianismo primitivo, fala aos
cristãos de hoje e, ao mesmo tempo, reinterpreta essas tradições a partir de
uma sensibilidade espiritual mais ampla, independentemente de pertencer ou não
a qualquer religião instituída.
Prefaciar um livro é
referendá-lo e aceitar ser para o autor como um paraninfo que o introduz em um
novo círculo de relações. Estritamente falando, o professor Raul Branco não
precisaria disso. É um intelectual e pesquisador muito conhecido em todo o
Brasil. Grande conferencista, já trabalhou na ONU e teve o encargo de
representar a ONU e o governo brasileiro em diversas conferências
internacionais. Sua formação em Economia serve de esteio prático para sua busca
interior mais profunda, o que faz dele, hoje, um dos expoentes da Sociedade
Teosófica no Brasil. Ali, cada semana, ele coordena um grupo de estudos sobre o
Cristianismo Primitivo. Estudou a fundo os fenômenos do Esoterismo e tem como
enfoque das suas pesquisas as religiões comparadas. Além disso, é autor
consagrado. Livros anteriores seus, como ?Os Ensinamentos de Jesus e a Tradição
Esotérica Cristã? (Editora Pensamento, 1999) e ?Pistis Sophia. Os Mistérios de
Jesus? (Bertrand Brasil, 1997) já nos preparam para o banquete de erudição e
síntese espiritual que é este seu novo livro: ?O Poder Transformador do
Cristianismo Primitivo?.
O primeiro capítulo se
centra sobre a ?simplicidade e a diversidade do cristianismo primitivo?. De
fato, até, ao menos, o século II, as comunidades ligadas ao ?movimento de
Jesus? pertenciam a culturas bem diversas. Isso faz com que o cristianismo que
aparece refletido no chamado ?Evangelho de Mateus? seja bastante diferente do
que era vivido pelas comunidades paulinas e mais ainda pelos círculos joaninos.
Alguém prefere mesmo falar em ?cristianismos primitivos? no plural. Essa
diversidade em nada impediu que se mantivesse uma unidade fundamental. Cipriano
de Cartago, pastor no século III, dizia: ?A unidade abole as separações, mas
respeita as diferenças e com elas se enriquece?.
O professor Raul discorre
bem sobre essas veredas e, depois, como alguém que, afetuosamente, nos toma
pela mão, nos conduz aos ?ensinamentos do cristianismo primitivo?, centrando a
atenção especial na proposta espiritual do Cristo aos seus discípulos.
Quem está habituado a ler os
estudos sobre as primeiras gerações cristãs, oriundos de meios ligados à
Teologia da Libertação achará este livro por demais diferente e mesmo
divergente das interpretações de especialistas que fizeram pós-doutorado na
matéria aqui no Brasil, como Eduardo Hoornaert, em estudos como ?A Memória do
Povo Cristão?, ?O Movimento de Jesus? e ?Cristãos da Terceira Geração?, mesmo
se em alguns princípios e conclusões coincidem, como a crítica ao cristianismo
imperial nascido a partir da influência do imperador Constantino no século IV.
A época compreendida neste
livro como sendo ?cristianismo primitivo? estende-se pelos primeiros séculos,
sem atender tanto a diferenças que existiram de uma geração a outra. Para o
objetivo desse estudo, isso não tem importância. Aqui o ponto de partida
metodológico não é o de um estudo estritamente histórico. Por isso, a abordagem
muda e nos conduz a conclusões diferentes. Tais resultados não se contradizem,
mas se completam. Nos últimos 25 anos, os estudos dos textos neotestamentários,
ao menos nos ambientes de Igrejas cristãs no Brasil, têm sido sempre feitos a
partir do contexto histórico. Estudam-se as comunidades e movimentos que estão
por trás dos textos e a partir daí se interpreta mesmo o que o Jesus dos
Evangelhos diz (que nem sempre é o Jesus histórico). Raul se debruça sobre os
textos a partir de seu conhecimento dos círculos esotéricos. Já vários autores
cristãos e não cristãos escreveram sobre a dimensão mística e mesmo esotérica
presentes em alguns grupos e textos do cristianismo primitivo e como isso foi
posteriormente esquecido ou mesmo censurado. Agora, nestas páginas do Raul,
este veio espiritual é novamente valorizado e vem enriquecer nossa forma de
abordar os textos antigos.
Para mim, que trabalho no
diálogo entre as diferentes tradições espirituais e desenvolvo uma Teologia do
Pluralismo cultural e religioso, alguns trechos deste livro me recordam a
teologia de Raimundo Panikkar. Por exemplo, a insistência em sublinhar o
?Cristo interior?, ?Cristo em nós? como essa presença divina que vai muito além
da tradição cristã e se encontra em qualquer outro caminho espiritual.
Desculpem-me de citar um de seus textos: ?Os cristãos têm razão de falar do
Cristo e não somente de Deus, porque Deus não se fecha em si mesmo e sobre ele
mesmo. Volta-se para a humanidade e para o mundo com os quais quer entrar em
comunhão. É isso que significa o termo ?Cristo?. Cristo é absolutamente único e
universal ?símbolo vivo para a totalidade da realidade, humana, divina,
cósmica. Está no centro de tudo o que existe. É o ponto de cristalização, de
crescimento e reunião de Deus, da humanidade e de todo o cosmos em seu
conjunto. É a ação histórica da divina Providência que inspira a humanidade por
diferentes caminhos e conduz a vida humana à sua plenitude?. O mesmo Cristo que
tomou forma e corpo em Jesus de Nazaré pôde tomar corpo sob outros nomes ainda:
Rama, Krishna, Purusha, Tathagata, etc. Jesus tem lugar em uma série de
incorporações do mesmo Cristo. ?Jesus é o Cristo, mas o Cristo não é somente
Jesus?.
Ao ler ?O poder
transformador do Cristianismo Primitivo?, você vai compreender ainda melhor
essa verdade. Quem saboreia estas páginas, mais do que nunca concordará: da fé
e do sagrado, ninguém pode ser mais do que amante que se põe a serviço. Do que
é divino, não há título de propriedade. Só acesso gratuito para toda busca que
engravida o coração.
Os cristãos mais habituados
à ?reta interpretação da doutrina? estranharão, uma vez ou outra, algumas
intuições e não concordarão com certas conclusões. Acho isso positivo e
fecundo. Tome como um exercício espiritual escutar uma interpretação diferente
da sua fé. Para mim, foi muito enriquecedor, conhecer essa abordagem da minha
tradição por alguém que, de certa forma, a estuda ?de fora? ou, ao menos, não a
partir da Igreja.
Este novo livro do Raul é um
presente de amor para você que o lê e para todo mundo que busca a Paz através
do diálogo e da superação das intransigências, discriminações e
fundamentalismos. Espero que, ao terminar de saboreá-lo, você possa confirmar o
que, em 1969, o monge beneditino Thomas Merton disse na conferência
inter-religiosa entre monges cristãos e budistas em Calcutá: ?O nível mais
profundo da comunicação não é a comunicação, mas a comunhão. Ela é sem
palavras. Ela está além das palavras, além dos discursos, além dos conceitos.
Neste grupo, não estamos descobrindo uma unidade nova. Descobrimos uma unidade
antiga. Queridos irmãos e irmãs, nós já somos Um. Mas imaginamos não ser. O que
temos de reencontrar é nossa unidade original. Apenas, temos de ser o que já
somos?.
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