1. INTRODUÇÃO
Jesus foi um dos maiores
revolucionários de todos os tempos. Sua ação insidiosa, porém, não estava
voltada para a luta de classes. Tampouco dedicou suas energias para promover a
expulsão dos opressores estrangeiros do povo judeu, como os zelotes, seita
judaica que lutou contra as forças romanas, e que foi aniquilada no massacre de
Massada no ano 73 de nossa era. Afinal de contas, isso não deve nos
surpreender, pois, como ele disse reiteradamente, seu reino não era desse
mundo. Mesmo assim, seu ministério causou uma revolução radical na vida humana,
uma revolução que continua mesmo depois de dois mil anos, porque seu impacto é
permanente, pois ele pregava e empregava as armas invencíveis do amor e da
verdade para conquistar os corações humanos, mesmo quando entrincheirados por
trás das sólidas barreiras da vida mundana.
Qual foi então o caráter da
revolução que ele iniciou? A grande transformação revolucionária que promoveu
foi de cunho espiritual. O irônico, porém, é que o objetivo central de sua
pregação não era trazer algo inteiramente novo ao povo judeu e, por meio dele,
ao resto do mundo. A essência de seu ministério era promover o retorno ao
objetivo básico de todo movimento espiritual em sua origem, ou seja, a experiência
de Deus no interior do homem. Os grandes instrutores e profetas como
Jesus geralmente não fundam religiões. Essa tarefa tende a ser realizada por
seus seguidores numa tentativa de institucionalizar os ensinamentos de seu
Mestre, para melhor conservá-los e disseminá-los. Ainda assim, a história
indica que, com o passar do tempo, as religiões tendem a minimizar a
experiência mística interior preconizada em seus primórdios e a dar ênfase aos
rituais externos e à obediência das doutrinas estabelecidas pelos hierarcas.
Existe uma clara analogia desse processo na natureza física: as águas de um rio
são puras e cristalinas perto de sua nascente, mas vão perdendo sua pureza
original ao longo do curso com a introdução de sedimentos e poluentes de vários
tipos.
Ao comentar o ministério de
Jesus, padre Marcelo Barros
sugere que ?Jesus foi um profeta judeu que, como outros profetas e mais do que
todos os profetas antigos, insiste na chegada iminente do que ele chama de
?Reino de Deus?, uma transformação radical do mundo e de todo ser humano, em
todas as dimensões da vida, interior e social, pessoal e coletiva, dos corações
e das estruturas da sociedade, mas a partir de dentro, através da ?conversão.?
Ele não veio fundar uma nova religião. Sua proposta era viver o caminho humano
de forma integral e responsável. Ele falou com base em sua cultura religiosa
(judaica) de forma nova. O novo que ele trouxe foi a revelação de Deus como
amor universal, inclusivo, presente em todas as culturas e religiões, e que ama
gratuitamente. Deus como energia da solidariedade e paz, presente e atuante nos
corações humanos e não distante como alguém externo com o qual as pessoas se
relacionavam.?
Com o passar do tempo, o
afastamento do objetivo primordial da religião, que é sempre a experiência
divina interior, gera uma insatisfação da alma que é sentida pelo homem
exterior de diferentes formas. Um estudioso sugere: ?A crise atual das Igrejas
e religiões históricas reside na ausência sofrida de uma experiência profunda
de Deus.?
O homem passa então a procurar explicações e soluções para essa insatisfação
interior. Quando isso ocorre, a hierarquia religiosa, em todos os tempos e
tradições, temerosa que essa insatisfação possa levar a um afastamento de seus
membros, passa a pregar uma obediência mais estrita às suas doutrinas e
práticas, acirrando o sentimento de alienação daqueles em quem o chamado
interior se faz sentir.
Esse processo era visível no
mundo judaico no tempo de Jesus. O entendimento literal e materialista das
escrituras judaicas, no contexto da opressão imposta sucessivamente pelos
impérios caldeu, persa, grego e romano, fazia com que os judeus ansiassem cada
vez mais pela vinda do Messias anunciado pelos profetas, para estabelecer o
?Reino? em que eles, como o povo eleito de Deus, governariam sobre todos os
povos da Terra. Para que a ?promessa da aliança? fosse cumprida o mais rápido
possível, procuravam obedecer rigorosamente os mandamentos da Lei Mosaica, o
sinal da ?aliança.? Por isso, a característica fundamental do judeu tradicional
era ser obediente à ?Lei.?
Jesus em suas pregações
falava por meio de parábolas sobre o Reino de Deus, atraindo com isso o
interesse de seus compatriotas. No entanto, seu comportamento não ortodoxo com
relação a certos preceitos da Lei Mosaica, em especial aos relacionados com os
rituais de pureza, de observância do sábado e da comensalidade, provocava a
perplexidade do povo e a hostilidade dos saduceus (sacerdotes do templo) e
fariseus (escribas), os guardiões da Lei. A maioria do povo hebreu pautava sua
conduta pela observância religiosa na linha rabínica de Shammai, estritamente
rígida e legalista. Para eles, a ênfase da prática religiosa era o formalismo
externo. Jesus, porém, seguia a linha da escola rabínica de Hillel, de cunho
místico, que enfatizava a atitude interior de entrega a Deus e de amor ao
próximo. Para Jesus, a lei era um instrumento ou caminho revelado a Moisés para
facilitar o retorno do homem ao seio divino. A lei não era uma finalidade em si
mesma, mas um método para tornar as pessoas verdadeiramente livres, e não para
as aprisionar.
Interpelado pelos fariseus
sobre a não observância estrita do sábado por seus discípulos, Jesus respondeu:
?O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado? (Mc
2:27). Suas respostas provocavam a ira dos fariseus que não conseguiam
argumentos dentro da ortodoxia judaica para contestar aquele jovem rabino que,
para eles, infringia a Lei. Jesus pregava o retorno à essência espiritual da
tradição judaica, em contraste com a tendência histórica dos guardiões da Lei
de enfatizar as práticas externas. Essa tentativa também foi feita por outros
profetas antes de Jesus, como mostram as passagens: ?Porque é amor que eu
quero e não sacrifício, conhecimento de Deus mais do que holocaustos? (Os
6:6), e ?Por acaso não consiste nisto o jejum que escolhi: em romper os
grilhões da iniqüidade, em soltar as ataduras do jugo e pôr em liberdade os
oprimidos e despedaçar todo o jugo?? (Is 58:6). O que Deus espera do homem
foi expresso por Jesus como: ?Misericórdia é que eu quero, e não sacrifício?
(Mt 9:13).
A doutrina progressista de
Jesus era um retorno à essência do ensinamento divino já ministrado aos judeus
por seus patriarcas e profetas, atualizado e aprofundado para atender as
necessidades espirituais do povo daquele tempo e dos séculos vindouros. No
entanto, o afastamento progressivo dos ensinamentos originais, que visavam
promover a justiça e a compaixão entre os homens e preparar os devotos para o conhecimento
de Deus em seus corações, levou à cristalização da vida religiosa judaica
na forma de obediência a rituais externos, consolidados nos 613 preceitos da
Lei Mosaica. Deve ficar claro que nem todos esses preceitos eram de origem
divina. A maioria, na verdade, refletia os antigos costumes do povo judeu que
foram acrescentados ao Decálogo para formar a ?Lei.? Por isso, os ensinamentos
de Jesus chocavam os líderes das sinagogas e do Templo de Jerusalém, que viam com
preocupação seu prestígio e poder abalados pelo jovem nazareno, principalmente
porque seus ensinamentos eram bem aceitos por grande parte do povo.
Mas, se Jesus revolucionou a
vida religiosa e espiritual em seu tempo, legando para seus seguidores de todos
os tempos as chaves do Reino de Deus, por que nos dias de hoje tantos líderes
religiosos relatam uma crescente insatisfação no seio de muitos segmentos da
família cristã? Alguns observadores sugerem que a história se repete. Na
verdade, isso já era conhecido dos sábios antigos, estando registrado na
Bíblia: ?O que foi será, o que se fez, se tornará a fazer: nada há de novo
debaixo do Sol! Mesmo que alguém afirmasse de algo: ?Olha, isto é novo!?, eis
que já sucedeu em outros tempos muito antes de nós? (Ec 1:9). Para algumas
pessoas, existem certos paralelos entre a ortodoxia judaica no tempo de Jesus e
a ortodoxia cristã atual, como a observância do sabath pelos judeus, com
seus holocaustos e cerimônias no templo ou nas sinagogas, e a participação na
missa dominical, com seu sacrifício eucarístico, ou em outros serviços
religiosos dos cristãos modernos; o estrito pagamento do dízimo sobre toda a
produção obtida pelos judeus e o pagamento do dízimo efetuado pelos cristãos
sobre salários e outras rendas, principalmente entre os evangélicos; a
obediência à Lei Mosaica e a crença nas doutrinas e dogmas da Igreja.
Será que a apatia e
descontentamento interior sentidos por tantos cristãos não é uma indicação de
que nós também nos afastamos dos verdadeiros ensinamentos divinos em nossa
própria religião, como os judeus fizeram no tempo de Jesus? Por que ocorreu
esse gradual afastamento dos ensinamentos originais do Mestre? Seria possível,
em nossos dias, um retorno aos virtuosos costumes do período áureo da tradição
cristã, os primeiros três séculos de nossa era, quando a maior parte dos
cristãos vivia de acordo com os ensinamentos de Jesus com tal determinação e fé
que não havia hesitação mesmo diante do martírio e com isso grande número de
seus seguidores alcançava a experiência de Deus, o anseio de todas as almas em
todos os tempos?
Essas questões serão
examinadas detalhadamente ao longo deste trabalho. Podemos adiantar agora que o
cerne da questão deve-se ao fato de a vida do cristão moderno em geral, e do
católico em particular, não estar realmente pautada naquilo que Jesus pregou.
Se observarmos a vida do católico típico, seremos forçados a concluir que ela
se resume na participação nominal na missa dominical e nas festas e romarias de
santos padroeiros. Mesmo entre os que participam da missa ou do serviço
religioso de sua igreja, encontramos grandes números daqueles que estão de
corpo presente, mas com a mente e o coração distantes. A missa ou serviço
religioso é uma obrigação a ser cumprida e não uma prática que deleita seus
corações e eleva suas almas.
Além disso, a maior parte
dos católicos tem um conhecimento extremamente precário das escrituras
sagradas, em contraste com seus irmãos evangélicos. Conseqüentemente, esses
fieis não estão cientes da riqueza espiritual que nos foi legada pelo divino Mestre
e registrada na Bíblia. Os evangélicos, por sua vez, enfrentam a limitação
auto-imposta de aceitar uma interpretação literal das escrituras, sabidamente
redigidas com o uso intenso de parábolas e alegorias.
Esse parece ser, portanto, o
âmago do problema da cristandade atual: a alienação da religião na vida diária
dos fiéis. Essa alienação advém de um considerável grau de ignorância dos
ensinamentos que nos foram legados por Jesus e sua relevância para nossa vida
nos dias de hoje. Ora, quem não conhece os ensinamentos do Mestre, não os pode
praticar. Nesse ponto o cristão moderno é diferente de seus irmãos dos
primeiros tempos. Os seguidores de Jesus, mesmo antes dos evangelhos canônicos
terem sido escritos, ouviam com atenção o que os pregadores itinerantes
ensinavam e guardavam em sua mente e seu coração as palavras de sabedoria,
sentindo-se compelidos a colocá-las em prática. As famílias, os amigos e os vizinhos de cada cidade ou lugarejo conversavam sobre a Boa Nova com mais entusiasmo de
que hoje se fala de futebol, novela ou política. As palavras do Mestre, como
foram transmitidas por seus discípulos, eram consideradas um tesouro a ser bem
guardado no coração.
As igrejas cristãs estão
conscientes de que existe uma insatisfação latente, quando não ativa e
vocifera, no seio de seus fiéis e crentes. Apesar das tentativas de modificação
de seus rituais, dos temas de suas pregações, do estabelecimento de maior
contato com os paroquianos e dos movimentos de evangelização, ainda assim
permanece a insatisfação interior. Muitos líderes católicos e protestantes
estão procurando encontrar formas de amenizar os problemas detectados no seio
de suas congregações, sem, contudo, atacar o cerne da questão espiritual.
Alguns chegam a propor objetivos sociais para atender a esse anseio da alma.
Surgiram movimentos, como a teologia da libertação, a pastoral da criança, o
movimento dos sem-terra e outros que identificaram claras injustiças sociais em
nossa sociedade, que certamente merecem a atenção dos verdadeiros cristãos.
Muita energia foi direcionada para superar essas injustiças. Os resultados nem
sempre atenderam inteiramente aos anseios de seus idealizadores e muito menos
às necessidades daqueles que até hoje sofrem e precisam de ajuda. Ainda que
alguns avanços tenham sido feitos na área social pelas igrejas católicas e
protestantes, ao que tudo indica, os anseios da alma não parecem ter sido
atendidos.
Alguns observadores dizem
que a solução é simples: bastaria vivermos de acordo com o ensinamento central
de Jesus, reiterado ao longo de suas pregações, ou seja: amai-vos uns aos
outros. No entanto, se isso fosse tão simples assim, esse anseio já teria
sido atendido há muitos séculos. O problema é que a pessoa comum encontra dificuldade
para ser verdadeiramente amorosa com aqueles fora de seu círculo íntimo. Nossas
tendências materialistas, acirradas pelos valores de nossa sociedade
competitiva e consumista, fazem com que o homem e a mulher comum vivam de forma
autocentrada, quando muito aceitando os valores relacionados com o que chamamos
de vida civilizada e educada. Mas, os valores da civilização e da educação
modernas, nada mais são do que vernizes que tendem a se romper sempre que
nossos interesses estão em jogo. A realidade de nossa vida é que agimos como
lobos ferozes e egoístas, vestidos com peles de ovelha da moralidade do
convívio social.
Todos esses fatos conspiram
para que exista hoje na cristandade uma insatisfação crescente que muitos fiéis
e crentes sinceros não conseguem definir com facilidade. Sentem que falta algo
em suas vidas espirituais. Tal angústia reflete a ausência daquela paz interior
que caracteriza a vida dos místicos e mesmo de todo aquele que está realmente
engajado na busca espiritual. É como se suas almas estivessem querendo dizer
alguma coisa que o homem externo não consegue captar com clareza. Seria
possível que essas almas, sintonizadas com o mundo espiritual, estivessem com
saudade da simplicidade e pureza da mensagem original do Salvador?
O resgate dos ensinamentos
essenciais de Jesus também tem uma importância fundamental para a mocidade e os
jovens adultos alienados e desligados da religião nos dias de hoje. Em nosso
mundo moderno, com seu ritmo frenético, podemos constatar que as pessoas passam
por mais experiências do que seria possível em cinco ou dez vidas há dois mil
anos atrás. Portanto, a busca desenfreada do prazer e das sensações, que
caracteriza nossa sociedade consumista, se por um lado leva à alienação e à
decadência, por outro, faz com que muitos alcancem mais rapidamente seu nível
de saturação com a vida mundana e passem a buscar a transcendência de outras
formas, especialmente na vida espiritual. A maior parte dessas pessoas,
especialmente quando viveram num ambiente cristão tradicional, buscam saciar
seus anseios interiores em outras tradições, mormente as orientais, por
desconhecerem as práticas espirituais da tradição cristã. Essas pessoas seriam
das mais beneficiadas pelos ensinamentos espirituais do cristianismo primitivo,
porque já estão em busca da experiência de Deus.
Tenho percebido que Jesus,
em sua presciência e sabedoria, já havia previsto nosso anseio por esses
ensinamentos transformadores essenciais. Por isso, decidi sistematizar o meu
entendimento do que o Mestre já havia ensinado, mas que parece não ter sido
devidamente percebido ou enfatizado, para orientar nossa prática de vida.
Estou convicto de que os ensinamentos e as práticas que serão apresentados aqui
atendem ao anseio de nossas almas de retornarmos à essência da mensagem de
Jesus, para que assim possamos viver vidas mais plenas, realizadas e felizes,
pautadas pela verdade e pelo amor ao próximo, e atender aos nossos mais
elevados anelos espirituais de experiência de Deus. O primeiro nível de prática
está voltado para a fundamentação de nossa vida neste mundo, servindo, ademais,
como elemento de transição para o ensinamento fundamental de Jesus, o amor a
todos os seres. O segundo nível procura atender o anseio mais profundo daqueles
que aspiram verdadeiramente seguir o Mestre para assim alcançar a experiência
de Deus.
No entanto, o poder
transformador desses ensinamentos essenciais, como na verdade, de todos os
ensinamentos de Jesus, dependerá sempre de nossa resposta a eles. As diferentes
possibilidades de resposta foram exemplificadas pelo Salvador em sua parábola
do semeador (Mt 13:4-9), que sai para semear. Parte das sementes cai à beira do
caminho e é comida pelos pássaros, outra parte cai em lugares pedregosos onde
por falta de terra não consegue se enraizar e morre, outra cai entre os
espinhos sendo abafada ao crescer e, finalmente, outra cai em terra boa,
produzindo fruto. Os quatro lugares referem-se a quatro fases sucessivas da
evolução humana. A ?semente? representa a verdade eterna expressa pelos ensinamentos
do Mestre. A beira do caminho, é a vida do homem comum desatento e incapaz de
apreciar a sabedoria. O terreno pedregoso com pouca terra representa a situação
de muitas pessoas que se entusiasmam com idéias novas mas que, por falta de
profundidade de caráter, não são capazes de deixar essas idéias seguirem seu
curso natural para transformar suas vidas. Os espinhos constituem as distrações
e seduções do mundo material que abafam a tenra plantinha da vida espiritual. A
terra boa representa a mente e o coração do homem maduro que percebe a verdade
e passa a agir de acordo com seus ditames.
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