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O PODER TRANSFORMADOR
DO CRISTIANISMO PRIMITIVO

Raul Branco


2. SIMPLICIDADE E DIVERSIDADE NO CRISTIANISMO PRIMITIVO

 

Em que consiste o contraste entre o cristianismo primitivo e as religiões cristãs da atualidade? Que diferenças de doutrina e prática existem entre o cristianismo professado pelas igrejas cristãs nos dias de hoje e o que vigorou nos primeiros tempos após a morte de Jesus? Existem diferenças tão marcantes assim, a ponto de mudar a perspectiva de vida espiritual do cristão moderno, caso fosse possível resgatar as práticas originais?

Quando investigamos esses pontos com atenção, verificamos que nos três primeiros séculos depois da morte do Salvador, os seguidores do Caminho, como os primeiros cristãos eram chamados, formavam um grande número de comunidades, muitas vezes com consideráveis diferenças de crenças e terminologias. As primeiras comunidades foram, na verdade, grupos formados dentro do judaísmo na Palestina. Essas comunidades, referidas como ebionitas, que significa ?os pobres,? permaneceram por várias décadas como seitas dentro do judaísmo, obedecendo à ?lei? e aos ensinamentos de Jesus. Uma comunidade com considerável diferença de doutrina comparada com o corpo principal do cristianismo atual parece ter sido o grupo cristão cuja existência pode ser inferida do Livro de Q (a fonte para os ensinamentos do Senhor em Mt e Lc não encontradas em Mc). Esse grupo deve ter exercido importante influência doutrinária, para que seus escritos servissem como base para a preparação dos Evangelhos. Ele referia-se a Jesus com o ?Filho do Homem,? considerando-o um grande mestre ou profeta.[6]

Com o desenvolvimento de comunidades fora do âmbito do judaísmo, as diferenças de doutrinas tornaram-se mais marcantes. É bem verdade que, apesar das diferenças de doutrina, as práticas de vida baseadas nos ensinamentos de Jesus ocupavam o lugar central na vida do devoto. Os helenistas que foram expulsos da Palestina após a vitória do exército romano e a destruição de Jerusalém no ano 70, foram fundamentais para disseminar a Boa Nova numa vertente que não exigia a aceitação da lei e da circuncisão. O termo cunhado em Antioquia, ?cristãos,? passou a ser usado para referir-se a esse crescente segmento dos seguidores de Jesus, que, usando a língua universal daquela época, o grego, e sem o peso da lei mosaica, expandiu-se muito mais rapidamente do que os discípulos judeus da Palestina e de outras comunidades do Oriente Médio que usavam o aramaico. A vida nessas comunidades, que poderíamos chamar de protocristãs, era tão marcadamente diferente da de outras comunidades e famílias da época, que as conversões se davam mais em virtude do exemplo de uma vida amorosa do que por convencimento doutrinário.

O grande marco da história do cristianismo ocorreu no início do século IV, quando ele foi adotado como uma das religiões oficiais do Império Romano. A partir daí o cristianismo deixou de ser perseguido pelas autoridades, tendo fim o período trágico dos martírios cruéis, inclusive nos selvagens jogos das arenas, quando os cristãos eram mortos por gladiadores ou devorados por leões e outros animais. Essa mudança foi tão marcante que alguns historiadores sugerem que o cristianismo dificilmente teria alcançado sua enorme disseminação e persistido como religião universal por dois milênios não fosse o ato do Imperador Constantino. No entanto, as vantagens obtidas tiveram seu preço. Tudo começou com a exigência do Imperador de por um fim à diversidade de doutrinas encontradas no seio da família cristã naquela época.

 

Constantino e a diversidade de doutrinas

Constantino veio a conhecer o cristianismo por intermédio de sua mãe, Helena, uma devota cristã. O imperador, um astuto político, constatou que o cristianismo havia se espalhado por quase todos os recantos do Império. Percebeu, ademais, que a nova religião tinha várias características que poderiam facilitar a consolidação do domínio de Roma, cada vez mais enfraquecido por periódicas rebeliões regionais e pelas temidas invasões dos bárbaros. Adotou então o cristianismo como uma das religiões oficiais do Império Romano. Mas surpreendeu-se ao verificar que no mundo cristão havia uma grande disparidade de movimentos, crenças e grupos, alguns dos quais em franca beligerância com os outros. Concluiu então, que, para servir aos seus propósitos políticos, o cristianismo teria que passar por uma uniformização de crenças. Desde o ano 312, quando obteve uma impressionante vitória militar em Roma, sobre seu rival do ocidente, Maxentius, passou a favorecer a religião cristã e a promover sua unificação com uma surpreendente paciência. Finalmente, com a eclosão da controvérsia, Alexandre versus Arius, chegou a conclusão que a uniformização de crenças dentro do cristianismo teria que ser promovida de forma mais vigorosa.

Como o Papa naquela época não tinha poder para unificar as diferentes crenças regionais e, em particular, para por fim ao principal pomo de discórdia, a divergência de opiniões quanto à natureza de Jesus, o Imperador convocou um Concílio, conhecido como Concílio de Nicéia, tendo presidido parte das reuniões. Constantino, não era teólogo e nem mesmo cristão, mas sim um político extremamente hábil e perspicaz para perceber o que iria atender a seus interesses políticos. Menos de 300 bispos compareceram ao concílio, de um colegiado de cerca de 900. O Papa e a maior parte dos bispos ocidentais, boicotaram o encontro. Sob pressão de Constantino, os bispos presentes, chegaram finalmente a um acordo sobre as doutrinas que deveriam ser aceitas por todos cristãos, sendo a maior parte delas incorporadas no Credo de Nicéia. Como havia muitas correntes doutrinárias e interesses na Igreja daquela época, o acordo obtido entre os bispos lembra os acordos políticos atuais. Muitas concessões foram feitas e benesses prometidas, havendo até o recurso extremo da destituição de alguns bispos de seus cargos, no caso de um grupo que não cedeu às pressões e seduções do Imperador.

A doutrina oficial foi então imposta, a ferro e fogo, a todos os grupos cristãos. Alguns resistiram inicialmente. Mas, com o poder temporal da Igreja de Roma sobre assuntos religiosos garantido pelas tropas do Imperador, as dissensões foram sendo vencidas e os novos dogmas aceitos. A partir de então, a virtude fundamental do cristão passou a ser sua aceitação do Credo oficial da Igreja, transformado em dogma, à semelhança da tradicional obediência à lei por parte dos judeus. A vivência dos ensinamentos do Mestre foi relegada a segundo plano, e muitos desses ensinamentos foram sendo esquecidos com o passar dos séculos.

A diversidade de doutrinas no seio da cristandade no início do século IV era reflexo da forma como o movimento cristão se expandiu após a morte do Mestre. Tudo indica que após o retorno de Jesus dos mortos, a Boa Nova espalhou-se como fogo em capim seco por todo o oriente médio, por quase toda a Europa até a Grã Bretanha, no ocidente, e na direção do oriente chegando até mesmo à Índia. Fora da Palestina, comunidades foram estabelecidas na Síria, Mesopotâmia, Chipre, ao longo da Ásia Menor onde é hoje a Turquia, na Grécia, em Roma, sul da Itália, Alexandria e Alto Egito, na Ilíria e Dalmácia (atualmente Sérvia), Gália, Espanha, Alemanha, Tunísia, Algéria, Marrocos e Líbia. As conversões eram espontâneas e o entusiasmo era a principal característica do seguidor de Jesus. Podemos inferir que os discípulos do Mestre espalhavam a Boa Nova com a marca da simplicidade que caracterizou a vida do manso e compassivo nazareno. Em lugar de doutrinas e dogmas que poucos realmente entendiam, os ensinamentos eram simples e pautados pelo exemplo.

O sentimento apocalíptico generalizado entre as primeiras comunidades cristãs, de que o fim dos tempos estava próximo, era o principal incentivo de suas atividades missionárias. A Boa Nova tinha que ser levada aos pagãos o mais rapidamente possível, antes que fosse tarde demais. O cristianismo era considerado como uma religião de redenção. Esse movimento obteve especial alento com a expulsão dos helenistas da Palestina. ?Os judeus cristãos foram expulsos da Palestina durante a Primeira Guerra Judaica (66-70), porém retornaram mais tarde para Jerusalém. No entanto, após a revolta Bar Kokhba, a Segunda Guerra Judaica contra os romanos (132-135), foram obrigados a deixar definitivamente o país porque, como judeus, eles haviam sido circuncidados, e todos os judeus foram banidos sob pena de morte.?[7] A partir de então só era possível encontrar-se cristãos gentios na Palestina.

O período crucial para entendermos a diversidade das doutrinas e práticas dos diferentes grupos cristãos é talvez o que vai da morte de Jesus até a divulgação dos quatro evangelhos canônicos em sua forma final. Esse período é geralmente referido como indo do ano 30 ou 33 de nossa era até a década de 70, quando teria aparecido o Evangelho Segundo Marcos, tido como o primeiro evangelho (os outros três evangelhos, de acordo com a Igreja, teriam sido publicados entre os anos de 80 e 110). No entanto, alguns fatos sugerem que a tradição oral e outros textos e evangelhos que não os atuais canônicos permaneceram quase soberanos na transmissão da mensagem de Jesus por muito mais tempo do que os 40 anos sugeridos pela Igreja. Tanto o limite inferior como o superior desse período parecem ter sido diferentes.

A morte de Jesus pode ter ocorrido bem antes do ano 30, ou 33, de nossa era. De acordo com as Escrituras, o Rei Herodes teria mandado matar em todo o território da Palestina os meninos com menos de dois anos, quando soube pelos três magos do Oriente que eles tinham vindo homenagear o recém-nascido rei dos judeus (Mt 2: 1-16). No entanto, é um fato conhecido dos historiadores que o Rei Herodes morreu no ano 4 a.C., portanto, quatro anos antes da data de nascimento geralmente atribuída a Jesus. O Papa, reconhecendo essa e outras incoerências históricas relacionadas com a vida de Jesus, vem estimulando os historiadores a descobrir as verdadeiras datas de nascimento e morte do Salvador. Apesar de não termos ainda nenhum resultado incontestável dessas pesquisas, as sugestões variam de que Jesus teria nascido cerca de sete anos antes de nossa era, referência preferida por alguns estudiosos ligados ao Vaticano, e até mesmo que ele teria nascido 105 anos antes da data tradicional,[8] sendo conhecido como Jeshua ben Perachia.

Caso seja comprovada uma data mais distante para o nascimento do Mestre, isso resolveria o constrangedor questionamento de que não existe nenhuma comprovação histórica de que Jesus realmente tenha existido. Os historiadores são muito enfáticos a esse respeito, pelo fato de que tanto o Sinédrio judaico quanto o governo romano na Palestina realizavam censos populacionais periódicos para determinar com precisão a população masculina do território, pois era sobre os homens de mais de quatorze anos que incidia o imposto que era recolhido com mão de ferro pelo Estado. Ora, alguns desses registros das três décadas em que geralmente se considera que Jesus teria vivido ainda estão disponíveis, e nenhum deles possui qualquer indicação da existência Jesus e de seus familiares. Qualquer que possa ter sido o ano em que Jesus realmente nasceu, é provável que sua morte tenha ocorrido bem antes do ano 30 de nossa era. Uma indicação disso é o fato de que, por volta da década de 40, já havia grande número de comunidades de seguidores de Jesus espalhadas pelo oriente médio, norte da África, Ásia Menor e por quase toda a Europa e até na Índia. Como os meios de transporte e comunicação eram muito rudimentares naquela época, essa extensa propagação do cristianismo deve ter demandado muito mais tempo para ocorrer.

A data da preparação dos evangelhos em sua versão final deve ter ocorrido provavelmente também mais tarde do que é normalmente aceita pela Igreja (70 a 110 a.C.). Vale lembrar que há dois séculos atrás a Igreja ainda sustentava que os quatro evangelhos tinham sido escritos pouco depois da morte de Jesus. Somente em meados do século XIX, em função das pesquisas de estudiosos alemães que apontavam o fato de que algumas passagens falavam da destruição de Jerusalém e do Templo, o que sabidamente ocorreu no ano 70 de nossa era, a atual datação dos evangelhos foi então proposta, para a consternação dos fiéis.

Ainda que não existam documentos daquela época comprovando quando os evangelhos foram realmente preparados, existe, no entanto a prova contrária, representada pelo ?que não se falou deles?. Significa dizer que, se os evangelhos atuais estivessem disponíveis e fossem aceitos como os mais fidedignos, seria de esperar-se que os abundantes documentos escritos pelos padres da Igreja durante o final do século I e a primeira metade do século II tivessem feito referências a eles e, melhor ainda, citassem a vida e o ministério de Jesus a partir desses documentos canônicos.

Esse raciocínio levou vários historiadores bíblicos a vasculhar as obras dos mais conhecidos escritores daquele período e o resultado foi negativo. Assim, é que, nas obras conhecidas dos mais autênticos escritores eclesiásticos, como Clemente de Roma, Barnabás, Hermas, Policarpo e os bispos Ignácio e Papias, não é feita nenhuma referência direta aos quatro evangelhos. Mas, talvez a prova mais contundente venha de uma das mais reverenciadas personalidades da Igreja, Justino, o mártir. Ele foi um escritor prolífico, tendo vivido de 110 até 165, quando sofreu o martírio. Suas obras foram examinadas por conceituados eruditos bíblicos (Cassel, Keeler, Tischendorf), e nelas foram identificadas 314 citações do Antigo Testamento, das quais 197, ou seja, dois terços, com a indicação correta dos livros dos quais elas tinham sido retiradas. Porém, nas citações sobre a vida e os ensinamentos de Jesus, Justino não menciona nenhum dos quatro evangelhos. No entanto, ele cita repetidamente uma obra referida como Memórias dos Apóstolos, ou simplesmente Memórias. Ele faz quase cem citações de Memórias, sendo que em somente três casos elas coincidem literalmente com passagens de nossos quatro evangelhos. Ele cita também o Evangelho dos Hebreus (mencionado por outros autores), o Evangelho de Nicodemos (também conhecido como Atos de Pilatos), o Proto-evangelho e o Evangelho da Infância.

O primeiro escritor a mencionar algum dos evangelhos (o de João, no caso) foi Teófilo de Antioquia, por volta do ano de 180. O primeiro a citar os quatro evangelhos foi o Bispo Irineu de Lion, entre os anos 180 e 200. Esses fatos sugerem que os quatro evangelhos passaram por um longo processo de gestação, sendo ultimados na segunda metade do século II. Isso provavelmente ocorreu em face da necessidade sentida pela Igreja de apresentar textos oficiais, ou canônicos, para enfrentar as posições doutrinárias daqueles que eram considerados hereges.

As considerações acima sobre o período de vida de Jesus e a data de ?publicação? dos quatro evangelhos, levam-nos a crer que o período entre a morte de Jesus e a data em que os quatro evangelhos canônicos tornaram-se disponíveis seria bem maior do que os 40-70 anos admitidos atualmente, podendo chegar a 100 ou mesmo 200 anos. Esse fato é de suma importância para entendermos a razão da considerável disparidade de doutrinas dentro da família cristã no século IV, que levou Constantino a agir de forma tão radical, com a instituição forçada de um conjunto de doutrinas que viesse a unificar a crença da nova religião oficial do Império.

 

A disseminação da Boa Nova

Após a ressurreição de Jesus e sua aparição às mulheres e aos discípulos, o Mestre passou algum tempo preparando-os para a missão que viriam a cumprir. Ainda que a tradição insista em afirmar que Jesus tinha somente doze discípulos, a verdade é que esse número era bem maior, provavelmente mais de setenta (Lc 10:1). Ao término de sua missão terrena, Jesus instou seus discípulos a levarem aos povos de outras nações os conhecimentos da Boa Nova, e a ensiná-los a observar tudo o que haviam aprendido com ele (Mt 28:19-20). Os discípulos, então, fortalecidos pelo retorno de Jesus dos mortos e devidamente preparados para sua missão, partiram para executá-la. Eles tornaram-se pregadores itinerantes do evangelho passando pelas cidades da Palestina e, alguns deles, por algumas cidades em países vizinhos. Em Israel o seu trabalho foi facilitado pelas pregações anteriores do próprio Mestre, que em vários lugares tinha deixado núcleos de simpatizantes.

Nos primeiros anos a expansão do cristianismo deveu-se ao entusiasmo e carisma dos apóstolos e discípulos. Mas, com a reestruturação social que se observava nessas primeiras comunidades, seu exemplo tornou-se contagioso. A expansão do cristianismo não era tanto a expansão da Igreja, como um resultado da missão evangelizadora que passou a ser feita em todos os níveis sociais, por todos os convertidos, que na maioria das vezes convenciam tanto pelo exemplo como pela palavra. As comunidades locais eram exemplos de sociedades caridosas: ?Os membros vulneráveis da sociedade, tais como viúvas, órfãos, bebês indesejáveis e escravos velhos podiam estar certos que seriam sustentados se pertencessem à igreja.?[9]

Seguindo a orientação e exemplo de Jesus, os apóstolos escolheram por sua vez alguns discípulos e passaram a prepará-los, para garantir a continuidade do trabalho quando tivessem partido, pois muitos já eram idosos.[10] Sendo discípulos fiéis, seguiram a diretriz do Mestre, de ensinar de forma direta os mistérios do Reino aos seus discípulos, e de divulgar a Boa Nova ao povo em parábolas, ou seja, de forma alegórica. A continuação da prática do ensinamento ao público por meio de alegorias, especialmente parábolas, foi um dos principais fatores responsáveis pelas diferenças de doutrinas encontradas mais tarde. No Evangelho de Marcos é dito que Jesus: ?Anunciava-lhes a Palavra por meio de muitas parábolas como essas, conforme podiam entender; e nada lhes falava a não ser em parábolas. A seus discípulos, porém, explicava tudo em particular? (Mc 4:33-34).

Sabemos pelos relatos dos evangelhos que a capacidade de compreensão dos discípulos era bastante diversificada. Como em todos os grupos de seres humanos, alguns se mostraram capazes de aprender os mistérios da alma mais rapidamente e, portanto, estavam melhor preparados para o magistério do que os outros. Até mesmo a capacidade de lembrança dos ensinamentos do Mestre deve ter variado significativamente, em que pese a proverbial memória das pessoas que vivem uma vida mais simples, por não serem submetidas, como nos dias de hoje, ao bombardeio diário de informações de toda natureza, a maior parte das quais de pouca utilidade. Podemos supor, ademais, que nem todos os discípulos estiveram presentes a todas as pregações e ensinamentos de Jesus. Portanto, cada um deve ter dado maior ou menor ênfase a certos ensinamentos e relatado os fatos históricos com seu próprio colorido. Essa é também a explicação para as diferenças marcantes encontradas nos quatro evangelhos canônicos, como por exemplo a genealogia de Jesus apresentada em Mateus e Lucas. Com o tempo, e na ausência de textos uniformes para orientar a pregação dos discípulos e, mais tarde, dos discípulos deles, certas nuances de doutrina e ênfase na vida espiritual começaram a aparecer. Com o passar dos anos e das décadas de transmissão oral dos ensinamentos, essas diferenças foram se tornando mais marcantes, gerando em alguns casos interpretações e doutrinas divergentes entre os diferentes grupos de seguidores de Jesus.

Os discípulos provavelmente devem ter estabelecido certa sistemática de apresentação de suas pregações que viria a influenciar o ministério de seus discípulos e das gerações posteriores de seguidores. Parte dos ensinamentos públicos era voltada para a questão ética, outra parte para a orientação da vida espiritual propriamente dita, ou seja, como viver para alcançar o Reino dos Céus e mais outra parte relacionada com a vida de Cristo e seu significado para a humanidade. Há evidências também de que os discípulos e seus seguidores celebravam, como parte do ministério, certos rituais sacramentais, com ênfase na eucaristia em memória do Salvador. Como relata uma das maiores autoridades bíblicas da atualidade: ?As refeições comunitárias que Jesus celebrou com seus seguidores durante seu período de vida eram regularmente celebradas como refeições escatológicas da comunidade. Essa refeição, que era obviamente uma refeição regular completa, tornou-se assim um banquete messiânico, de forma análoga às refeições dos essênios.?[11]

Dentre os quatro segmentos do ministério dos discípulos de Jesus (ética, espiritualidade, vida de Jesus e rituais), a Igreja preferiu mais tarde dar ênfase aos dois últimos. A vida de Cristo, com suas implicações doutrinárias, serviu de base para o Credo de Nicéia, que foi transformado em dogma. A refeição sacramental, mais tarde, foi modificada e estilizada, servindo de base para o principal ritual da Igreja, a Santa Missa, culminando na Eucaristia. É claro que essa decisão teve graves reflexos na formação da moralidade e na vida espiritual de grande parte da cristandade.

É importante frisar que os apóstolos, seguindo o exemplo do Mestre, dedicavam boa parte de seu tempo à iniciação de seus discípulos nos Mistérios de Deus. Jesus indica que aos discípulos foi dado conhecer os ?Mistérios do Reino? (Mt 13:11; Mc 4:11 e Lc 8:10), e Paulo afirma que ?É realmente de sabedoria que falamos entre os perfeitos, sabedoria que não é deste mundo nem dos príncipes deste mundo, votados à destruição. Ensinamos a sabedoria de Deus, misteriosa e oculta, que Deus, antes dos séculos, de antemão destinou para a nossa glória? (1 Co 2:6-7). Essa sabedoria divina, misteriosa e oculta, aludida por Paulo, que existia desde os primórdios da vida humana, era o cerne dos ensinamentos internos de Jesus que foram ministrados a seus discípulos.

Podemos supor que foi estabelecido um procedimento rigoroso de seleção para escolher aqueles considerados dignos de serem iniciados nos Mistérios de Deus, como se deduz das palavras de Jesus: ?Com efeito, muitos são chamados, mas poucos escolhidos? (Mt 22:14). Dentre os ensinamentos internos estariam os métodos de interpretação da linguagem sagrada usada na preparação dos textos incorporados na Bíblia. Os grupos que não contavam com instrutores iniciados na linguagem sagrada para interpretar devidamente as parábolas e alegorias foram limitados ao entendimento literal da Boa Nova, sendo essa uma razão adicional para as diferenças de doutrinas desenvolvidas com o tempo. Esse tema será aprofundado mais adiante nesta obra, quando apresentarmos as chaves conhecidas para a interpretação da Bíblia Sagrada.

Tudo indica, porém, que a história atropelou os desígnios dos discípulos de Jesus de promover a expansão do cristianismo de forma bem estruturada. Para isso era necessária a preparação sistemática de iniciados nos Mistérios de Jesus, para que um número suficiente de instrutores devidamente credenciados estivesse sempre disponível para orientar e instruir os seguidores da Boa Nova. Porém, as adesões de simpatizantes e membros dos seguidores do Caminho, como a nova religião era chamada inicialmente, cresceram num ritmo muito mais rápido do que a preparação dos discípulos. A mensagem de esperança e conforto disseminada pelos apóstolos e, mais tarde, por seus discípulos tocava os corações de seus ouvintes, tanto de judeus quanto de gentios. Assim o movimento foi crescendo em ritmo acelerado.

O exemplo de dedicação e compreensão fraternais para com as necessidades de todos (homens e mulheres, cidadãos, servos e escravos, jovens, idosos e viúvas desamparadas) tornavam as comunidades recém-formadas cada vez mais coesas, ainda que, em alguns casos, carecessem de orientação permanente de instrutores capacitados. Essas comunidades eram exemplos do que, mais tarde, revolucionários e transformadores sociais passaram a descrever como utopias, modelos ideais de sociedades que seriam desenvolvidas quando todos os seres humanos vivessem de acordo com a mais alta ética.

Os discípulos iniciados nos Mistérios do Reino eram poucos e dividiam sua atenção entre muitas comunidades, viajando de uma para outra, com a morosidade dos meios de transportes da época, geralmente a pé ou, excepcionalmente, cavalgando uma montaria e ainda, no caso de comunidades litorâneas, de barco. Por isso, as comunidades locais ficavam sob a orientação de líderes nomeados pelos discípulos ou mesmo escolhidos pelos membros da comunidade. O conhecimento íntimo da Boa Nova nem sempre refletia o entusiasmo desses evangelizadores. Um historiador comenta: ?Homens e mulheres começaram a pregar o evangelho de Jesus de modo entusiasmado e frenético porque acreditavam que ele retornara dos mortos para eles e dera-lhes a autoridade e poder para agir daquela maneira. Sem dúvida, seus esforços evangélicos foram imperfeitos, pois, apesar das instruções de Jesus, nem sempre eles conseguiam lembrar-se de seus ensinamentos com acurácia ou coerência, e não eram sacerdotes treinados, nem oradores, nem sequer pessoas cultas.?[12]

As circunstâncias em que se deu a rápida expansão do movimento cristão explicam porque tantas correntes doutrinárias foram constatadas no início do século IV por Constantino. A cisão mais importante no seio da comunidade cristã, a partir do final do primeiro século, ocorreu entre aqueles que se diziam herdeiros da tradição interna dos discípulos de Jesus, que por razões óbvias eram uma minoria, e a grande maioria que era tida como a herdeira dos ensinamentos públicos do Mestre, aqueles transmitidos em parábolas ao povo. Dentre os primeiros, os grupos gnósticos, em particular, apontavam a Igreja dominante como a herdeira dos ensinamentos externos. Obviamente a Igreja não podia aceitar essas alegações e, assim, os dois grupos viviam trocando acusações. Quando a Igreja dominante se tornou aliada do Imperador Constantino, os grupos dissidentes, principalmente os gnósticos, foram declarados hereges e, a partir de então, passaram a ser perseguidos.

A tradição oral que orientava os primeiros pregadores veio mais tarde a ser complementada por várias obras atribuídas a alguns discípulos de Jesus ou de discípulos da segunda ou terceira geração. Dentre elas poderíamos mencionar: o Evangelho de Tomé (considerado atualmente pela maioria dos estudiosos bíblicos como tão fidedigno quanto os quatro evangelhos canônicos),[13] os Atos de Tomé, o Evangelho de Felipe, Memórias dos Apóstolos, o Evangelho dos Hebreus, o Evangelho dos Egípcios, o Evangelho de Nicodemos, o Evangelho de Maria, Atos de João, o Evangelho do Pseudo-Matias e muitos outros. Convém lembrar que a Igreja aceita que os atuais evangelhos canônicos foram escritos com base em outros textos existentes apesar desses textos não terem sido identificados. Fala-se de um possível texto referido como Q[14] (inicial da Quelle, Fonte em alemão), que teria sido a fonte das logia, ou palavras do Senhor, usadas para a elaboração dos evangelhos segundo Mateus e Lucas, que não se encontram em Marcos. Na elaboração do Evangelho de João teria sido utilizada uma fonte de ?sinais,? os milagres narrados na vida de Cristo.

As controvérsias dos primeiros séculos foram em parte sanadas pela centralização do poder na Igreja Romana. Alguns grupos permaneceram arredios, e novas controvérsias surgiram internamente no seio da Igreja, demandando confabulações e decisões em Concílios numa tentativa de manter a unidade da doutrina oficial. Apesar do constante esforço para manter a unidade de crença, dissidências continuaram a aparecer ao longo dos séculos, sendo geralmente debeladas pela força. Dentre esses movimentos, os mais importantes que ameaçaram arranhar a supremacia papal foram o movimento dos cátaros no sul da França, reprimido brutalmente no século XIII, bem como a violenta cisão com a Igreja Ortodoxa oriental e, mais tarde, a Reforma Protestante no século XVI. Apesar desses movimentos, em que pese o grande número de mortos envolvidos, poucas mudanças de importância foram efetuadas na doutrina e na prática da Igreja, mesmo as reformadas, desde Constantino. Como as expectativas religiosas e espirituais dos povos são afetadas pelos cambiantes valores culturais de cada época, não é surpreendente que depois de tantos séculos exista hoje um anseio tão claro por mudança no seio da cristandade.

 


 

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