4. PRIMEIRA ETAPA: A VIDA ÉTICA
Estabelecendo a fundação
A ética é geralmente
confundida com a moral, e por boas razões, pois até mesmo os especialistas de
filosofia moral não estão inteiramente de acordo sobre a repartição do sentido
entre os dois termos: moral e ética.
A maior parte dos filósofos, porém, sugere que ética, do grego ethos, é
a morada social do homem, a estrutura de seu comportamento social construída ao
longo do tempo. Ético é tudo o que ajuda a tornar mais harmonioso o ambiente
humano em suas dimensões material, psicológica e espiritual. Moral, do latim mores,
expressa as tradições e costumes de um povo, com seu sistema de valores. Cada
cultura tem seu código moral. A moral deve ajustar-se, com o passar do tempo,
às mudanças de valor da sociedade, para renovar-se em sintonia com a mais alta
ética.
A construção da ética
superior deve começar necessariamente por sua fundação. Para ser sólida, a
fundação deve estar sobre a rocha, sempre que possível. Num sentido figurativo,
a rocha sólida que constitui a base dos ensinamentos do Mestre deve,
necessariamente, representar algum fundamento, alguma lei básica e imutável que
tudo governa no mundo e cuja função seja promover o retorno à harmonia da vida
no mundo. Qual seria esse fundamento de seu ministério? Podemos identificar
alguma lei ou princípio harmonizador que está por trás de todos os fenômenos
físicos, químicos, biológicos, psicológicos e espirituais?
Se procurarmos atentamente
na Bíblia e em outros textos inspirados da tradição cristã, vamos verificar que
essa lei que está por trás de todos os fenômenos no mundo é a lei de causa e
efeito. No oriente ela é chamada de lei do carma, e ocupa um lugar central em
todos os ensinamentos espirituais. A lei da causação universal, como é também
chamada, é conseqüência natural da unidade de tudo o que existe no mundo, pois,
se tudo vem de Deus e tem um papel no Plano Divino, tudo deve estar intimamente
ligado e inter-relacionado. Para entendermos a unidade da vida, podemos
considerar a Terra como um gigantesco organismo vivo do qual somos células,
ignorantes de nossa unidade e interdependência como as células do corpo humano.
Mas a ignorância da interdependência celular não isenta cada unidade da
responsabilidade pelo cumprimento de seus deveres no conjunto do organismo. As
falhas de uma unidade são sentidas pelo organismo como um todo e,
conseqüentemente, afetam na mesma medida a célula que iniciou o movimento
perturbador.
Em todos os planos e todas
as áreas de nosso mundo, os efeitos seguem suas causas e, no devido tempo,
retornam à sua fonte. Os cientistas identificaram essa lei que rege a natureza
física, enunciada pela primeira vez em 1682, pelo físico Isaac Newton, sendo
conhecida como a terceira lei de Newton: ?A toda ação corresponde uma reação
igual em sentido contrário.? Por essa razão, a natureza na Terra, os planetas e
as estrelas são também regidos pela inexorável lei da causação universal. Visto
sob outro ângulo, a lei de causa e efeito é o inter-relacionamento de tudo o
que existe no mundo. Esse inter-relacionamento sempre existiu, não tendo começo
nem fim.
A lei de causa e efeito é
particularmente importante na vida do homem. Tudo está regido por ela. Se
comermos em demasia (a causa), sentiremos dor de barriga ou engordaremos (o
efeito). Se pisarmos num caco de vidro andando descalços iremos cortar o pé e
sentir dor. Mas as relações de causa e efeito não se limitam aos aspectos
físicos de nossa vida. Os aspectos morais e psicológicos de nossa interação com
o mundo também são regidos pela lei de retribuição universal. Os mandamentos de
todas as religiões, instando o homem a não fazer o mal a seus semelhantes, são
expressões naturais da ?lei.? A lei de retribuição fará com que a conseqüência
do mal que causamos aos outros seja experimentada por nós, mais cedo ou mais
tarde. O mesmo ocorre com o bem que fazemos: fazer o bem aos outros é semearmos
felicidade para nós. Nesse sentido, a lei de retribuição universal poderia ser
considerada, de forma simplificada, como um boomerang cósmico: tudo
retorna ao seu ponto de origem, com a mesma natureza e intensidade.
Obviamente, Jesus deu uma
posição de destaque para a operação da lei de causa e efeito em seu ministério,
como se comprova em diversas passagens dos evangelhos. Uma dessas passagens
relacionada à lei da causação universal, é muitas vezes entendida como se
referindo à lei mosaica: ?Porque em verdade vos digo que, até que passem o
céu e a terra, não será omitido nem um só i, uma só vírgula da lei, sem que
tudo seja realizado? (Mt 5:18). Como a lei mosaica, além da revelação dos
dez mandamentos recebidos de Jeová no Monte Sinai, havia incorporado um grande
número de preceitos tradicionais do povo judeu, Jesus não iria afirmar que
essas leis dos homens, mutáveis como são, jamais seriam alteradas ou omitidas, até
que se passem o céu e a terra. No entanto, a lei de causa e efeito, sendo
uma lei cósmica que rege toda manifestação, é eterna e imutável. Tudo será
realizado, ou seja, todos efeitos serão experimentados por seu causador. O fato
de a lei mosaica incorporar vários costumes judaicos que não foram prescritos
por Jeová é tornado explícito nos evangelhos, como por exemplo: ?Sabeis
muito bem desprezar o mandamento de Deus para observar a vossa tradição?
(Mc 7:9); ?E vós, por que violais o mandamento de Deus por causa da vossa
tradição?? (Mt 15:3).
Em Mateus encontramos várias
passagens relacionadas à justiça divina, dentre as quais destacamos: ?Todo
aquele que se encolerizar contra seu irmão, terá de responder no tribunal;
aquele que chamar ao seu irmão ?cretino? estará sujeito ao julgamento do
sinédrio; aquele que lhe chamar ?louco? terá de responder na geena de fogo?
(Mt 5:22). ?Não julgueis para não serdes julgados. Pois com o julgamento com
que julgais sereis julgados, e com a medida com que medis sereis medidos?
(Mt 7:1-2). ?Eu vos digo que de toda palavra inútil, que os homens disserem,
darão contas no dia do julgamento? (Mt 12:36). Na primeira passagem, as
referências ao tribunal, ao sinédrio e à geena de fogo são alegorias que usam a
linguagem e as instituições do povo hebreu naquela época para caracterizar a
operação da justiça divina, tanto neste mundo como no outro (a geena de fogo
dos judeus, por exemplo, tornou-se mais tarde o inferno dos cristãos). No caso
do alerta contra nosso costume de julgar os outros, a lei do retorno é tornada
clara: não julgueis para não serdes julgados. Também é mencionado que a
retribuição será feita na mesma natureza e intensidade da ação inicial: com
a medida com que medis sereis medidos. Jesus deixa claro que absolutamente
nada escapa à lei, pois não só as palavras injuriosas serão objeto de
retribuição da lei, mas até mesmo toda palavra inútil.
Uma das mais claras
formulações da lei do retorno na Bíblia é feita por Paulo: ?Não vos iludais:
de Deus não se zomba. O que o homem semear, isso colherá: quem semear na sua
carne, na carne colherá corrupção; quem semear no espírito, do espírito colherá
a vida eterna. Não desanimemos na prática do bem, pois, se não desfalecermos, a
seu tempo, colheremos? (Gl 6:7-9). Paulo chama atenção para o fato de que
não há um limite temporal para colhermos o que plantamos. Ainda que a justiça
divina possa tardar, de acordo com a nossa perspectiva temporal terrena,
chegará o momento em que receberemos a justa medida de nossas boas ações e de
nossos erros.
Em muitas tradições
religiosas, inclusive na judaico-cristã, a lei de causa e efeito é geralmente
chamada de justiça divina. Essa terminologia tende a levar o cristão a conceber
o carma não como a operação de uma lei universal impessoal, mas como a
retribuição a ser efetuada por uma divindade pessoal. Uma conseqüência desse
entendimento distorcido da operação da justiça universal, como sendo efetuada
pessoalmente por Deus, é a tendência natural de muitos devotos de procurarem
fazer propiciações a Deus, com orações e intermináveis promessas para mudar as
conseqüências de suas ações passadas sempre que a pesada, ainda que justa, mão
da lei do carma faz-se sentir em suas vidas. Esse entendimento desvirtuado da
lei dificulta o amadurecimento dos indivíduos.
Um empecilho adicional para
o amadurecimento do devoto é o entendimento literal, portanto distorcido, de
algumas passagens bíblicas, como por exemplo: ?Pedi e vos será dado; buscai
e achareis; batei e vos será aberto; pois todo o que pede recebe; o que busca
acha e ao que bate se lhe abrirá? (Mt 7:7-8). Muitos invertem a relação
Deus/homem, achando que Deus é um servo do homem, sempre a disposição para lhes
conceder tudo o que venha a desejar. Na verdade, esse trecho deve ser entendido
em conexão com a passagem em João: ?Se permanecerdes em mim e minhas
palavras permanecerem em vós, pedi o que quiserdes e vós o tereis? (Jo
15:4-5). O requisito explícito para obtermos de Deus tudo o que quisermos é permanecermos
nele, é estarmos em sintonia com Sua Vontade. Para isso suas palavras
devem permanecer em nós, ou seja, nossa vida deve ser guiada por Seus
ensinamentos e Seu exemplo de vida aqui na Terra. Quando isso ocorre,
transcendemos nossa natureza humana egoísta e tornamo-nos instrumentos
perfeitos para a expressão da Vontade Divina neste mundo. Nesse caso, com toda
razão, tudo o que o dedicado servo pedir a seu Senhor lhe será concedido. É
nesse sentido também, que todo devoto sinceramente voltado para a busca da
verdade, ao bater simbolicamente à porta do Mestre interior, vai verificar que
ela será aberta, pois o fato de buscar já assegura o sucesso da obra, no seu
devido tempo. Conseqüentemente, os pedidos de luz e de ajuda para encontrar
forças para vencer as provações sempre serão atendidos, o que é bem diferente
da expectativa de muitos fiéis de que Deus venha a alterar nossas contas
pendentes com a justiça universal.
O ser humano foi colocado
por Deus na escola da vida provido de discernimento e de livre-arbítrio para
efetuar seu aprendizado, como indicado por Paulo: ?Discerni tudo e ficai com
o que é bom? (1 Ts 5:21). Para isso ele deve assumir a responsabilidade por
seus atos. Conseqüentemente deve estar preparado para colher a conseqüência de
suas ações. Somente quando o homem torna-se inteiramente consciente da
responsabilidade última por sua vida é que passa a vigiar suas ações, palavras
e pensamentos. Quando isso ocorre, ele passa a construir sua vida de forma
responsável e inteligente; a partir de então estará fazendo rápido progresso
rumo ao Reino dos Céus.
A lei: garantia da justiça divina e da perfeição do homem
Alguns dos ouvintes de Jesus
devem ter ponderado, como muitos cristãos nos dias de hoje, que a justiça
divina não era certa, ou que pelo menos era demasiada lenta, para que Jesus
dissesse: ?E Deus não faria justiça a seus eleitos que clamam a ele dia e
noite, mesmo que os faça esperar? Digo-vos que lhes fará justiça muito em breve?
(Lc 18:7-8). Ainda que a justiça divina possa tardar no conceito temporal dos
homens, que gostariam de ver uma retribuição quase que instantânea, ela chegará
impreterivelmente. O efeito deve seguir a causa, assim como o dia segue a
noite, porque a lei transcende o tempo e o espaço. A justiça sempre será feita
no seu devido tempo. Aparentemente, no entanto, alguns homens desonestos,
corruptos e cruéis parecem escapar da justiça dos homens e da de Deus durante
toda a vida. Ainda que isso possa realmente ocorrer em alguns casos, um outro
fato assegura que, no seu devido tempo, a justiça será feita. Esse fato é a
reencarnação, uma realidade conhecida e aceita pela maior parte dos povos
antigos, inclusive pelos judeus.
Dentre as diferentes seitas
judaicas, somente os saduceus não acreditavam na reencarnação. Os fariseus,
essênios e cabalistas aceitavam a reencarnação, geralmente referida como
ressurreição. De acordo com o historiador judeu Flávio Josefo (37-103 d.C.), em
sua obra História dos Hebreus, os fariseus tinham uma crença um tanto curiosa,
pois, para eles as almas imortais eram julgadas após a morte do corpo físico,
sendo recompensadas ou castigadas segundo foram em sua vida terrena. Segundo
eles, as almas dos ímpios eram retidas prisioneiras nesse outro mundo, enquanto
as almas dos justos voltavam à terra para progredir rumo à perfeição.
O termo bíblico usado para
referir-se à reencarnação é ?ressurreição?. Para os judeus, a palavra
ressurreição pode ser entendida como ressurgir, regressar ou levantar-se do
lugar onde se estava deitado, retornar ao ponto de partida. Na Septuaginta
(Antigo Testamento traduzido para o grego) e no Novo Testamento, o termo grego
usado é palingenesia (palis = de novo; gênesis =
nascimento). Os cristãos ortodoxos que acreditam na ?ressurreição da carne?
deveriam ponderar como sua crença se conforma com o ensinamento de Paulo de que
?a carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus, nem a corrupção herdar
a incorruptibilidade? (1 Co 15:50), ensinamento também registrado por João:
?O Espírito é que vivifica, a carne para nada serve? (Jo 6:63).
O ser humano não é seu corpo
físico. Esse corpo é apenas sua roupagem de carne, o instrumento de experimentação
no mundo físico usado pelo verdadeiro homem, a alma. Essa roupagem física é
usada pela alma até que venha a ser descartada, como faz o homem com suas
roupas estragadas ou velhas e sem utilidade. O homem, à semelhança das plantas
sazonais, nasce, cresce e, ao fim da estação, morre, para renascer no ciclo
seguinte da semente que deixou para trás. Esse é o sentido do carma, a vida
continua e nada é jamais perdido na vida do ser humano. É por isso que Paulo
dizia: ?Não desanimemos na prática do bem, pois, se não desfalecermos, a seu
tempo, colheremos? (Gl 6:9). A lei não tem nenhuma limitação temporal. Se
as circunstâncias da vida não permitirem que venhamos a colher os frutos de
nossas boas ações ou pagar o preço de nossos erros na atual encarnação, todas
essas ações, positivas e negativas, permanecerão registradas no arquivo divino
indelével, para serem relembradas e recompensadas na ocasião propícia, ainda
que isso possa demandar várias encarnações, ou alguns milhares de anos.
Essas verdades já eram conhecidas
pelos antigos judeus. O salmista contrasta a imutabilidade do Senhor com a
constante mudança dos homens: ?Eles perecem, mas tu permaneces, eles todos
ficam gastos como roupas, tu os mudarás como veste, eles ficarão mudados, mas
tu existes, e teus anos jamais findarão!? (Sl 102:27-28). Os corpos físicos
dos homens são apresentados nessa passagem, como na tradição oriental, como
vestimentas do espírito que habita no homem, que de tempos em tempos são
trocadas. A reencarnação representa a periódica mudança exterior, após a
passagem do homem pelo Xeol (o Hades dos hebreus), com a morte do
corpo físico.
A reencarnação é um elemento
imprescindível no Plano Divino. Nosso ideal último de perfeição registrado pelo
próprio Mestre na famosa injunção: ?Deveis ser perfeitos como o vosso Pai
celeste é perfeito? (Mt 5:48), só poderá ser alcançado se tivermos um
número considerável de oportunidades para cursar a escola da vida, já que o
currículo para graduação na perfeição é extenso e, com freqüência, temos que
repetir a mesma matéria várias vezes até aprender aquela virtude com maestria.
O eterno processo evolutivo, governado pelas leis dos ciclos e de causa e
efeito, fará com que toda alma retorne à escola da vida, por muitas e muitas
vezes, para continuar seu progresso, retomando a vida do ponto em que havia
alcançado anteriormente, tanto no que se refere a dons desenvolvidos como a
fraquezas e vícios. É nesse sentido que o homem é o criador de seu próprio
microcosmo, criando as condições que terá que enfrentar no futuro por meio de
suas ações, palavras e pensamentos no presente.
A concepção teológica de que
Deus nos dá situações inteiramente diferentes na vida, e que mesmo assim todos
devem obter o mesmo resultado, ou seja, a perfeição numa única vida, é um
atentado à inteligência e ao bom-senso. Procuremos imaginar Deus criando todo o
Universo, levando para isso mais de doze bilhões de anos, promovendo um
complexo processo evolutivo em nossa Terra, envolvendo periódicos movimentos
tectônicos, dramáticas transformações geológicas e progressivas transformações
da flora e da fauna por mais de quatro bilhões de anos, para que tivéssemos
agora condições excepcionais para a vida humana. Depois de construir
laboriosamente esse imenso cenário cósmico, esse Deus sábio, implementando Seu
Plano grandioso e complexo com infinita paciência, estabelece para o homem, a
obra prima de toda a criação, a meta de alcançar a perfeição. Imaginemos agora,
que depois de todo esse imenso e lento trabalho, por razões que escapam ao
nosso entendimento, Deus de repente se tornasse impaciente e exigisse que seus
filhos alcançassem a perfeição numa única vida, apesar de todas as diferenças
de oportunidades que seriam dadas a eles. Poderíamos conceber agora que Deus,
movido pela divina compaixão, já que Deus é amor incondicional, condenasse
todos seus filhos amados que falhassem nessa dificílima missão a sofrer
tormentos excruciantes e inconcebíveis num inferno eterno? Esse Deus só pode
ser concebido por mentalidades desinformadas ou até mesmo doentias, que vicejam
em indivíduos alienados dos verdadeiros ensinamentos do Mestre de amor.
As diferentes encarnações
nada mais são do que a operação da lei dos ciclos, ditada pela necessidade da
lei de causa e efeito, para que todos os efeitos sejam experimentados por seu
causador original. Se não houvesse reencarnação não seria possível a operação
da justiça divina assegurando que a retribuição ocorra sempre na mesma
intensidade e natureza da causa original. Alguns teólogos alegam que a justiça
divina será realizada depois desta vida, no céu ou no inferno. Mas, como
criaram um céu e um inferno eternos, criaram também uma eterna injustiça
teológica (não divina), pois nem a intensidade nem a natureza original serão
respeitadas nesse céu ou inferno. Ora, se o inferno é eterno, um erro que
tivesse resultado num sofrimento de duração limitada para nosso próximo, seria
castigado com um sofrimento eterno, o que seria uma intensidade infinitamente
maior do que o efeito causado, o que iria contra a justiça divina. Além disso,
a natureza do prêmio ou do castigo não seria respeitada, pois esses seriam
concedidos num ?lugar? diferente das condições terrenas. Os judeus já sabiam
que o castigo no inferno não era eterno, como indicado na passagem: ?O
Senhor é compaixão e piedade, lento para a cólera e cheio de amor; ele não vai
disputar perpetuamente e seu rancor não dura para sempre? (SL 103:8-9). A
palavra ?disputar? seria mais apropriadamente traduzida como ?repreender?, e
?rancor? como ?ira?. A ira e a repreensão do Senhor referem-se à operação da
lei do carma por meio da reencarnação.
O carma e a reencarnação são
componentes intimamente ligados da lei dos ciclos, pela qual o grande Plano
Divino segue seu curso em nosso planeta. Se a única justiça existente fosse a
dos homens, o mundo seria um caos insuportável, regido pela lei da selva que
prioriza sempre o mais forte. Mas a justiça divina opera por meio da lei de
causa e efeito, sem nenhum limite temporal em virtude das reencarnações
periódicas das almas ao longo dos milênios, até que, após incontáveis eras, o
Plano Divino seja consumado na harmonia e perfeição do Reino de Deus na Terra,
com toda a humanidade fazendo parte da grande Comunhão dos Santos.
Um número crescente de
pessoas vem passando por experiências que confirmam, ao menos para elas, terem
vivido outras vidas no passado. Em alguns casos essas experiências ocorrem
naturalmente, como resultado de uma memória subliminar que permite, geralmente
a crianças e jovens que reencarnaram poucos anos depois de sua morte,
recordarem-se com grande detalhe de sua vida anterior. Mas a maior fonte de
informação tem sido obtida em estados alterados de consciência em que são
feitas regressões a vidas passadas. Alguns médicos e sensitivos desenvolveram
técnicas que permitem essas regressões com resultados terapêuticos
surpreendentes, pois identificam a razão de certos desvios comportamentais
possibilitando sua cura.
Dentre os estudiosos da
técnica de terapia de vidas passadas destaca-se o Dr. Ian Stevenson, professor
de pós-graduação em psiquiatria na Universidade de Virgínia, que constatou mais
de oitocentos casos de evidência reencarnacionista. Outro eminente estudioso é
o Dr. Brian Weiss, diretor de psiquiatria do Mount Sinai Medical Center de
Miami. Apesar de seu ceticismo inicial, o Dr. Weiss verificou que pacientes
induzidos a viagens astrais (fora do corpo) relatavam situações contrárias às
suas crenças religiosas. No caso desses pesquisadores, as conclusões sobre a
realidade da reencarnação foi um corolário da prática de regressão utilizada
como instrumento terapêutico, geralmente sob hipnose, para tratamento e cura de
diversas patologias e problemas de ordem física, emocional ou comportamental
que resistiram a outras terapias convencionais.
Mas, se a reencarnação é uma
realidade, duas perguntas precisam ser respondidas: (1) existe alguma menção
dela na Bíblia? e (2) por que a Igreja afirma que ela não existe? Essas são
perguntas inteiramente pertinentes que merecem ser devidamente exploradas.
A Bíblia contém várias
referências à reencarnação, algumas claras e outras veladas. No Antigo
Testamento, encontramos a passagem em que Jeová afirma: ?Sou um Deus ciumento, que pune a iniqüidade dos pais sobre os filhos até a terceira e quarta geração
dos que me odeiam, mas que também ajo com amor até a milésima geração para
aqueles que me amam e guardam meus mandamentos? (Ex 20:5-6). Se essa
passagem for tomada em seu sentido literal, estaria descrevendo a ação de um
monstro cruel e sanguinário, que, para saciar sua sede de vingança, persegue
seus inimigos até a quarta geração. Essa não pode ser de forma alguma a
caracterização do Pai celestial. Dois grandes profetas de Israel, Jeremias e
Ezequiel, esclareceram que os filhos não pagam pela iniqüidade dos pais e nem
os pais pelos erros dos filhos (Je 31:29 e Ez 18:20). Portanto, quando Jeová
afirma ser um Deus zeloso que visita a maldade dos pais nos filhos até a
terceira e quarta gerações, o entendimento literal da passagem é impossível,
pois estaria em contradição com os esclarecimentos daqueles profetas e iria
contra a justiça e misericórdia divinas.
No seu sentido alegórico,
porém, os que odeiam a Jeová são aqueles que não cumprem seus mandamentos. Além
disso, Jeová representa a operação impessoal da lei de causa e efeito. A
punição ou recompensa concedida (simbolicamente até a quarta ou a milésima
geração) refere-se realmente às reencarnações daquela alma, até que a justiça
divina tenha sido alcançada, pois para o carma não há limitação temporal. A
referência bíblica ao castigo dos filhos do pecador tem uma razão esotérica
para isso. Como cada homem é o criador de sua própria vida, por meio da lei de
causa e efeito, sua futura encarnação pode apropriadamente ser concebida como
sendo seu ?filho?. A vida continua sempre! As tendências observadas em cada
pessoa são expressões das tendências adquiridas em vidas passadas. Tudo tem sua
origem no tempo e no espaço.
Temos no Antigo Testamento,
no Livro da Sabedoria de Salomão, uma das passagens mais claras e explícitas
sobre a realidade da reencarnação como era entendida e aceita pelos judeus: ?Eu
era um jovem de boas qualidades, coubera-me, por sorte, uma boa alma; ou antes,
sendo bom, entrara num corpo sem mancha? (Sb 8-19-20). De acordo com a
atual doutrina da Igreja, Deus cria uma alma nova por ocasião da geração de
cada ser humano, entendido como o corpo físico. Se essa doutrina fosse a
expressão da realidade, como a pessoa que ainda estava em gestação, ou em
processo de nascimento, já poderia ser caracterizada como tendo boas qualidades
para então merecer uma boa alma? Como seria possível, na segunda parte da
passagem, que a pessoa fosse caracterizada como sendo boa, para então entrar
num corpo sem mancha, a não ser que já tivesse vivido antes?
Outra alusão à reencarnação
é encontrada em Jeremias, quando o Senhor dirige-se a ele dizendo: ?Antes
mesmo de te formar no ventre materno, eu te conheci; antes que saísses do seio,
eu te consagrei, Eu te constituí profeta para as nações? (Je 1:5). Se
Jeremias já era conhecido do Senhor antes da concepção, então a doutrina da
Igreja que a alma é criada por Deus no momento da concepção é falsa. Jeremias
foi escolhido para ser profeta em virtude de suas realizações em outras vidas,
que o tornaram capacitado para uma nova missão, importante e difícil.
Talvez a mais direta
passagem bíblica sobre a reencarnação seja aquela referente à vinda de Elias
(profeta judeu que, no século IX a.C., foi elevado ao céu num carro de fogo e
que deveria retornar, no seu devido tempo como precursor do Messias) referida
por Malaquias (Ml 3:23-24) como aquele que viria para preparar o caminho do
Senhor: ?Eis que vos enviarei Elias, o profeta, antes que chegue o Dia do
Senhor, grande e terrível.? A promessa de Jeová deixa claro que a
reencarnação era conhecida e aceita pelos judeus, para que Elias fosse enviado
à Terra mais uma vez, obviamente com um novo corpo físico e uma nova
personalidade, nesse caso como João Batista. Uma promessa divina dessa monta só
seria feita para um propósito muito específico e importante: ?Eis que vou enviar
o meu mensageiro para que prepare um caminho diante de mim? (Ml 3:1).
A realização da promessa de
Jeová é finalmente anunciada a Zacarias, sacerdote do Templo, por um anjo do
Senhor, dizendo que sua mulher, Isabel, iria lhe dar um filho (Lc 1:12), apesar
de ambos serem bem idosos. O anjo anuncia, ademais, que esse filho iria
converter muitos dos filhos de Israel ao Senhor: ?Ele caminhará à sua
frente, com o espírito e o poder de Elias? (Lc 1:17). Na seqüência dessas
profecias, Jesus confirma que João Batista era a reencarnação de Elias. ?Os
discípulos perguntaram-lhe: ?Por que razão os escribas dizem que é preciso que
Elias venha primeiro?? Respondeu-lhes Jesus: ?Certamente Elias terá de vir para
restaurar tudo. Eu vos digo, porém, que Elias já veio, mas não o reconheceram.
Ao contrário, fizeram com ele tudo quanto quiseram. Assim também o Filho do
homem irá sofrer da parte deles.? Então os discípulos entenderam que se referia
a João Batista? (Mt 17:10-13).
Numa outra ocasião, Jesus
perguntou a seus discípulos: ?Quem dizem os homens ser o Filho do homem?
Disseram:?Uns afirmam que é João Batista, outros que é Elias, outros ainda, que
é Jeremias ou um dos profetas?? (Mt 16:13-14). Nenhuma das respostas
aventou a possibilidade de Jesus ser o Filho de Deus, mas sim um dos grandes
profetas da antiguidade, mostrando que a crença na reencarnação era comum
naquele tempo e que Jesus era tido como um grande mestre mas não como um ser
divino. Também não existe nenhuma indicação de que Jesus teria condenado ou
procurado corrigir a opinião das pessoas, deixando entender que ele poderia ser
a reencarnação de um dos profetas. Como instrutor da verdade, se a reencarnação
fosse uma doutrina falsa, Jesus certamente teria aproveitado a oportunidade
para corrigir esse erro.
Várias outras passagens
indicam a aceitação da reencarnação (Lc 1:13-17; Mt 17:9-13; Jo 3:1-15; Mc
8:27-30, Lc 9:18-20), porém, como essa era uma doutrina corrente, Jesus
geralmente referia-se a ela de forma indireta, sabendo que o povo entenderia
seu significado. Um caso em pauta é a história do cego de nascença: ?Ao
passar, ele viu um homem, cego de nascença. Seus discípulos lhe perguntaram:
?Rabi, quem pecou, ele ou seus pais, para que nascesse cego?? Jesus respondeu:
?Nem ele nem seus pais pecaram, mas é para que nele sejam manifestadas as obras
de Deus?? (Jo 9:1-3). Jesus, para quem o passado e o futuro eram como um
livro aberto, respondeu que nem aquele homem nem seus pais haviam pecado para
que a retribuição cármica se fizesse sentir nele. A afirmação de que a cegueira
era para que se manifestassem as obras de Deus deve ser entendida como a
expressão inexorável da lei de retribuição, que pode tardar, mas que será
sentida no seu devido tempo, na mesma vida ou numa outra encarnação.
Obviamente, o bebê não poderia ter cometido um pecado grave no útero da mãe
para merecer nascer cego. A manifestação das obras de Deus, referida por Jesus,
foi uma forma velada de afirmar simbolicamente que a justiça divina estava se
manifestando naquele ser desde seu nascimento, o que só poderia ocorrer se o
pecado tivesse sido cometido numa encarnação anterior. E o povo entendeu
perfeitamente, pois não houve perguntas adicionais.
A parábola dos talentos (Mt
25:14-30) é mais um exemplo bíblico da operação da lei do carma no contexto de
diferentes encarnações. Sua interpretação literal levaria o cristão a acreditar
que Deus é parcial e arbitrário, pois não distribui igualmente seus bens, os
talentos mencionados na parábola, aos seus servos. Para uma interpretação
espiritual da parábola, precisamos, em primeiro lugar, ter em mente que a
divindade (o senhor da história), ainda que apresentada como uma entidade
pessoal, na verdade representa a operação das leis universais impessoais que
regem a manifestação de nosso mundo. Portanto, ?o senhor? está sendo
perfeitamente justo ao entregar a cada um dos três servos quantias diferentes:
cinco, dois e um talento, ?a cada um de acordo com a sua capacidade.? Em
cada encarnação, cada ser humano recebe sua bagagem cármica estritamente de
acordo com sua capacidade, ou seja, de acordo com os méritos acumulados em
vidas anteriores. Se o processo evolutivo não funcionasse dessa forma, fica
difícil explicar como surgem os gênios da humanidade (das artes, da matemática,
das ciências etc.), que desde criança demonstram talentos excepcionais, que não
podem ser explicados meramente em função do ambiente em que vivem. Esses dons
extraordinários das crianças-prodígio só podem ser explicados pela
reencarnação, pois, em cada vida, o ser humano continua seu processo evolutivo
do ponto em que havia chegado em sua encarnação anterior. Por exemplo, Mozart
compôs aos 5 anos uma sinfonia e aos 11, duas óperas; Beethoven era um músico
de talento aos 10 anos; Paganini, o maior violinista que existiu, deu, aos 9
anos, um notável concerto em Gênova; Lizst, deu aos 9 anos seu primeiro
concerto e aos 14 compôs uma ópera; Michelangelo, aos 8 anos conhecia todos os
segredos da arte; William Sidis, aos 2 anos lia e escrevia, aos 4 falava 4
línguas, aos 10 resolvia os mais complexos problemas de geometria, fazendo uma
conferência notável sobre a Quarta Dimensão.
Mas, como Jesus já tinha
alertado em outra ocasião, ?Àquele a quem muito se deu, muito será pedido, e
a quem muito se houver confiado, mais será reclamado? (Lc 12:48). A grande
lei espera que cada um de nós retorne à família humana ou mesmo à natureza os
benefícios recebidos e de acordo com o que lhe foi concedido. Para aqueles que
dão o seu devido retorno, a lei, que é a expressão de Deus, concederá o prêmio
de receber, na próxima encarnação, os dons e qualidades desenvolvidos até
então, bem como maiores oportunidades, para que possam continuar a atuar na
seara do Senhor com responsabilidades cada vez maiores. O carma é, portanto, o
sustentáculo do processo evolutivo.
Mas, se a reencarnação é
mencionada na Bíblia, por que a Igreja não aceita essa verdade reconhecida por
todas as outras grandes tradições espirituais? A resposta a esse enigma requer
uma incursão nos meandros da política teológica da Igreja durante os primeiros
séculos da história do cristianismo.
Paradoxalmente, a condenação
da doutrina da reencarnação pela Igreja ocorreu de forma circunstancial e
indireta. Ela foi conseqüência de uma solução política desastrada para a
controvérsia que perdurou por vários séculos devido ao estabelecimento da
doutrina da divindade de Jesus. A definição da natureza divina de Cristo,
apesar de estabelecida no Concílio de Nicéia (325 d.C.), continuou a encontrar
resistência em muitas correntes de opinião dentro da Igreja, principalmente na
Europa, sendo geralmente referida como a questão ariana. Essa controvérsia
criou problemas políticos de diferentes naturezas para vários papas e
imperadores. O Imperador Justiniano, em particular, tentou em várias ocasiões
encontrar uma solução para a disputa. Finalmente, no Segundo Concílio de
Constantinopla, convocado pelo próprio Imperador, em 553, apesar do boicote do
Papa Virgílio e de grande parte dos bispos ocidentais (somente 165 bispos
participaram, sendo 159 da Igreja Oriental), foi reiterada a condenação do
?arianismo,? como queria o Imperador. Essa vitória foi obtida por meio da
condenação das doutrinas defendidas por três teólogos mortos há muitos anos,
conhecida como a condenação dos escritos dos Três Capítulos. Dentre esses estudiosos
estava Orígenes, profundo conhecedor da tradição cristã, respeitado por todos
que conheciam suas obras. Como se não bastasse a condenação de seus escritos,
Orígenes foi então excomungado quase três séculos após sua morte.
Uma razão adicional para que
Orígenes fosse condenado é o fato dele ter feito inimigos dentro da hierarquia
clerical ao criticar as alterações efetuadas nas Escrituras. Ele indicou que
ocorreram sérios desvios textuais nas cópias das Escrituras, pelo descuido de
alguns escribas, pela audácia perversa de certos exegetas e até mesmo por
adições ou supressões arbitrárias. Uma triste conseqüência dessa condenação
para o cristianismo é o fato de que entre os escritos condenados de Orígenes
estava a doutrina da pré-existência da alma, implícita na reencarnação. A
partir de então a Igreja sustenta a doutrina ilógica de que com a geração de
cada ser humano, subentendido como sendo o corpo mortal, Deus cria uma alma
imortal.
Uma importante razão pela
qual a Igreja Romana não corrigiu mais tarde a decisão absurda do Segundo
Concílio de Constantinopla exigida pelo Imperador Justiniano, foi a prática
estabelecida da ?venda de indulgências?, que criou uma considerável fonte de
renda para os cofres do Vaticano. Um nobre ou um comerciante abastado que
comprasse uma indulgência tinha a sua ?salvação? garantida pelo papa. Ora, se a
doutrina da reencarnação fosse re-instituída oficialmente, não seria mais
possível a venda das indulgências, pois seria do conhecimento de todos que as
almas devem retornar à Terra em novos corpos, em condições determinadas pela
lei da retribuição universal, para que a justiça divina fosse cumprida e o
indivíduo tivesse a oportunidade de progredir rumo à meta final da vida: a
perfeição.
Apesar da reencarnação ser
condenada oficialmente pela Igreja, um número crescente de padres e pastores já
ousa se manifestar em particular ou mesmo em público no sentido de que a
reencarnação é uma realidade e que foi ensinada por Jesus, e como tal aceita
pela maioria dos seguidores do Mestre durante os dois primeiros séculos de
nossa era. Esperamos que a Igreja, que em anos recentes tem mostrado crescentes
sinais de abertura, venha a reconhecer a situação de incoerência a que foi
levada pelo ato insensato do Imperador Justiniano, sob protesto do Papa
Virgílio, e volte a aceitar essa lei universal ensinada por Jesus, que é tão
importante para o nosso entendimento da justiça divina.
A regra de ouro
Ainda que o devoto possa
estar convencido de que a lei de causa e efeito é de fundamental importância
para plasmar sua vida futura, da mesma forma como o presente é a conseqüência
de seus atos, palavras e pensamentos no passado, nem sempre fica claro como
esse conhecimento pode ser usado de forma prática para orientar sua vida atual.
O Divino pedagogo, sabendo das dificuldades usuais da mente humana em traduzir
conhecimento geral em ação prática, legou-nos uma norma infalível para orientar
nosso comportamento diário. Ela é conhecida na tradição cristã como ?a regra de
ouro.?
Entre os maravilhosos ensinamentos
do Mestre apresentados no Sermão da Montanha, encontra-se o fundamento da ética
superior, o padrão que deve orientar a vida de todo aquele que deseja melhorar
sua vida e ser feliz. Essa regra, ainda que aparentemente simples, resume a
essência de tudo aquilo que o homem deve fazer para, no seu devido tempo,
tornar-se um verdadeiro discípulo: ?Tudo aquilo, portanto, que quereis que
os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei e os Profetas?
(Mt 7:12). Temos aqui a referência à Lei, a nossa conhecida lei da retribuição,
que serviu de fundamento para os ensinamentos dos Profetas. No Antigo
Testamento, essa regra foi formulada em sua forma negativa: ?Não faças a
ninguém o que não queres que te façam? (Tb 4:15). A norma proposta pelo
profeta Tobias reflete o grau evolutivo do povo judeu naquela época. A ênfase
do ensinamento divino focava-se em não praticar o mal. Mas, ainda que essa
norma seja necessária para a vida do homem em sociedade, para a vida espiritual
não é suficiente simplesmente não fazer o mal. O discípulo do Senhor tem que
aprender a fazer o bem. Esses dois estágios também foram identificados em
outras tradições; por exemplo, o Senhor Buda ao ser solicitado a resumir seus
ensinamentos, disse: ?Cessai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem.? Vemos,
portanto, que o enfoque proposto por Jesus representa um considerável avanço na
formulação da ética superior dentro da tradição judaica.
A orientação para fazermos
aos outros o que queremos que os outros nos façam, está fundamentada na lei de
causa e efeito, pois nossas ações para com as pessoas que nos cercam
resultarão, no seu devido tempo, em ações semelhantes direcionadas a nós. Jesus
formula essa regra de ouro de forma eminentemente prática. Sabendo que as
pessoas, tanto no tempo em que ele pregou como nos dias de hoje, estão
essencialmente voltadas para o cuidado de si mesmas, ele estabelece que o
padrão do nosso comportamento para com os outros deve ser exatamente aquele que
gostaríamos de receber dos outros. O nosso egoísmo é, nesse caso, usado como um
instrumento para nos tornar altruísta.
Em vez de meramente nos
instar a evitar as negatividades, o Mestre nos direciona sutilmente para o
desenvolvimento das virtudes, pois essas são antídotos naturais contra os
vícios e as fraquezas. Portanto, se quisermos que os outros sejam honestos em
seus negócios conosco, devemos ser honestos com eles; se quisermos que os
outros sejam sinceros conosco, devemos ser verdadeiros com eles; se quisermos
que sejam pacientes e compreensivos conosco, devemos ser pacientes e
compreensivos com eles; se quisermos que sejam bondosos e amáveis conosco,
devemos ser bondosos e amáveis com eles. Temos aí a fórmula simples e prática
que almejávamos para guiar nossa vida diária.
Mesmo nas situações mais
delicadas de nossa vida, teremos sempre orientação confiável ao seguirmos a
regra de ouro. Talvez, um bom exemplo seja o das situações em que julgamos ter
sofrido uma injustiça. Alguém fez ou falou algo que nos parece ofensivo. O que
gostaríamos que os outros fizessem conosco se a situação fosse invertida?
Muitas vezes estamos irritados ou desatentos e não temos realmente o propósito
de magoar os outros. Por que não mostrarmos a compreensão e paciência que
gostaríamos de receber dos outros quando estamos tensos e irritados?
Lembremo-nos, também, de
que não só as ações dos outros podem nos causar sofrimento, mas que, muitas
vezes, sofremos pela inação de nosso próximo. A falta de atenção que os outros
podem mostrar para com nossos momentos difíceis na vida, o desprezo quando a
ajuda é necessária, a desconsideração para com nosso sofrimento ou necessidade
óbvia, todas essas omissões também são resolvidas pela regra de ouro. Jesus nos
alertou de forma enfática para o pecado da omissão quando disse: ?Ai de vós,
escribas e fariseus, hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, do endro e do
cominho, mas omitis as coisas mais importantes da lei: a justiça, a
misericórdia e a fidelidade? (Mt 23:23). Não basta nos preocuparmos com os
pequenos detalhes prescritos para a nossa vida diária, devemos estar atentos às
coisas mais importantes que se esperam de um verdadeiro cristão: a justiça (até
nos pensamentos), a compaixão e a responsabilidade para com nossos deveres e
compromissos.
Nossa vigilância deve ir
além dos atos e palavras, para incluir também nossos pensamentos. Como
gostaríamos que os outros pensassem a nosso respeito: reforçando as
negatividades ou fraquezas que por ventura possamos ter e assumindo que temos
motivações ou interesses escusos? A mente do homem é a maior fábrica de
intrigas que existe no mundo. Ainda que possa parecer que nossos pensamentos
estão restritos ao âmbito de nossa cabeça e não atingem as pessoas, isso é um
erro. Os pensamentos, como tudo o que ocorre e existe no mundo, são vibrações
que se espalham pelo meio ambiente mental, afetando, ainda que de forma sutil,
as pessoas a quem se referem. Além disso, o pensamento é a etapa de gestação de
uma futura palavra ou ação. Por essa razão Jesus nos ensinou que: ?A boca
fala daquilo que o coração está cheio? (Mt 12:34). Por todas essas razões,
também devemos pensar a respeito dos outros como gostaríamos que pensassem a
nosso respeito.
Porém, um ensinamento só
afeta nossa vida quando é colocado em prática. Jesus foi muito enfático sobre esse ponto ao dizer: ?Todo aquele que ouve essas minhas palavras e as põe em prática
será comparado a um homem sensato que construiu a sua casa sobre a rocha. Caiu
a chuva, vieram as enxurradas, sopraram os ventos e deram contra aquela casa,
mas ela não caiu, porque estava alicerçada na rocha. Por outro lado, todo
aquele que ouve essas minhas palavras, mas não as pratica, será comparado a um
homem insensato que construiu a sua casa sobre a areia. Caiu a chuva, vieram as
enxurradas, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela caiu. E foi
grande sua ruína!? (Mt 7:24-27). A casa representa a natureza exterior do
homem. Quer o homem seja sensato ou insensato, as tentações e provações,
simbolizadas pela chuva, enxurradas e os ventos, irão minar a resistência da
alma. Porém, se sua vida exterior estiver alicerçada na rocha da prática dos
ensinamentos do Mestre, ele não se deixará abater e permanecerá firme em meio a
todas as provações. No entanto, o cristão que aprende os ensinamentos sem
colocá-los em prática, estará alegoricamente construindo sua vida sobre a areia
e, mais cedo ou mais tarde, entrará em colapso moral e grande será a ruína de
sua alma.
Para que a regra de ouro
possa realmente orientar todos os passos de nossa vida, temos que a tornar
operacional, lembrando-nos dela a todo instante ou pelo menos de manhã e em
outros momentos pré-estabelecidos. É importante, também, meditarmos
periodicamente sobre como gostaríamos de ser tratados se estivéssemos na
posição de cada um de nossos filhos, nosso companheiro(a) de vida, nossos pais,
amigos, colegas de trabalho, chefe, subordinados, empregados domésticos,
atendentes de lojas etc. Essa consideração da posição do outro, do ponto de
vista ou interesse das pessoas que nos cercam, é extremamente importante. Se
realmente adotarmos essa postura, procurando imaginar-nos na posição do outro,
teremos dado um passo gigantesco na vida espiritual, pois estaremos quebrando a
rígida estrutura do egoísmo que até então governava nossas vidas. Muito
rapidamente vamos verificar que, por termos mudado a nossa atitude interior,
nossa vida exterior vai mudar também. A cordialidade, sinceridade, compreensão
e empatia que estaremos devotando aos outros, retornará para nós na forma de um
ambiente de harmonia, paz e crescente felicidade.
Na medida em que nossa
rotina diária passar a ser regida pela regra de ouro, poderemos aprofundar e
consolidar a ética superior em nossa vida por meio de um estudo meditativo
sobre o âmago dos ensinamentos do Mestre: o Sermão da Montanha. Os ensinamentos
apresentados no Sermão, que compreende os capítulos 5, 6 e 7 do Evangelho de
Mateus, provavelmente não foram todos apresentados num único dia e no mesmo
lugar. Pela sua extensão e abrangência, é mais provável que seja uma coletânea
de ensinamentos, em linguagem mais direta, dados aos discípulos quando estavam
num estado elevado de consciência (na montanha), e que foram transmitidos ao
longo do ministério de Jesus, tendo sido, contudo, reunidos em um só lugar por
Mateus. Tanto assim que nos outros evangelhos eles não estão reunidos num só
lugar nem são apresentados em sua totalidade. Aquele que for capaz de entender
todas as implicações desses ensinamentos e praticá-los já terá
assegurado a sua condição de discípulo do Mestre.
A prática da regra de ouro
mudará radicalmente nossa atitude frente à vida. Passaremos a ser mais
responsáveis em nossos relacionamentos e, com isso, criaremos um ambiente mais
harmônico ao nosso redor. Mas esse conhecimento transformador não deveria ser
restrito àqueles que buscam as verdades um tanto esquecidas de nossa tradição
cristã. Dado seu potencial para promover a paz e a harmonia social, deveria ser
incluído, juntamente com o meio ambiente, no currículo de nossas escolas. Assim
como a disseminação das noções básicas de higiene aos diferentes segmentos da
população diminuiu consideravelmente a incidência de doenças infecto
contagiosas na sociedade moderna, a disseminação do conhecimento da lei de
causa e efeito e de sua implementação prática por meio da regra de ouro como
parte do currículo escolar em todos os níveis, muito contribuiria para a
criação de um ambiente social mais justo e harmônico.
Porém, não basta estarmos
conscientes da lei divina e decidirmos que nossa vida passará a ser orientada
por ela. Sabemos que os hábitos adquiridos tornam-se uma segunda natureza e são
difíceis de mudar. Na prática, tudo parece conspirar para que retornemos à
velha atitude egoísta de desconsiderar o interesse dos outros. Para garantirmos
o sucesso da mudança do homem velho no homem novo de que fala Paulo, teremos
que montar uma estratégia como fazem os administradores profissionais.
Uma vez tomada a decisão
sobre o objetivo a ser alcançado e sobre o método a ser empregado para a sua
realização, torna-se necessário estabelecer um sistema de monitoramento do
progresso diário do empreendimento. Esse sistema de monitoramento de nossa vida
pode ser efetuado por meio da revisão diária, também chamada de ?exame de
consciência? na tradição cristã. Para isso devemos dedicar uns 5 a 10 minutos, de preferência no final do dia, para efetuarmos uma revisão objetiva de nosso
comportamento para com os outros, verificando em que ocasiões nossas ações,
palavras e pensamentos foram guiados pela regra de ouro e as outras ocasiões em
que os velhos hábitos levaram a melhor. Podemos estar certos de que, por algum
tempo, ainda estaremos sob a influência de nossa atitude de miopia egoísta
anterior. Mas, se detectarmos os tipos de situações em que isso acontece, bem
como a motivação que nos leva a agir assim, aos poucos iremos eliminando cada
uma das situações em que tendemos a deixar que nosso lado sombra leve a melhor.
Mas isso só poderá ser feito se o processo de monitoramento da revisão diária
tornar-se uma rotina.
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