7. OS INSTRUMENTOS INTERIORES
A purificação
Vimos que o conhecimento da
verdade exterior, ou teórica, é necessário, mas não suficiente para a nossa
libertação. Sabemos também que a verdade libertadora só será conhecida quando
comungarmos em consciência com o Cristo interior. Para que isso ocorra
precisamos nos valer de instrumentos interiores. Cristo já se encontra em nosso
interior. O que precisamos fazer é criar uma sintonia que possibilite a nossa
consciência usual exterior alcançar o nível do Cristo interior. Esse ponto deve
ser bem compreendido: numa primeira etapa, é a consciência do homem exterior
que deve ser elevada ou expandida ao nível do Cristo interior. Uma vez
estabelecida essa ponte com a consciência do Alto, o processo de purificação e
subtilização do corpo material prosseguirá até que nosso cérebro possa captar
também a luz do Alto.
A ciência moderna nos ensina
que tudo o que existe no mundo é, em última análise, a expressão de uma
determinada vibração. Para que possamos estabelecer a sintonia desejada com o
Cristo interior, devemos criar as condições vibratórias apropriadas. Isso envolve
três etapas. A primeira é a retirada de todas as vibrações pesadas
incompatíveis com a presença de Cristo em nossa vida. A segunda é a criação de
vibrações elevadas que facilitem nossa aproximação da Fonte da Verdade.
Finalmente, deveremos estabelecer a ponte vibratória para que nossa consciência
possa atravessar o abismo que existe entre o plano material e o espiritual.
Toda vibração material
pesada cria uma desarmonia com o plano espiritual. A crueldade, os pecados
contra a vida, a verdade e o amor, bem como os vícios são as vibrações mais
pesadas, constituindo o fundo do poço da situação humana. A primeira
preocupação de todo devoto que aspira aproximar-se de Cristo é proceder a uma
drástica eliminação de todos seus vícios e fraquezas. Algumas pessoas poderiam
questionar que alguns dos assim chamados vícios não afetam a vida dos outros,
como por exemplo a gula e o fumo. No entanto, mesmo se isso fosse verdade, o
que não é, esses vícios afetam a vida do devoto, em particular, afetam sua
capacidade de estabelecer e manter uma disciplina de vida. Lembremos que a
entrada triunfal de Cristo na Cidade Santa de Jerusalém só pode se dar com o
Cristo montado num jumentinho, o quadrúpede que representa nossa natureza
inferior, que deve ser inteiramente disciplinado e dócil, capaz de atender ao
menor comando de seu Senhor. Enquanto houver o mais leve resquício de vício ou
fraqueza em nossa natureza exterior, não estaremos qualificados para servir
como veículo do Senhor para assim entrar na Cidade Sagrada, ou seja, para
alcançarmos a comunhão com a Verdade.
Quando cedemos aos nossos
desejos e paixões estamos nos submetendo à nossa natureza inferior, daí a
necessidade imperiosa da disciplina. Quando exercemos a disciplina, quem
governa é a natureza superior. Cada vitória na obtenção de uma vida
disciplinada fortalece o poder da alma sobre a personalidade, acelerando o
momento de glória e paz em que o Cristo interior assumirá o controle de nossa
vida.
A literatura sobre a vida
dos místicos está repleta de informações sobre as extenuantes e longas práticas
que esses atletas espirituais estabelecem para sua purificação. Se os atletas
em nosso mundo material preparam-se com tanto afinco e dedicação, treinando e
revisando todas as técnicas por vários anos, para alcançar um momento
passageiro de glória nas competições esportivas, como poderemos imaginar que a
disciplina exigida dos atletas espirituais venha a ser menor, considerando que
eles estão buscando alcançar uma glória incomparavelmente mais elevada e que
jamais lhes será tirada?
Que arma deve ser usada para
vencer nossas fraquezas? Essa arma é a vontade, o poder divino que atua em
todos os níveis. Sabemos que mesmo nos devotos mais ardentes existe sempre pelo
menos um ponto fraco que perdura apesar de todos seus esforços e que,
conseqüentemente, atrasa seu progresso. Chega um momento em que essa fraqueza
precisa ser superada. As fraquezas do corpo relacionam-se com drogas, bebida,
comida ou sexo. As da mente, com a vaidade, orgulho e impaciência. Todas elas
precisam ser vencidas. O corpo deve ser inteiramente conquistado e oferecido
como oblação no altar do coração ao Supremo Mestre.
Porém, alguns místicos, em
seu afã de purgar o mais rapidamente possível suas fraquezas, dedicam-se a
asceses extremadas voltadas para a punição do corpo. Por muitos séculos
perdurou nos meios monásticos a idéia de que o corpo era o culpado pelos
pecados da carne. Os místicos mais experientes sabem que no ser humano existe
uma hierarquia como em todos os sistemas do mundo. O corpo é governado pelas
emoções e pela mente. Portanto, são as nossas emoções e a mente que devem ser o
objeto de nossa ascese. O desejo de gratificação dos sentidos, que é reforçado
pela mente, é que leva o ser humano a cair repetidamente no erro. Esses
desejos, com o tempo, tornam-se hábitos que passam a ser considerados como
?normais?, tornando a alma prisioneira dessas tendências inconscientes.
Paulo, o grande Apóstolo,
referiu-se ao poder escravizador das tendências numa passagem inesquecível: ?Realmente
não consigo entender o que faço; pois não pratico o que quero, mas faço o que
detesto. Na realidade, não sou mais eu que pratico a ação, mas o pecado que
habita em mim. Eu sei que o bem não mora em mim, isto é, na minha carne. Pois o
querer o bem está ao meu alcance, não porém o praticá-lo. Com efeito, não faço
o bem que eu quero, mas pratico o mal que não quero? (Rm 7:15, 17-19).
Todo ser humano já passou
pela perplexidade de desejar um determinado comportamento virtuoso e agir de
forma contrária. Os hábitos arraigados em nossa vida muitas vezes tornam-se
vícios. Como podemos combatê-los, bani-los de nossa vida? Vale lembrar que
combater um vício é a maneira negativa de lidar com a fraqueza. A maneira
positiva, e muito mais eficiente, é promover a virtude oposta àquele vício ou
fraqueza. Assim como a escuridão é o oposto da luz, a matéria o oposto do
espírito, o vício é o oposto da virtude. As virtudes são características de
nossa natureza espiritual, que têm como seu oposto, no mundo da matéria, os
vícios. Portanto, quando promovemos as virtudes estamos concomitantemente
rejeitando e combatendo os vícios e fraquezas que lhes são opostos. Procure
recordar-se da pessoa mais santa que você conhece; não importa quem seja essa
pessoa, o que ela tem de mais marcante é uma série de virtudes que saltam aos
olhos daqueles que a conhece.
A primeira etapa da
purificação visa os sentidos. A tendência para a sensualidade deve ser
controlada. Isso não significa que o devoto não poderá mais sentir nenhum
prazer do paladar, da audição, da visão, etc. Vivemos no mundo e estamos
sujeitos a todo tipo de experiência, algumas prazerosas, outras desagradáveis e
outras, ainda, indiferentes. O importante para o aspirante é superar o apego
que lhe leva a buscar a repetição das experiências prazerosas. A atitude ideal
é descrita como viver no mundo sem ser do mundo. O nosso foco de vida ou centro
de interesse deve ser transferido do mundo material para o espiritual.
A etapa seguinte do processo
de purificação refere-se ao controle das palavras. Nossas palavras afetam o
mundo ao nosso redor. Em primeiro lugar, um buscador da Verdade só pode
proferir palavras verdadeiras. Sabemos que em nosso mundo de falsidades passa a
ser normal, e até mesmo esperado, as pequenas mentirinhas sociais. Quantas
vezes já mandamos nossos filhos ou a empregada dizer ao telefone que não
estamos quando aquela pessoa que estamos querendo evitar nos telefona? Uma
forma de mentira, que muitas vezes passa despercebida em nossa vida diária, é o
exagero ou a meia verdade. O aspirante à vida espiritual deve ter um
compromisso inabalável com a verdade. Mas o pior são as maledicências. Temos o
costume de falar da vida alheia, achando que é nosso direito fazer qualquer
comentário que nos venha à cabeça. Quantas vezes já afirmamos coisas a respeito
dos outros que simplesmente ouvimos dizer de terceiros, sem saber ao certo se
eram verdadeiras ou não? E mesmo quando algo é verdadeiro, estamos sendo
caridosos se repetimos as fraquezas de nosso próximo? Vale lembrar a
admoestação de Tiago: ?Que seja cada um de vós pronto para ouvir, mas tardio
para falar e tardio para encolerizar-se: pois a cólera do homem não é capaz de
cumprir a justiça de Deus. Se alguém pensa ser religioso, mas não refreia a sua
língua, antes se engana a si mesmo, saiba que a sua religião é vã? (Ti
1:19-20, 26).
Vale a pena lembrar, nesse
particular, a regra de ouro. Estamos falando sobre os outros coisas que
gostaríamos que os outros falassem a nosso respeito? Não podemos nos esquecer
que nossas palavras devem ser verdadeiras, bondosas e úteis. Quantas palavras
inúteis e fúteis dizemos todos os dias? Nesse particular, devemos ter sempre em
mente o que Jesus disse sobre nossas palavras: ?De toda palavra inútil, que
os homens disserem, darão contas no Dia do Julgamento. Pois por tuas palavras
serás justificado e por tuas palavras serás condenado? (Mt 12:36).
Mas não basta a purificação
das ações e das palavras. Os nossos pensamentos têm um impacto bem maior do que
geralmente imaginamos. Eles são realidades no mundo invisível do plano mental.
Todo pensamento que temos sobre uma determinada pessoa busca, por afinidade,
aquela pessoa e passa a influenciá-la. Portanto, os pensamentos negativos são
como palavras silenciosas que contribuem para fortalecer o miasma nocivo e
pesado que paira sobre nossas cidades, contribuindo para o clima de violência,
pessimismo e sordidez. O controle dos pensamentos é particularmente importante
para todo aquele que aspira se tornar um discípulo e servidor do Mestre. O
controle da mente é, na verdade, o objetivo de um dos mais poderosos exercícios
espirituais, a meditação. Teremos mais a dizer sobre isso neste trabalho.
Tendo purificado, ou pelo
menos nos conscientizado da necessidade de purificação de nossas ações,
palavras e pensamentos, falta ainda mais alguma coisa para ser purificada? Sim!
Algo mais profundo ainda e que modifica o mérito de todas nossas ações, qual
seja, nossas atitudes interiores, nossas intenções. Os ensinamentos de Jesus no
Sermão da Montanha são taxativos a esse respeito: ?Guardai-vos de praticar a
vossa justiça diante dos homens para serdes vistos por eles. Do contrário, não
recebereis recompensa junto ao vosso Pai que está nos céus. Por isso, quando
deres esmola, não te ponhas a trombetear em público, como fazem os hipócritas nas
sinagogas e nas ruas, com o propósito de serem glorificados pelos homens. Em
verdade vos digo: já receberam a sua recompensa? (Mt 6:1-2).
A verdadeira pureza de
coração é aquela em que nossas intenções e motivações interiores estão
inteiramente voltadas para o bem do próximo, e não para atender a nosso próprio
interesse. A pureza de coração será refletida em ações, palavras e pensamentos
puros; essa verdade está refletida na passagem bíblica: ?Bem-aventurados os
puros de coração, porque verão a Deus? (Mt 5:8). Os puros de coração são
aqueles seres simples e sinceros que agem espontaneamente sem segundas
intenções. Mais uma vez temos a confirmação de que para alcançar a Verdade
libertadora, expressa na passagem bíblica como a visão de Deus, temos que nos sintonizar
com o Divino em nós.
A purificação mais difícil é
a do egoísmo e do orgulho. Essas duas máculas, originadas do sentido exaltado
de separação acompanham o homem até o limiar do portal do Reino dos Céus. Elas
são os piores inimigos da alma, as mais resistentes a todas nossas tentativas
de extirpá-las. A razão para isso é que o egoísmo e o orgulho estão enterrados
no âmago de nossa natureza material separativista. Estão escondidos
profundamente em nosso inconsciente. Precisamos trazê-los à tona, para
podermos, então, lidar com eles. Os psicólogos modernos estão cientes da
dificuldade de lidar com o inconsciente. Uma passagem do texto conhecido como
Evangelho de Felipe aborda com especial felicidade esse tema:
?(A maior parte das coisas)
no mundo, enquanto suas (partes internas) estão ocultas, ficam de pé e vivem.
(Se são reveladas), morrem. Enquanto a raiz está escondida ela brota e cresce.
Se suas raízes são expostas, a árvore seca. Assim ocorre com todo nascimento no
mundo, não só com o revelado, mas (também) com o oculto. Porque, enquanto a
raiz da maldade está escondida, essa permanece forte. Mas quando é reconhecida
ela se dissolve. Quando é revelada ela morre. É por isso que a Palavra disse:
?O machado já está posto à raiz da árvore.? Ele não só cortará ? o que é
cortado brota outra vez ? mas o machado penetra profundamente até trazer a raiz
para fora. Jesus arrancou inteiramente a raiz de todas as coisas, enquanto
outros só o fizeram parcialmente. Quanto a nós, que cada um cave em busca da
raiz do mal que está dentro de si, e que ele seja arrancado do coração de cada
um pela raiz. O mal será arrancado se nós o reconhecermos. Mas se o ignorarmos,
ele se enraizará em nós e produzirá seus frutos em nosso coração.?
Combater as pragas do
egoísmo e do orgulho diretamente pode ser um exercício frustrante, pois, mesmo
quando fazemos progresso numa determinada área, se formos atentos,
verificaremos que a mesma erva daninha aparecerá outra vez em novas
circunstâncias de nossa vida. Como as raízes desses males derivam-se da ilusão
de sermos seres separados e independentes do resto da humanidade, a única
maneira de extirpá-los é desenvolvendo a verdadeira entrega a Deus. Quando
desbancarmos o usurpador do trono do Rei, a personalidade egoísta, o governante
de nosso mundo externo, e recolocarmos a Suprema Autoridade no poder, passando
a viver constantemente como servos do Senhor, procurando em todas as ocasiões
executar a vontade Dele e não a nossa, veremos que não existirá mais espaço
para o egoísmo e o orgulho em nossas vidas. Teremos, então, rompido o circulo
vicioso da vida mundana e entrado no círculo virtuoso do verdadeiro devoto.
Seremos, então, como sóis, iluminando a todos com a sabedoria divina que então
estará a nossa disposição, e com o calor do amor divino aqueceremos o coração
de todos os que nos cercam.
O crescimento espiritual
gerado pela purificação é um processo dinâmico que nunca cessa, nunca termina.
Por isso, o devoto que aspira alcançar a verdade deve estar sempre atento,
buscando detectar em seu interior as falhas que porventura ainda existam, para
então superá-las, e procurar no mundo exterior maneiras de ajudar o próximo,
sem infringir os limites do bom senso e do livre arbítrio. Não importa o nível
de realização espiritual alcançado, o devoto nunca deve se deixar embalar pela
auto-satisfação: sempre existe espaço para melhorar. Essa atitude caracteriza
os verdadeiros místicos. Eles nos surpreendem com sua constante crítica de si
mesmos. A necessidade de devotarmos constante atenção para a autotransformação
faz com que alguns instrutores sugiram que, um pecador descontente, mas que
procura a mudança, seja maior do que um Santo que está satisfeito consigo
mesmo.
Jesus alertou-nos sobre a
necessidade de constante atenção com as tentativas de nossa natureza inferior
de retomar o controle de nossa vida. Suas palavras devem permanecer conosco,
ecoando em nosso coração: ?Vigiai e orai, para que não entreis em tentação,
pois o espírito está pronto, mas a carne é fraca? (Mt 26:41). Para
facilitar a permanente atenção ao nosso comportamento, de forma que a
purificação de nossas fraquezas seja constante e haja o mínimo de recaídas, é
imprescindível a revisão diária de nossas ações, processo conhecido nos meios
eclesiásticos como ?exame de consciência?. Quando estabelecemos um rígido
programa de revisão diária de nosso comportamento ao final do dia, passamos a
identificar as ações, palavras e pensamentos habituais que vão contra nossos
propósitos elevados, que, de outra forma poderiam passar despercebidos. Ora, só
podemos combater os inimigos que conhecemos. Por isso, torna-se absolutamente
necessário identificarmos esses inimigos insidiosos que permanecem escondidos
em nossos hábitos, para que eles sejam conhecidos pelo que são: inimigos da
alma. Ao identificarmos nossos hábitos negativos estaremos retirando-os do
inconsciente e trazendo-os para nosso consciente, onde poderão ser percebidos,
controlados e, finalmente, eliminados.
O trabalho de
autotransformação é um processo penoso que demanda muita dedicação e esforço a
ponto de ser comparado às doze tarefas mitológicas de Hércules. O verdadeiro
progresso é lento e deve ser consolidado ao longo do tempo para que não haja
recaída nos velhos hábitos. Nossa sociedade, obcecada com o corpo físico, já
aprendeu que o progresso na modelação do corpo pela musculação é lento, penoso
e demanda muita persistência. Mais lento e árduo ainda é o fortalecimento da
alma face à inércia dos maus hábitos. No entanto, o devoto não deve desanimar
de antemão pois o bom Deus jamais coloca nos ombros de seus filhos uma carga
mais pesada do que podem carregar.
Todo aquele que já tentou se
livrar de algum vício ou mesmo de um hábito nocivo sabe como isso é difícil.
Para essas pessoas, uma das maneiras mais efetivas para encontrar orientação e
força para perseverar ao longo do processo de mudança é a participação em
grupos de auto-ajuda, como a AAA (Associação dos Alcoólicos Anônimos), os
Vigilantes do Peso, e outras associações congêneres. Esses grupos geralmente
seguem a linha estabelecida pelos fundadores da Irmandade dos Alcoólicos
Anônimos, que certamente receberam inspiração do Alto para aquela nobre missão
de resgate de tantas almas perdidas no vício. Essas orientações, de cunho
nitidamente espiritual, podem ser acompanhadas com proveito no livro Os Doze
Passos e As Doze Tradições.
Os membros desses grupos conseguem, com muita dedicação e perseverança, dar a
volta por cima e mudar inteiramente suas vidas. O mais interessante é que uma
das principais fontes de força para permanecerem sóbrios é a ajuda que passam a
dar a outros irmãos que estão lutando para livrar-se da prisão do vício.
Tornam-se, com isso, verdadeiros apóstolos da boa nova de que é dando ajuda que
se recebe ajuda, inclusive para vencer a fraqueza e o vício. A mudança de
nossos hábitos materiais em hábitos espirituais é ainda mais difícil do que a
luta contra alguma fraqueza ou vício específico, porque o inimigo nesse caso é
a lendária Hidra de sete cabeças, que é o egoísmo, a fonte de todos os vícios.
O amor
Com um sistemático programa
de purgação das negatividades de nossa vida, estaremos eliminando
progressivamente os obstáculos e impedimentos que nos afastam do Senhor, a
fonte da Verdade. Estaremos, então, em posição de cultivar a vibração elevada
que possibilita a sintonia desejada. De todos os atributos divinos, o amor é o
mais distinto e tocante. A beleza, a paz, a harmonia e o conhecimento também
são atributos divinos e certamente constituem vibrações capazes de nos
aproximar do Supremo Bem. No entanto, o amor tem uma qualidade especial que nos
atrai.
E, por que o amor nos atrai?
Porque o amor é uma das energias mais primevas e básicas do mundo manifestado,
podendo ser considerado como a essência da natureza divina. O amor é uma
energia que surgiu no momento em que o Universo foi constituído. Quando Deus, o
Uno, desejou manifestar-se como a infinidade da diversidade, criou
concomitantemente uma força que harmonizasse a tendência separatista do mundo
que estava sendo criado. O amor é uma expressão dessa força, conhecida como a
lei universal da atração. O amor é a garantia de que o mundo manifestado
seguirá o Plano Divino, passando por todas as etapas do processo de
experimentação ou aprendizado inerente à diversidade, retornando finalmente
para a unidade, na medida em que a força de atração do amor for vencendo a da
separatividade da matéria.
A lei da atração universal
manifesta-se de inúmeras formas: no mundo infinitamente grande da mecânica
celestial, como a lei da gravitação universal; no mundo infinitamente pequeno
dos átomos, como energia atômica; nos diversos reinos da natureza, como coesão
molecular, como lei da gravidade, como afinidade química, como magnetismo, como
equilíbrio ecológico, como coesão das células, tecidos e órgãos de todo
organismo, enfim, como uma série de forças que atuam para que os diferentes
aspectos da natureza, em todos seus níveis, possam manter sua coesão e
coexistir com todas as outras coisas, num ambiente cuja tendência é a harmonia
dinâmica de todas as partes, cada qual caminhando rumo à evolução.
No reino humano, em que a
multiplicidade no plano físico é exacerbada pela separatividade da mente, a
atuação do amor é especialmente importante. Num nível mais elementar, ele é a
força que atrai os sexos opostos para que a perpetuação das espécies possa ser
garantida. É a força neutralizadora do amor que cria o instinto maternal, em
que a mãe, e a seu modo também o pai, passa a dedicar-se e, mesmo, a
sacrificar-se por seus filhos. É a força que leva os indivíduos a se agregarem
em grupos cada vez mais extensos e diferenciados, como a família, a tribo, a
comunidade, a cidade, a etnia, a associação religiosa, a nação e, chegará o
dia, a família humana unida e administrada como uma única nação. Quando
alcançarmos a experiência do amor universal estaremos em condição de conhecer o
princípio do amor, que é Deus.
O amor é infinito, mas o ser
humano parece percebê-lo em camadas. Não importa quão profundo e rico seja a
manifestação do amor experimentada num determinado momento, existem sempre camadas
mais profundas que serão reveladas na medida em que o ser humano entregar seu
coração em doação altruísta e incondicional. A experiência das camadas do amor
que estão ao nosso alcance aguça nossa percepção para novos aspectos do amor.
O amor nos proporciona a
armadura para vencer as mais nefastas forças desagregadoras da humanidade: o
ódio e o egoísmo. Os seres verdadeiramente amorosos cativam a todos. As pessoas
sentem-se instintivamente atraídas por eles. A razão por trás disso é que o
âmago de nosso ser é amor, pois nossa natureza divina interior é amor, ainda
que geralmente esse amor não consiga manifestar-se plenamente por estar abafado
pelo domínio da personalidade egoísta. Portanto, como o semelhante atrai o
semelhante, o Cristo interior em nós, o puro amor latente, sente-se atraído
pelo amor exterior atuante manifestado em qualquer pessoa.
O amor incondicional de Deus
pelos homens é um fato incontestável. Uma expressão desse amor incondicional é manifestada
pelo Sol, que ilumina e aquece a todos, sejam eles cristãos ou pagãos, santos
ou pecadores. Jesus, ao pregar a necessidade de amarmos a todos os seres,
explica que quando fizermos isso estaremos agindo como verdadeiros filhos que
seguem o exemplo do Pai que está nos céus, ?porque ele faz nascer o seu sol
igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos? (Mt
5:45).
Deus é amor! Ele nos ama de
forma total e incondicional. Essa verdade universal e atemporal está reiterada
ao longo da Bíblia, tanto no Antigo como no Novo Testamento. Algumas poucas
passagens servirão para refrescar nossa lembrança e reforçar nossa determinação
de permanecer no amor divino.
?Eu amo aqueles que me
amam, e aqueles que me procuram encontram-me? (Pr 8:17)
?Deus demonstra seu amor para
conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando éramos ainda pecadores? (Rm 5:8).
?Que Cristo habite pela fé em vossos
corações e que sejais arraigados e fundados no amor. Assim tereis condições
para compreender com todos os santos qual é a largura e o comprimento e a
altura e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo que excede a todo
conhecimento? (Ef 3:17-19).
?Tornai-vos, pois, imitadores de
Deus, como filhos amados, e andai em amor, assim como Cristo também nos amou e
se entregou por nós? (Ef 5:1-2)
?Deus é amor: aquele que permanece no
amor permanece em Deus e Deus permanece nele? (1 Jo 4:16).
Os místicos de todos os
tempos sabem, por experiência própria, que Deus é amor, o mais puro,
verdadeiro, total e incondicional amor que existe. Poderíamos imaginar que o
amor de Deus experimentado pelos místicos, pelo fato deles estarem a caminho da
santidade, não seria necessariamente a experiência das pessoas comuns. Puro
engano. Não só as pessoas comuns, mas até mesmo algumas que cometeram ou
tentaram cometer um dos maiores crimes, o suicídio, tiveram a comprovação cabal
do amor incondicional de Deus por elas. Nas últimas décadas, pesquisadores vêm
coletando relatos de pessoas que passaram por experiências geralmente referidas
como de quase morte, ou experiência perto da morte (EPM), que revelam aspectos
da vida ignorados pela maior parte das pessoas.
Talvez o mais conhecido
pesquisador nessa área seja o médico americano, R.A. Moody Jr.
Usando, porém, os relatos contidos num livro disponível em português, podemos acompanhar
a experiência de pessoas comuns que, em virtude de um acidente, uma operação
cirúrgica ou mesmo um atentado contra sua própria vida, passaram pelas
primeiras etapas da morte. Apesar das características pessoais desses relatos,
alguns pontos comuns são observados. Quase todos descrevem o sentimento de
passarem por uma espécie de túnel escuro em alta velocidade, de fazerem uma
revisão extremamente rápida, mas completa, de toda sua vida, percebendo as
conseqüências de seus atos e como que julgando a si mesmos, e, o mais marcante,
a aproximação de uma luz fulgurante que é a mais forte expressão do amor que
jamais experimentaram. Essa luz amorosa é geralmente descrita como Deus pela
maior parte dessas pessoas. A experiência de Janet, que passou por uma EPM em
conseqüência de uma cirurgia, foi descrita em suas palavras, assim:
?Senti uma paz total, um
êxtase total. E o tempo não existia. Eu então senti que estava me movimentando
muito rapidamente, no que parecia ser o espaço exterior. E eu me dirigia para
uma luz muito brilhante. Parei antes de alcançar a luz. E senti essa grande
presença de amor, amor absoluto. Houve então uma revisão de toda a minha vida.
Lembro de olhar para ela, avaliá-la e julgá-la por mim mesma. Senti que ninguém
mais me julgou ? eu julguei a mim mesma. Acho que a maior vergonha que senti em
relação à minha vida foi o fato de ter rejeitado totalmente o conceito de Deus.
Eu não havia dado, em absoluto, nenhum reconhecimento a Deus, eu realmente não
acreditava em Deus. E senti uma tamanha tristeza por ter duvidado de que Deus
existia, pois Ele era tão real e tangível ? a essência total do amor. Digo
?Ele?, mas isso é apenas o meu condicionamento. Deus era apenas essa essência,
essa essência total de amor.?
Jesus, ao ser perguntado
qual era o maior mandamento, respondeu: ?Amarás ao Senhor teu Deus de todo o
teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Esse é o maior e
o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: Amarás o teu próximo como
a ti mesmo. Desses dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas? (Mt
22:37-40). Sabemos que Deus tem um plano divino, e que o propósito do homem
nesse plano é realizar a sagrada missão de manifestar sua natureza espiritual
em sua natureza material. Em virtude da liberdade de ação e pensamento que Deus
nos concedeu (o livre arbítrio), Seus mandamentos dirigidos à humanidade não
têm um sentido de proibição ou exigência impositiva do Governante para com seu
súdito. Ao contrário, refletem a suprema compaixão e sabedoria do Pai Celestial,
pois visam facilitar a jornada de seus filhos rumo à realização desse plano e,
conseqüentemente, a realização da suprema bem-aventurança de todos os seres
humanos.
Procuremos examinar com mais
atenção esses dois mandamentos dos quais dependem toda a lei e os ensinamentos
dos profetas. O primeiro ponto que nos chama a atenção é o fato do
Mestre nos instar a amar ao ?Senhor teu Deus?. Por que Jesus não diz
simplesmente amar a Deus, expressando assim a realidade impessoal de que só
existe um Deus, que é o Deus de todos os homens, de todos os seres e de todas
as coisas? A expressão de Jesus, porém, nos remete ao aspecto pessoal de Deus
em nós, Deus imanente, ou seja, ?teu Deus.? O referencial do objeto de
nosso amor como sendo Deus interior, facilita a missão do homem de amar ao seu
Deus interior de todo seu coração e com toda sua alma, pois Deus não mais será
concebido como um Deus transcendente e, portanto, distante, mas sim como
estando muito perto, na verdade, no âmago de nosso coração.
Jesus acrescenta ainda, que
devemos amar a Deus ?de todo nosso entendimento.? Nesse ponto, o Divino
Mestre oferece uma abertura para que a alma expresse seu grau de
amadurecimento. Qual é o nosso entendimento de como devemos amar a Deus? Como o
homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, sempre que estiver perdido ou
inseguro sobre como agir diante da Divindade, seu primeiro ponto de referência
deve ser a expressão terrena da Divindade, ou seja, o próprio homem. Portanto,
como uma primeira aproximação, procuremos imaginar como devemos expressar o
mais puro, verdadeiro e sincero amor a outro ser humano. Em primeiro lugar,
deve-se procurar saber o que o outro precisa e de que gosta e, em seguida,
procurar com todo empenho e, dentro do razoável, fazer o que ele gosta. Assim,
o que Deus espera de nós, seus filhos, o que Lhe dá mais alegria? Não
precisamos de muita imaginação para saber que o Pai celestial, que tem tudo e
não precisa de nada de nosso mundo, simplesmente deseja que nós, seus filhos,
sejamos felizes. Mas ele quer para nós a verdadeira e permanente felicidade e
não meramente as alegrias e prazeres ilusórios e passageiros deste mundo. Para
alcançarmos essa verdadeira felicidade precisamos cumprir nossa missão no
mundo, que é ?conhecermos a Verdade que nos libertará.?
Em termos práticos, amar a
Deus é nada mais nada menos do que o instrumento para conhecermos a Verdade e
alcançarmos a suprema bem-aventurança. Como podemos estar certos disso?
Vejamos: como Deus é a realidade última, sempre que voltamos o nosso coração e
interesse para Deus estamos tirando a nossa atenção do mundo material ilusório
que nos cerca e nos aprisiona. O verdadeiro amor a Deus nos transforma de seres
autocentrados em seres centrados em Deus (theoscentrados). Esse era o ideal a
que Paulo nos conclamava ao dizer que devemos deixar morrer o homem velho em
nós para que o homem novo centrado em Deus pudesse nascer. Para isso devemos
aceitar a dádiva de amor que Jesus nos concedeu, ou seja, seus ensinamentos
voltados para nossa salvação: ?Quem tem meus mandamentos e os observa é que
me ama; e quem me ama será amado por meu Pai? (Jo 14:21).
Mas o nosso entendimento do
amor a Deus pode ir mais além. Quem ama verdadeiramente neste mundo deseja
unir-se ao objeto de seu amor. Esse deve ser também o objetivo último de nosso
amor a Deus, evoluirmos do estágio em que procuramos agradá-lO, para o estágio
de sermos admitidos à sua Presença e comungarmos com Ele, para finalmente
alcançarmos a suprema bem-aventurança em que poderemos nos unir de forma permanente
a Ele. Essa tem sido a trajetória de todos os místicos, os homens e mulheres
que, em todos os tempos e religiões, conseguiram, por meio de sua total entrega
a Deus, superar todas as dificuldades até alcançar o Supremo Bem e tornarem-se
unidos ao Bem Amado.
O segundo mandamento e que
tem a mesma importância do primeiro, é: ?Amarás o teu próximo como a ti
mesmo.? É interessante notar que, em aramaico, a palavra usada para ?ti
mesmo? era a mesma que foi traduzida como ?alma? no primeiro mandamento. A palavra
era ?naphsha? que corresponde a ?nephesh? em hebraico. Esse termo é difícil de traduzir por uma única palavra, sendo as mais comumente
empregadas: ?alma,? ?si mesmo? e ?vida.? A idéia corresponde à natureza
interior do homem, seu Cristo interno ou eu superior.
Portanto, devemos amar nosso próximo como ao nosso Cristo interior. Vemos
assim, porque Jesus disse que o segundo mandamento era semelhante ao primeiro,
pois o ?si mesmo? é o Cristo interior, que por sua vez é o Senhor nosso
Deus.
Infelizmente, alguns
teólogos pregam a noção errônea de que todo homem, em virtude do ?pecado
original?, não passa de um ser reles, verdadeiro verme indigno do amor de Deus.
Essa idéia ainda assombra e abate muitos devotos que desejam se aproximar de
Deus e são tolhidos pela barreira psicológica de sua suposta indignidade. Deus
não nos criou como lixo ou como vermes, mas sim como seus filhos bem amados. Se
Ele nos ama de forma incondicional, nós também devemos nos amar, pois, na
verdade, somos Ele em nossa essência última. Na medida em que estivermos
conscientes de que não somos nosso corpo ou nossa natureza exterior, mas sim o
Cristo interior, torna-se óbvio que é um erro grosseiro nos considerarmos como
vermes indignos de Deus.
Fica claro que é impossível
amar a Deus sem amar nosso próximo, já que ele é também uma expressão de Deus,
o Cristo interior em todos os seres. Por essa razão foi dito: ?Quem não ama
seu irmão, a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá amar? (1 Jo 4:20).
Por outro lado, ao amarmos verdadeiramente nosso próximo estaremos também
expressando nosso amor a Deus, pois nosso próximo é uma outra expressão de
Deus, da mesma forma como nós somos. Essa identidade misteriosa de Cristo, como
o Segundo aspecto da Trindade e como o Cristo interior em todos os homens, é
asseverada na passagem em que é dito que os justos receberiam a herança do
Reino: ?Pois tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber.
Era forasteiro e me recolhestes. Estive nu e me vestistes, doente e me
visitastes, preso e vieste ver-me.? E ao ser questionado pelos justos
quando todas essas coisas tinham ocorrido, respondeu-lhes o Senhor: ?Em
verdade vos digo: cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais
pequeninos, a mim o fizestes? (Mt 25:35-36, 40).
Com isso torna-se mais fácil
entendermos a profundidade e abrangência da ode ao amor escrita por Paulo,
muitas vezes referida erroneamente como Hino à Caridade, erro esse advindo da
tradução da palavra amor no original grego, agape, para o latim como caritas,
e dessa língua para o português como caridade.
?Ainda que eu falasse
línguas, as dos homens e as dos anjos, se eu não tivesse amor, seria como um
bronze que soa ou como um címbalo que tine.
Ainda que eu tivesse o dom da
profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência, ainda que
tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tivesse amor, eu
nada seria.
Ainda que eu distribuísse todos os
meus bens aos famintos, ainda que entregasse o meu corpo às chamas, se não
tivesse amor, isso nada me adiantaria.
O amor é paciente, o amor é
prestativo, não é invejoso, não se ostenta, não se incha de orgulho.
Nada faz de inconveniente, não
procura o seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor.
Não se alegra com a injustiça, mas se
regozija com a verdade.
Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera,
tudo suporta.
O amor jamais passará. Quanto às
profecias, desaparecerão. Quanto às línguas, cessarão. Quanto à ciência, também
desaparecerá. Pois o nosso conhecimento é limitado, e limitada é a nossa profecia.
Mas, quando vier a perfeição, o que é limitado desaparecerá? (1 Co 13:1-10).
Podemos entender agora
porque Jesus, seus discípulos e evangelistas insistiram tanto na importância do
amor. Ao longo do texto bíblico, inúmeros apelos são feitos para amar-nos uns
aos outros (Jo 15:17), a amar-nos como Jesus nos amou (Jo 13:34 e 15:12) e até
mesmo a amar nossos inimigos (Mt 5:44). Desses, amar nossos inimigos é, talvez,
o mais duro teste para o verdadeiro cristão. Só conseguimos amar nossos
inimigos quando nos tornamos conscientes de que nosso verdadeiro ser é o Cristo
interior, e não a personalidade exterior. Então, passaremos a perceber que
aquele que age como nosso inimigo é, na verdade, o Cristo aprisionado no
interior de uma personalidade imatura e cega pela ignorância, que, por essa
razão, é levada a odiar e agredir seu próximo (nesse caso a nós mesmos). Mas
perdoar e amar nossos inimigos é também um ensinamento de grande profundidade.
O verdadeiro perdão a nossos inimigos funciona como uma esponja purificadora
que apaga o elo que possa ter sido estabelecido com aquele que nos persegue em
virtude da operação da lei de causa e efeito. Perdão é um ato de supremo
desapego da nossa natureza inferior, que clama por retaliação, e sua prática
proporciona o necessário espaço para que o sentimento de compaixão do Cristo
interior se manifeste.
O amor a Deus é a chave para
o progresso espiritual que nos levará ao conhecimento da Verdade libertadora.
Aqueles que por ventura se sentem ainda incapazes de amar ao Senhor seu Deus de
todo coração, de toda alma e de todo entendimento não precisam desanimar.
Sabemos que o caminho espiritual começa sempre no ponto onde estamos. Para
aqueles que só conseguem amar seus pais, filhos e seu marido ou esposa esse é
um bom ponto de partida. O segundo passo é aumentar a intensidade desse amor de
forma altruísta. A seguir, estender esse amor a um número cada vez maior de
pessoas. Chegará o momento em que serão capazes de perceber que Deus está no
interior de cada ser. Nesse momento aquelas pessoas compreenderão que estão
amando a Deus de acordo com seu entendimento. A partir de então só precisarão
aumentar a dedicação e o grau de entrega na expressão do seu amor.
O aspirante que, ardendo de
amor em seu coração, se julgar preparado a invocar as bênçãos do Senhor para
conhecer a verdade libertadora deveria certificar-se se ele realmente está
pronto para entregar-se inteiramente ao Senhor. Quando pedimos a Deus o maior
tesouro que o homem pode possuir, ou seja, a presença consciente de nosso
Bem-Amado, devemos estar prontos para dar o que até então era o bem mais
valioso para nós, a nossa vida, o nosso tempo. Aquele que tudo nos dá também
espera de nós tudo o que temos. Essa é a suprema renúncia que deve ser feita
por todo aquele que aspira alcançar as alturas espirituais.
Nossa atitude nesse processo
deve ser de entrega total a Deus. Jesus disse: ?Se alguém quer vir após mim,
renuncie a si mesmo, tome a sua cruz cada dia e siga-me? (Lc 9:23),
indicando, a todos os que almejam alcançar o estado de unidade com o Pai, quais
são as qualificações para isso. A primeira, é renunciar a si mesmo,
significando renunciar ao mundo e à gratificação do eu ? é a fase de desapego e
purificação mencionada anteriormente. A segunda, é tomar sua própria cruz cada
dia, aceitando sem recriminações as conseqüências ainda pendentes da lei da
retribuição, acrescidas das provações e testes inerentes à vida espiritual. A
Via Sacra pela qual Jesus passou expressa de forma contundente a cruz das
provações que todos nós temos que carregar, não uma só vez, mas todos os dias,
para chegar ao topo da montanha. Finalmente, seguir Jesus significa seguir seus
ensinamentos e seu exemplo de vida altruísta, inteiramente dedicada à sua
missão redentora. Obviamente, poucos estão preparados para esse grau de
comprometimento espiritual; isso explica por que muitos são chamados, mas
poucos são escolhidos (por si mesmos) para trilhar o caminho apertado que leva
à Casa do Pai.
Talvez uma pequena parábola
possa ilustrar as implicações de nossa aspiração pela bênção divina e a atitude
que devemos desenvolver para que a possamos receber.
Um jovem monge vivia
em reclusão num mosteiro isolado. Ele era muito dedicado e aspirava
ardentemente alcançar a graça da experiência de Deus, mas, sendo jovem, tinha
muitas idéias próprias de como as coisas deveriam ser feitas.
Um dia observou que
um abacateiro no pomar, ao contrário das outras árvores, não havia produzido
frutos. Sabendo que o mosteiro era pobre, pensou que uma ampla colheita de
abacates iria representar uma grande dádiva para seus irmãos de claustro.
Resolveu então pedir a Deus, com todo fervor, que enviasse suas bênçãos para o
pequeno abacateiro para que ele produzisse muitos frutos.
E Deus atendeu a seu
pedido! Na estação seguinte a árvore floriu alegremente, e, alguns dias depois,
começaram a aparecer dezenas, talvez centenas de pequeninos abacates.
Passaram-se as semanas e os abacates foram crescendo até que, num dia, para
espanto e pesar do jovem monge, um ramo não agüentou o peso da farta produção
de frutos e quebrou. Em poucos dias quebraram-se praticamente todos os galhos
do abacateiro, deixando todos os monges desolados.
Nosso jovem monge
não conseguia entender o que havia ocorrido. Havia pedido a Deus com toda fé
sua bênção e essa lhe havia sido concedida. Mas, antes que o benefício esperado
pudesse ser colhido tudo tinha sido perdido. Buscou refúgio na capela e orou
com todo fervor pedindo a Deus para entender. Finalmente, depois de várias
horas de profundo recolhimento, finalmente, vencido pelo cansaço parou de orar
e entregou-se a Deus. Nesse momento teve a nítida impressão de ter ouvido como
que uma voz silenciosa em seu coração dizendo: ?O abacateiro não estava
preparado para receber a Minha bênção. Você está preparado??
Será que já desenvolvemos a
fortaleza interior necessária para receber a bênção de Deus que tanto aspiramos
sem nos desestruturamos? Para alcançarmos a comunhão com Deus teremos que nos
fortalecer em todos os sentidos. O exemplo do abacateiro é especialmente feliz
porque todo ser humano no caminho espiritual pode ser comparado a uma árvore.
Mas ele deve tornar-se uma árvore especial, divina, promovendo uma radical
transformação na sua orientação de vida, que seria simbolizada por uma árvore
invertida, com suas raízes voltadas para o céu e seus ramos e frutos tocando a
terra. As raízes para o alto simboliza que ele passou a buscar sustentação no
mundo divino, dele tirando seu sustento interior. O pão e vinho da sagrada
eucaristia que nos foram dados por Nosso Senhor simbolizam esse alimento do
Alto que deve nutrir nossa vida interior. Por outro lado, devemos estar
inteiramente desapegados e cientes de que nossa vida não mais nos pertence:
tudo o que produzirmos, todos os frutos de nossas virtudes deverão ser colocados
à disposição da família humana, portanto, os frutos da árvore invertida estarão
tocando o solo, simbolizando a atitude altruísta de doação.
Esse é o sentido profundo da
metanóia, a transformação da mente que é a radical reorientação
interior de todo aquele que aspira trilhar o caminho apertado que leva à
verdade. Em vez de nos firmarmos e buscarmos nosso sustento no mundo material
que tão bem julgamos conhecer, devemos agir como as aves do céu e os lírios do
campo, entregando nossas vidas ao cuidado do Senhor. Mas, isso não significa
que nos tornaremos irresponsáveis e alheios às necessidades terrenas.
Passaremos a ser obreiros na seara do Senhor, dedicando nosso tempo e energia
para o benefício de todos os seres, sempre com altruísmo e sabedoria, seguindo
o exemplo do Divino Mestre.
Contemplação ou oração do silêncio
Em nosso processo de busca
por uma crescente sintonia com o Cristo interior, a fonte da Verdade,
verificamos que primeiro precisamos neutralizar as vibrações dissonantes com a
Divina Presença e, a seguir, promover as vibrações que nos aproximam de nossa
meta. O último passo é soarmos a nota secreta que servirá como ponte para a
travessia do abismo existente entre a terra (nossa consciência de cérebro
usual) e o céu (a consciência de Deus em nosso interior). Nesse momento nos
confrontamos com mais um paradoxo da vida espiritual, pois essa vibração
secreta é o mais profundo silêncio, exterior e interior, em que se alcança a
aquietação total da mente. O que se faz necessário para a comunicação com nosso
Deus interior é o silêncio. Esse mistério já era conhecido dos antigos judeus,
tendo sido revelado como: ?Aquietai-vos, e sabei que eu sou Deus? (Sl
46:10).
Com o ritmo acelerado da
vida moderna, em que o homem é constantemente atraído e entretido por coisas em
seu exterior, a aquietação das emoções e da mente parece impossível, tal é o
alvoroço no ambiente de trabalho, barulho em nossos meios de transporte e no
ambiente familiar, com o incessante ruído da televisão, música barulhenta e
chamadas telefônicas. Por isso, enquanto nossa personalidade estiver voltada
para as coisas exteriores, o crescimento espiritual será mínimo, porque a porta
que leva ao Cristo interior só pode ser encontrada e aberta no silêncio, que
por sua vez só é encontrado quando nos voltamos para o interior.
A Providência Divina, no
entanto, está sempre procurando nos fazer olhar para dentro. Infelizmente, para
as pessoas comuns, isso só pode ser conseguido pela dor, devido à insistência
da personalidade de viver no mundo de futilidades e coisas não-essenciais da
vida moderna. A dor, seja devido a uma doença, a perda de um ente querido, a
uma crise profissional ou financeira, a uma profunda decepção, sempre nos leva
à introspecção e a reavaliar nossas vidas. Nos momentos de dor e crise pode
despontar em nossos corações a semente da compaixão, ao verificarmos que muitas
outras pessoas também estão sofrendo como nós.
Deus fala de uma forma muito
especial que, às vezes, é referida como a ?voz do silêncio?. O valor da
contemplação é que ela tende a produzir o estado de tranqüilização, permitindo
a percepção transcendental e transformando a servidão inferior, em que o homem
natural vive sob a influência de seu ambiente terreno, na servidão superior da
dependência consciente daquela Realidade em que ?vivemos, nos movemos e
existimos?, como expresso pelo Apóstolo Paulo (At 17:28).
Nos primeiros séculos, entre
os padres do deserto, como eram chamados os que abandonavam a vida nas
comunidades e cidades para buscar, no recolhimento do deserto, as condições
apropriadas para a experiência de Deus, surgiam vários neófitos devotos
buscando também essa experiência. Ao perguntarem a seus irmãos mais experientes
nessa busca o que era preciso fazer, a resposta usual era levá-lo a um poço
para ver seu próprio rosto. E diziam, então, ?Tu fostes criado à imagem e
semelhança de Deus. Olha para ti primeiramente? e mandavam-no olhar seu rosto
na água do poço. Mas, enquanto o neófito olhava para a superfície da água,
começavam a jogar pedrinhas na água, agitando-a. Inevitavelmente o devoto
reclamava que não podia ver seu rosto na água em movimento. Ao que os instrutores respondiam: ?Assim como é impossível para uma pessoa ver seu
rosto em águas agitadas, também é impossível buscar a Deus se a mente estiver
ansiosa, agitada e distraída.?
Mesmo nos dias de hoje e
para as pessoas ativas no mundo, a contemplação tem o poder de operar a
alquimia interior de transformação do chumbo da natureza material do homem no
ouro da percepção de sua natureza superior. Nas palavras de Frei Betto: ?O
contemplativo é aquele que sabe fazer silêncio no sentido etimológico de selo.
O selo de Deus me guarda. Como ensina santo Tomás, quanto mais vou ao encontro
de mim mesmo, mais descubro em mim um outro que não sou eu e, no entanto, é o
fundamento do meu existir. A descoberta de Deus é sempre mediatizada pela
autodescoberta. Quando rezo, encontro um outro que não sou eu, mas que, no
entanto, apela para que eu seja o meu Eu verdadeiro. A espiritualidade corrente
ou institucional privou-nos desse conteúdo na medida em que doutrinarizou a
experiência da contemplação. Ficamos com a cabeça cheia de discursos sobre
Deus. Sabemos falar de Deus, sobre Deus, e até falar com Deus. Mas somos
analfabetos quando se trata de deixar Deus falar em nós.?
Vejamos, portanto, em que
consiste essa prática específica que permite a Deus falar em nós. Essa prática é a meditação, muitas vezes referida na tradição cristã como a oração do
silêncio, ou contemplação. A prática da meditação é apresentada na Bíblia de
forma alegórica. Jesus, contrastando a postura daqueles que chama de hipócritas
por fazerem suas orações nas sinagogas e em lugares públicos para serem vistos,
exorta seus seguidores a fazer suas orações em recolhimento: ?Tu, porém,
quando orares, entra no teu quarto e, fechando tua porta, ora ao teu Pai que
está lá, no segredo; e o teu Pai, que vê no segredo, te recompensará? (Mt
6:6).
As palavras do Mestre
transmitem um ensinamento profundo, quando devidamente entendidas. O que é
apresentado como sendo externo, o quarto de dormir, refere-se a algo interno, a
caverna do coração. Jesus nos exorta a por nossa atenção no âmago de nosso ser,
simbolizado pelo coração. Fechar a porta, significa fechar a entrada das
percepções do mundo exterior, inclusive o fluxo de pensamentos, para o
recôndito da consciência. Orar em segredo ao Pai significa permanecer em
absoluto silêncio, sem palavras e pensamentos, no que é conhecido na tradição
monástica como o estado de contemplação. Com essa total aquietação da mente criamos
as condições para que a pura luz da intuição possa atravessar nossa mente e
gravar em nosso cérebro o conhecimento da Verdade, a maravilhosa recompensa
prometida pelo Pai.
Os místicos de todos os
tempos praticaram a meditação contemplativa ainda que se referissem a ela por
vários nomes. Muitos escritores durante os primeiros séculos do cristianismo
fizeram referência a ela.
S. Pedro de Damasco, um dos padres da igreja primitiva, escreve: ?Somente o
silêncio engendra o conhecimento de Deus, pois ele é da maior ajuda mesmo para
os mais fracos e para aqueles sujeitos às paixões. Ele capacita os devotos a
viverem sem distrações e a retirarem-se da sociedade humana, dos cuidados e
encontros que obscurecem o intelecto.?
Para que o devoto possa
alcançar a experiência de Deus, ele não precisa acrescentar nada a sua vida. Ao
contrário, precisa retirar todo ruído, toda interferência exterior, todas
imagens e projeções que tem de Deus. A voz do silêncio com que Deus fala aos
seus filhos diletos é uma palavra misteriosa, como sugere mestre Eckhart: ?Essa
palavra é uma palavra oculta e chega na escuridão da noite. Para entrar nessa
escuridão retire todas as vozes e sons, todas imagens e semelhanças. Pois
nenhuma imagem jamais alcançou as fundações da alma onde o próprio Deus atua
com seu ser.?
As referências à oração do
silêncio de Teresa de Ávila em seu livro: Castelo Interior ou Moradas,
são extremamente reveladoras. Ela descreve a oração do silêncio como uma
entrega total da alma a Deus. A alma deve agir como um bicho da seda que se
recolhe ao silêncio de seu casulo para morrer e assim transformar-se numa linda
borboleta, como disse Santa Teresa: ?Olhai esta alma, à qual Deus suspendeu
totalmente o intelecto e os sentidos, deixando-a abobada, a fim de lhe imprimir
melhor a verdadeira sabedoria. Durante o tempo em que dura esse estado, não vê,
não ouve, nada entende. Esse tempo é sempre breve e parece-lhe ainda mais breve
do que realmente é. De tal forma Deus se imprime a si mesmo no interior dessa
alma que, ao sair daquele estado, voltando a si, de nenhum modo duvida de que
esteve em Deus e Deus nela.?
João da Cruz
talvez tenha inspirado o retorno dessa prática para grande número de fiéis
dentro da Igreja Católica em nossos dias. Com sua linguagem poética ele consegue
de alguma forma transmitir a experiência da alma em busca do Bem Amado nos
mundos sutis em que Ele se encontra: ?Se está em mim aquele a quem minha alma
ama, como não o acho nem o sinto? A causa é estar ele escondido, e não te
esconderes também para achá-lo e senti-lo. Quando alguém quer achar um objeto
escondido, há de penetrar ocultamente até o fundo do esconderijo onde ele está;
e quando o encontra, ficar também escondido com o objeto oculto. Teu amado
Esposo é esse tesouro escondido no campo de tua alma, pelo qual o sábio
comerciante deu todas as suas riquezas (Mt 13:44); convém, pois, que, para o
achares esquecendo todas as tuas coisas e alheando-te a todas as criaturas, te
escondas em teu aposento interior do espírito; e, fechando a porta sobre ti
(isto é, tua vontade a todas as coisas), ores a teu Pai no segredo. E assim,
permanecendo escondido com o Amado, então o perceberás às escondidas, e te
deleitarás com ele às ocultas, isto é, acima de tudo o que pode alcançar a
língua e o sentido.?
Mas o que o devoto
encontrará nesse silêncio? Os místicos que alcançam e se adentram nesse
território desconhecido da mente humana têm dificuldade para descrevê-lo, em
virtude das percepções inusitadas à sua consciência usual. A grande dificuldade
é que a personalidade não está familiarizada com essas experiências e não tem
termos de referência para elas, seja em seu mundo material seja em termos de
seu sistema de pensamento. Por exemplo, uma pessoa que nunca tivesse ouvido uma
grande sinfonia de um dos gênios da música não teria termos de comparação para
descrevê-la objetivamente. A única coisa que poderia fazer seria dizer o que
sentiu ao ouvi-la. Essa é a principal razão porque as expressões de sentimento
são preponderantes nas descrições do estado contemplativo.
Vejamos, como o grande
místico alemão Tauler, descreve esse estado: ?As grandes extensões desertas
encontradas nesse território divino não têm imagem, nem forma, nem condição,
pois elas não estão nem aqui nem lá. Elas são semelhantes a um abismo insondável,
sem fundo e flutuando em si mesmo. Mesmo com a água indo e vindo, para cima e
para baixo, agora afundando num buraco, de forma que parece que não existe água
ali, e logo a seguir surgindo repentinamente como se fosse engolfar tudo, assim
ocorre nesse Abismo. Esse, verdadeiramente, é muito mais o lugar de moradia de
Deus do que o céu imaginado pelo homem. O homem que realmente deseje entrar
certamente encontrará Deus ali, ficando ele mesmo simplesmente em Deus, pois
Deus nunca se separa desse território. Deus estará presente com ele, e ele
encontrará e se regozijará da eternidade aqui. Não existe passado nem presente
aqui, e nenhuma luz criada pode alcançar ou brilhar nesse território divino.
Somente aqui se encontra o lugar da morada de Deus e seu santuário.?
Com o passar do tempo, a
repetição da prática da contemplação leva a alma a passar por experiências cada
vez mais profundas e transformadoras. Santa Teresa, falando de um nível de
experiência interior ainda mais profundo do que o citado anteriormente, diz que
chega um determinado momento em que o Divino Esposo decide levar a noiva (a
alma) como num rapto: ?Quando começa o rapto, ela perde o fôlego. A tal ponto
que, mesmo quando conserva os outros sentidos por um pouquinho de tempo ? como
acontece algumas vezes ? não pode absolutamente falar. De outras vezes perde
todos os sentidos de repente. Esfriam-se-lhe as mãos e o corpo, de modo que
parece não ter mais vida. Nem se sabe se ainda respira. Dura pouco tempo sem
mudança. Diminuindo um pouco a suspensão, parece que o corpo vai tornando a si
e cobrando alento. Mas logo torna a morrer, para dar mais vida à alma. Contudo,
esse êxtase tão grande não dura muito.?
A meditação do silêncio,
apesar de sua simplicidade, tem o potencial de proporcionar benefícios
incalculáveis a seus praticantes. Vários livros foram escritos a respeito dessa
prática.
A oração do silêncio, resgatada dos primórdios da tradição cristã, depois de
ter sido esquecida por vários séculos, vem sendo apresentada em linguagem
moderna em duas vertentes principais: a da ordem cisterciense e a dos
beneditinos. Ambas declaram que a prática foi originalmente ensinada por Jesus
e praticada extensamente pelos padres do deserto.
Depois de esquecida ou não
mencionada na literatura, por vários séculos, foi resgatada no século XIV por
um autor anônimo, provavelmente um monge, que escreveu uma das obras mais
influentes entre os místicos conhecida como A Nuvem do Não-Saber.
Membros da ordem cisterciense, com base na Nuvem do Não-Saber,
desenvolveram a técnica que eles tornaram conhecida como oração centrante.
A ordem cisterciense, também conhecida como trapista, estabeleceu grupos de
oração centrante atuando em vários países, sendo que suas práticas meditativas
e atividades de retiro podem ser conhecidas até mesmo pela Internet.
O método da oração centrante
é simples e visa promover o silêncio interior. De forma resumida,
escolhemos em primeiro lugar uma palavra simples, à qual atribuímos um valor
sagrado. Essa palavra simboliza nosso consentimento à presença e ação de Deus
em nosso interior. Ela deve tocar nosso coração com algum significado ou
aspecto divino, tal como luz, paz, amor, Senhor, Jesus, Pai etc. Sentado
confortavelmente e com a coluna ereta, o devoto deve procurar o silêncio interior,
na câmara secreta do coração, onde Jesus disse que se encontra o ?Pai em segredo.? Quando percebermos pensamentos aflorando em nossa mente, devemos enunciar
mentalmente, de forma lenta e suave, a nossa palavra sagrada; com muita
paciência, devemos repetir essa palavra sagrada todas as vezes que percebermos
pensamentos em nossa consciência.
O termo ?pensamento? é usado
para englobar toda percepção, incluindo as percepções dos sentidos,
sentimentos, imagens, memórias, reflexões ou comentários. Qualquer que seja o
?pensamento?, devemos retornar sempre, gentilmente, para a palavra sagrada;
essa é a única atividade que iniciamos durante a meditação do silêncio. Mesmo
que aparentes percepções ou idéias interessantes possam aflorar durante o
exercício contemplativo, elas não devem ser elaboradas, mas simplesmente
deixadas passar, voltando-se ao silêncio mental.
Um dos mais ativos
divulgadores da oração centrante, William Meninger, monge da ordem trapista,
que obviamente alcançou profunda realização mística por meio da contemplação,
utiliza uma alegoria imaginativa, nos moldes da linguagem sagrada descrita
anteriormente, para descrever as dificuldades que serão encontradas pelo devoto
para firmar-se na contemplação. Ele descreve as principais fontes de atividade da
mente, como quatro irmãs que moram numa pequena casa, o corpo humano. A mais
ativa chama-se Intelecto. Ela passa a maior parte do tempo na sala da frente,
bem iluminada e com a porta aberta para receber todo visitante que possa trazer
algum tipo de verdade. E muitos visitantes chegam a todo instante. A segunda
irmã, Dona Vontade, é cega e vive no quarto dos fundos, sem janelas e sempre
escuro. Da. Intelecto percebe as verdades com seus sentidos e leva as mais
significativas para sua irmã, Da. Vontade, que, sendo cega, abraça-as com fé e
amor. As duas outras irmãs, Da. Memória e Da. Imaginação, vivem no porão
cercadas de fotos e filmes. Estão constantemente buscando materiais que julgam
ter o poder de ajudar suas irmãs na busca da verdade. Porém, realmente atrapalham
mais do que ajudam, por isso suas irmãs procuram mantê-las trancadas no porão
quando estão seriamente engajadas na procura da verdade. Somente quando Memória
e Imaginação ficam quietas no porão sem interromper o trabalho de suas irmãs no
nível térreo, e quando Da. Intelecto está dormindo, é que Da. Vontade consegue,
sem ser perturbada, fazer progresso em sua busca silenciosa da Verdade.
A vertente da oração do
silêncio difundida pela ordem dos beneditinos é muito semelhante a dos
trapistas. Sua característica marcante é o uso da palavra maranatha
durante a meditação. Essa palavra aramaica significa ?vem Senhor?, sendo
mencionada ao final da Primeira Carta aos Coríntios e no final do Apocalipse de
João. A meditação deve ser realizada duas vezes ao dia, com duração de 20 a 30 minutos. O meditador deve se sentar ereto, fechando levemente os olhos e mantendo-se
relaxado, mas alerta. De forma silenciosa em seu interior, deve repetir a
palavra maranatha, recitando-a lentamente como quatro sílabas de igual
comprimento: ma ? ra ? na ? tha. Não pense nem imagine nada. Se vierem
pensamentos ou imagens à sua mente durante a meditação, são distrações. Volte
simplesmente a repetir ma ? ra ? na ? tha. O uso dessa palavra poderosa tem a
vantagem de nos colocar em sintonia com a vibração de devoção de muitos
milhares de místicos que a usaram ao longo dos séculos. Essa vibração de amor e
entrega a Cristo, repetindo constantemente nosso apelo: ?Vem Senhor,? não
deixará de produzir seu fruto esperado.
A ordem dos beneditinos, sob
a liderança do monge Laurence Freeman, continuador do trabalho de John Main,
que introduziu a técnica, vem promovendo ativamente essa prática, conhecida
como ?meditação cristã?. Uma instituição sediada em Londres, conhecida como World
Community for Christian Meditation, foi criada para promover retiros de fim
de semana e ensinar a técnica, com várias práticas dirigidas e apresentação de
palestras sobre vários aspectos da meditação. Eles procuram estimular a criação
de grupos de meditação, existindo atualmente mais de mil desses grupos em mais
de 40 países. No Brasil é conhecida como Comunidade Mundial de Meditação
Cristã.
Nas palavras de John Main:
?A visão cristã da vida é a unidade. Essa é a idéia por trás da disciplina da
meditação. Seu objetivo é perceber que toda a humanidade foi unificada naquele
que está unido com o Pai. Toda a matéria e toda criação também é atraída ao
movimento cósmico em direção à unidade que será a realização da harmonia
divina. Na união nos tornamos aquele que fomos chamados a ser. Somente na união
sabemos plenamente quem somos.? A conquista interior da percepção da unidade
levou os líderes da Comunidade, inicialmente John Main e, após seu falecimento,
Laurence Freeman, a promover ativamente o diálogo com outras religiões. Um
resultado desse trabalho de aproximação religiosa foi a publicação do livro do
Dalai Lama versando sobre uma perspectiva budista dos ensinamentos de Jesus,
com o título de The Good Heart,
que tem uma introdução com apresentação do contexto cristão pelo padre
Laurence Freeman.
A jornada interior no
território do silêncio é longa e árdua. Muitos neófitos desistem porque acham
que não estão progredindo após algumas semanas e mesmo meses de prática, pois
não percebem resultados exteriores. Sabemos, pela lei da ação e reação, que
todo ato tem suas conseqüências. Assim, nossos esforços na meditação certamente
têm seus resultados interiores, ainda que não sejam notados por nossa
consciência. Os meditadores avançados ensinam-nos que, com a prática continuada
da meditação, a matéria de nosso cérebro vai sendo paulatinamente purificada e
energizada, acumulando as condições necessárias até que, num determinado
momento, a massa crítica é alcançada e ocorre o vôo da alma rumo ao céu
infinito.
Quando se alcança o silêncio
interior começa a vida contemplativa do místico. Nas palavras de um místico
moderno bem conhecido, a prática contemplativa ?é a vocação para a união
transformadora, para o cume da vida mística e da experiência mística, para a
verdadeira transformação em Cristo, para que Cristo vivendo em nós e dirigindo
todas nossas ações possa Ele mesmo fazer com que os homens desejem e busquem
aquela mesma união exaltada da alegria, da santidade e da vitalidade
sobrenatural irradiada por nosso exemplo, ou melhor, por causa da influência
secreta de Cristo vivendo em nosso interior em completa posse de nossas almas.?
Para concluir, o devoto deve
estar ciente de que o trabalho de aquietação da mente é o maior desafio de
todos aqueles que buscam a Deus no âmago de seu ser. Os místicos algumas vezes
levam vários anos para alcançar os resultados esperados. Parece que nossa
natureza inferior luta contra o estabelecimento desse silêncio interior,
sentindo instintivamente que o ambiente de recolhimento, totalmente contrário a
sua hiper-atividade usual, causará sua morte figurativa, ou seja, fará com que
seu domínio sobre o ser humano seja perdido para a alma. Por isso, somente com
muita persistência e determinação será possível alcançarmos o silêncio interior
e, assim, entrarmos no território sagrado onde Deus nos aguarda.
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