LEVI.COM.BR - PAG.PRINCIPAL
CLIQUE AQUI PARA SE ASSOCIAR!
CLIQUE
AQUI
PARA SE
ASSOCIAR!
HOME TEOSOFIA PALESTRAS ASTROLOGIA NUMEROLOGIA MAÇONARIA CRISTIANISMO ESOTERICA.FM MEMBROS

O PODER TRANSFORMADOR
DO CRISTIANISMO PRIMITIVO

Raul Branco


7. OS INSTRUMENTOS INTERIORES

 

A purificação

Vimos que o conhecimento da verdade exterior, ou teórica, é necessário, mas não suficiente para a nossa libertação. Sabemos também que a verdade libertadora só será conhecida quando comungarmos em consciência com o Cristo interior. Para que isso ocorra precisamos nos valer de instrumentos interiores. Cristo já se encontra em nosso interior. O que precisamos fazer é criar uma sintonia que possibilite a nossa consciência usual exterior alcançar o nível do Cristo interior. Esse ponto deve ser bem compreendido: numa primeira etapa, é a consciência do homem exterior que deve ser elevada ou expandida ao nível do Cristo interior. Uma vez estabelecida essa ponte com a consciência do Alto, o processo de purificação e subtilização do corpo material prosseguirá até que nosso cérebro possa captar também a luz do Alto.

A ciência moderna nos ensina que tudo o que existe no mundo é, em última análise, a expressão de uma determinada vibração. Para que possamos estabelecer a sintonia desejada com o Cristo interior, devemos criar as condições vibratórias apropriadas. Isso envolve três etapas. A primeira é a retirada de todas as vibrações pesadas incompatíveis com a presença de Cristo em nossa vida. A segunda é a criação de vibrações elevadas que facilitem nossa aproximação da Fonte da Verdade. Finalmente, deveremos estabelecer a ponte vibratória para que nossa consciência possa atravessar o abismo que existe entre o plano material e o espiritual.

Toda vibração material pesada cria uma desarmonia com o plano espiritual. A crueldade, os pecados contra a vida, a verdade e o amor, bem como os vícios são as vibrações mais pesadas, constituindo o fundo do poço da situação humana. A primeira preocupação de todo devoto que aspira aproximar-se de Cristo é proceder a uma drástica eliminação de todos seus vícios e fraquezas. Algumas pessoas poderiam questionar que alguns dos assim chamados vícios não afetam a vida dos outros, como por exemplo a gula e o fumo. No entanto, mesmo se isso fosse verdade, o que não é, esses vícios afetam a vida do devoto, em particular, afetam sua capacidade de estabelecer e manter uma disciplina de vida. Lembremos que a entrada triunfal de Cristo na Cidade Santa de Jerusalém só pode se dar com o Cristo montado num jumentinho, o quadrúpede que representa nossa natureza inferior, que deve ser inteiramente disciplinado e dócil, capaz de atender ao menor comando de seu Senhor. Enquanto houver o mais leve resquício de vício ou fraqueza em nossa natureza exterior, não estaremos qualificados para servir como veículo do Senhor para assim entrar na Cidade Sagrada, ou seja, para alcançarmos a comunhão com a Verdade.

Quando cedemos aos nossos desejos e paixões estamos nos submetendo à nossa natureza inferior, daí a necessidade imperiosa da disciplina. Quando exercemos a disciplina, quem governa é a natureza superior. Cada vitória na obtenção de uma vida disciplinada fortalece o poder da alma sobre a personalidade, acelerando o momento de glória e paz em que o Cristo interior assumirá o controle de nossa vida.

A literatura sobre a vida dos místicos está repleta de informações sobre as extenuantes e longas práticas que esses atletas espirituais estabelecem para sua purificação. Se os atletas em nosso mundo material preparam-se com tanto afinco e dedicação, treinando e revisando todas as técnicas por vários anos, para alcançar um momento passageiro de glória nas competições esportivas, como poderemos imaginar que a disciplina exigida dos atletas espirituais venha a ser menor, considerando que eles estão buscando alcançar uma glória incomparavelmente mais elevada e que jamais lhes será tirada?

Que arma deve ser usada para vencer nossas fraquezas? Essa arma é a vontade, o poder divino que atua em todos os níveis. Sabemos que mesmo nos devotos mais ardentes existe sempre pelo menos um ponto fraco que perdura apesar de todos seus esforços e que, conseqüentemente, atrasa seu progresso. Chega um momento em que essa fraqueza precisa ser superada. As fraquezas do corpo relacionam-se com drogas, bebida, comida ou sexo. As da mente, com a vaidade, orgulho e impaciência. Todas elas precisam ser vencidas. O corpo deve ser inteiramente conquistado e oferecido como oblação no altar do coração ao Supremo Mestre.

Porém, alguns místicos, em seu afã de purgar o mais rapidamente possível suas fraquezas, dedicam-se a asceses extremadas voltadas para a punição do corpo. Por muitos séculos perdurou nos meios monásticos a idéia de que o corpo era o culpado pelos pecados da carne. Os místicos mais experientes sabem que no ser humano existe uma hierarquia como em todos os sistemas do mundo. O corpo é governado pelas emoções e pela mente. Portanto, são as nossas emoções e a mente que devem ser o objeto de nossa ascese. O desejo de gratificação dos sentidos, que é reforçado pela mente, é que leva o ser humano a cair repetidamente no erro. Esses desejos, com o tempo, tornam-se hábitos que passam a ser considerados como ?normais?, tornando a alma prisioneira dessas tendências inconscientes.

Paulo, o grande Apóstolo, referiu-se ao poder escravizador das tendências numa passagem inesquecível: ?Realmente não consigo entender o que faço; pois não pratico o que quero, mas faço o que detesto. Na realidade, não sou mais eu que pratico a ação, mas o pecado que habita em mim. Eu sei que o bem não mora em mim, isto é, na minha carne. Pois o querer o bem está ao meu alcance, não porém o praticá-lo. Com efeito, não faço o bem que eu quero, mas pratico o mal que não quero? (Rm 7:15, 17-19).

Todo ser humano já passou pela perplexidade de desejar um determinado comportamento virtuoso e agir de forma contrária. Os hábitos arraigados em nossa vida muitas vezes tornam-se vícios. Como podemos combatê-los, bani-los de nossa vida? Vale lembrar que combater um vício é a maneira negativa de lidar com a fraqueza. A maneira positiva, e muito mais eficiente, é promover a virtude oposta àquele vício ou fraqueza. Assim como a escuridão é o oposto da luz, a matéria o oposto do espírito, o vício é o oposto da virtude. As virtudes são características de nossa natureza espiritual, que têm como seu oposto, no mundo da matéria, os vícios. Portanto, quando promovemos as virtudes estamos concomitantemente rejeitando e combatendo os vícios e fraquezas que lhes são opostos. Procure recordar-se da pessoa mais santa que você conhece; não importa quem seja essa pessoa, o que ela tem de mais marcante é uma série de virtudes que saltam aos olhos daqueles que a conhece.

A primeira etapa da purificação visa os sentidos. A tendência para a sensualidade deve ser controlada. Isso não significa que o devoto não poderá mais sentir nenhum prazer do paladar, da audição, da visão, etc. Vivemos no mundo e estamos sujeitos a todo tipo de experiência, algumas prazerosas, outras desagradáveis e outras, ainda, indiferentes. O importante para o aspirante é superar o apego que lhe leva a buscar a repetição das experiências prazerosas. A atitude ideal é descrita como viver no mundo sem ser do mundo. O nosso foco de vida ou centro de interesse deve ser transferido do mundo material para o espiritual.

A etapa seguinte do processo de purificação refere-se ao controle das palavras. Nossas palavras afetam o mundo ao nosso redor. Em primeiro lugar, um buscador da Verdade só pode proferir palavras verdadeiras. Sabemos que em nosso mundo de falsidades passa a ser normal, e até mesmo esperado, as pequenas mentirinhas sociais. Quantas vezes já mandamos nossos filhos ou a empregada dizer ao telefone que não estamos quando aquela pessoa que estamos querendo evitar nos telefona? Uma forma de mentira, que muitas vezes passa despercebida em nossa vida diária, é o exagero ou a meia verdade. O aspirante à vida espiritual deve ter um compromisso inabalável com a verdade. Mas o pior são as maledicências. Temos o costume de falar da vida alheia, achando que é nosso direito fazer qualquer comentário que nos venha à cabeça. Quantas vezes já afirmamos coisas a respeito dos outros que simplesmente ouvimos dizer de terceiros, sem saber ao certo se eram verdadeiras ou não? E mesmo quando algo é verdadeiro, estamos sendo caridosos se repetimos as fraquezas de nosso próximo? Vale lembrar a admoestação de Tiago: ?Que seja cada um de vós pronto para ouvir, mas tardio para falar e tardio para encolerizar-se: pois a cólera do homem não é capaz de cumprir a justiça de Deus. Se alguém pensa ser religioso, mas não refreia a sua língua, antes se engana a si mesmo, saiba que a sua religião é vã? (Ti 1:19-20, 26).

Vale a pena lembrar, nesse particular, a regra de ouro. Estamos falando sobre os outros coisas que gostaríamos que os outros falassem a nosso respeito? Não podemos nos esquecer que nossas palavras devem ser verdadeiras, bondosas e úteis. Quantas palavras inúteis e fúteis dizemos todos os dias? Nesse particular, devemos ter sempre em mente o que Jesus disse sobre nossas palavras: ?De toda palavra inútil, que os homens disserem, darão contas no Dia do Julgamento. Pois por tuas palavras serás justificado e por tuas palavras serás condenado? (Mt 12:36).

Mas não basta a purificação das ações e das palavras. Os nossos pensamentos têm um impacto bem maior do que geralmente imaginamos. Eles são realidades no mundo invisível do plano mental. Todo pensamento que temos sobre uma determinada pessoa busca, por afinidade, aquela pessoa e passa a influenciá-la. Portanto, os pensamentos negativos são como palavras silenciosas que contribuem para fortalecer o miasma nocivo e pesado que paira sobre nossas cidades, contribuindo para o clima de violência, pessimismo e sordidez. O controle dos pensamentos é particularmente importante para todo aquele que aspira se tornar um discípulo e servidor do Mestre. O controle da mente é, na verdade, o objetivo de um dos mais poderosos exercícios espirituais, a meditação. Teremos mais a dizer sobre isso neste trabalho.

Tendo purificado, ou pelo menos nos conscientizado da necessidade de purificação de nossas ações, palavras e pensamentos, falta ainda mais alguma coisa para ser purificada? Sim! Algo mais profundo ainda e que modifica o mérito de todas nossas ações, qual seja, nossas atitudes interiores, nossas intenções. Os ensinamentos de Jesus no Sermão da Montanha são taxativos a esse respeito: ?Guardai-vos de praticar a vossa justiça diante dos homens para serdes vistos por eles. Do contrário, não recebereis recompensa junto ao vosso Pai que está nos céus. Por isso, quando deres esmola, não te ponhas a trombetear em público, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, com o propósito de serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa? (Mt 6:1-2).

A verdadeira pureza de coração é aquela em que nossas intenções e motivações interiores estão inteiramente voltadas para o bem do próximo, e não para atender a nosso próprio interesse. A pureza de coração será refletida em ações, palavras e pensamentos puros; essa verdade está refletida na passagem bíblica: ?Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus? (Mt 5:8). Os puros de coração são aqueles seres simples e sinceros que agem espontaneamente sem segundas intenções. Mais uma vez temos a confirmação de que para alcançar a Verdade libertadora, expressa na passagem bíblica como a visão de Deus, temos que nos sintonizar com o Divino em nós.

A purificação mais difícil é a do egoísmo e do orgulho. Essas duas máculas, originadas do sentido exaltado de separação acompanham o homem até o limiar do portal do Reino dos Céus. Elas são os piores inimigos da alma, as mais resistentes a todas nossas tentativas de extirpá-las. A razão para isso é que o egoísmo e o orgulho estão enterrados no âmago de nossa natureza material separativista. Estão escondidos profundamente em nosso inconsciente. Precisamos trazê-los à tona, para podermos, então, lidar com eles. Os psicólogos modernos estão cientes da dificuldade de lidar com o inconsciente. Uma passagem do texto conhecido como Evangelho de Felipe aborda com especial felicidade esse tema:

?(A maior parte das coisas) no mundo, enquanto suas (partes internas) estão ocultas, ficam de pé e vivem. (Se são reveladas), morrem. Enquanto a raiz está escondida ela brota e cresce. Se suas raízes são expostas, a árvore seca. Assim ocorre com todo nascimento no mundo, não só com o revelado, mas (também) com o oculto. Porque, enquanto a raiz da maldade está escondida, essa permanece forte. Mas quando é reconhecida ela se dissolve. Quando é revelada ela morre. É por isso que a Palavra disse: ?O machado já está posto à raiz da árvore.? Ele não só cortará ? o que é cortado brota outra vez ? mas o machado penetra profundamente até trazer a raiz para fora. Jesus arrancou inteiramente a raiz de todas as coisas, enquanto outros só o fizeram parcialmente. Quanto a nós, que cada um cave em busca da raiz do mal que está dentro de si, e que ele seja arrancado do coração de cada um pela raiz. O mal será arrancado se nós o reconhecermos. Mas se o ignorarmos, ele se enraizará em nós e produzirá seus frutos em nosso coração.?[57]

Combater as pragas do egoísmo e do orgulho diretamente pode ser um exercício frustrante, pois, mesmo quando fazemos progresso numa determinada área, se formos atentos, verificaremos que a mesma erva daninha aparecerá outra vez em novas circunstâncias de nossa vida. Como as raízes desses males derivam-se da ilusão de sermos seres separados e independentes do resto da humanidade, a única maneira de extirpá-los é desenvolvendo a verdadeira entrega a Deus. Quando desbancarmos o usurpador do trono do Rei, a personalidade egoísta, o governante de nosso mundo externo, e recolocarmos a Suprema Autoridade no poder, passando a viver constantemente como servos do Senhor, procurando em todas as ocasiões executar a vontade Dele e não a nossa, veremos que não existirá mais espaço para o egoísmo e o orgulho em nossas vidas. Teremos, então, rompido o circulo vicioso da vida mundana e entrado no círculo virtuoso do verdadeiro devoto. Seremos, então, como sóis, iluminando a todos com a sabedoria divina que então estará a nossa disposição, e com o calor do amor divino aqueceremos o coração de todos os que nos cercam.

O crescimento espiritual gerado pela purificação é um processo dinâmico que nunca cessa, nunca termina. Por isso, o devoto que aspira alcançar a verdade deve estar sempre atento, buscando detectar em seu interior as falhas que porventura ainda existam, para então superá-las, e procurar no mundo exterior maneiras de ajudar o próximo, sem infringir os limites do bom senso e do livre arbítrio. Não importa o nível de realização espiritual alcançado, o devoto nunca deve se deixar embalar pela auto-satisfação: sempre existe espaço para melhorar. Essa atitude caracteriza os verdadeiros místicos. Eles nos surpreendem com sua constante crítica de si mesmos. A necessidade de devotarmos constante atenção para a autotransformação faz com que alguns instrutores sugiram que, um pecador descontente, mas que procura a mudança, seja maior do que um Santo que está satisfeito consigo mesmo.

Jesus alertou-nos sobre a necessidade de constante atenção com as tentativas de nossa natureza inferior de retomar o controle de nossa vida. Suas palavras devem permanecer conosco, ecoando em nosso coração: ?Vigiai e orai, para que não entreis em tentação, pois o espírito está pronto, mas a carne é fraca? (Mt 26:41). Para facilitar a permanente atenção ao nosso comportamento, de forma que a purificação de nossas fraquezas seja constante e haja o mínimo de recaídas, é imprescindível a revisão diária de nossas ações, processo conhecido nos meios eclesiásticos como ?exame de consciência?. Quando estabelecemos um rígido programa de revisão diária de nosso comportamento ao final do dia, passamos a identificar as ações, palavras e pensamentos habituais que vão contra nossos propósitos elevados, que, de outra forma poderiam passar despercebidos. Ora, só podemos combater os inimigos que conhecemos. Por isso, torna-se absolutamente necessário identificarmos esses inimigos insidiosos que permanecem escondidos em nossos hábitos, para que eles sejam conhecidos pelo que são: inimigos da alma. Ao identificarmos nossos hábitos negativos estaremos retirando-os do inconsciente e trazendo-os para nosso consciente, onde poderão ser percebidos, controlados e, finalmente, eliminados.

O trabalho de autotransformação é um processo penoso que demanda muita dedicação e esforço a ponto de ser comparado às doze tarefas mitológicas de Hércules. O verdadeiro progresso é lento e deve ser consolidado ao longo do tempo para que não haja recaída nos velhos hábitos. Nossa sociedade, obcecada com o corpo físico, já aprendeu que o progresso na modelação do corpo pela musculação é lento, penoso e demanda muita persistência. Mais lento e árduo ainda é o fortalecimento da alma face à inércia dos maus hábitos. No entanto, o devoto não deve desanimar de antemão pois o bom Deus jamais coloca nos ombros de seus filhos uma carga mais pesada do que podem carregar.

Todo aquele que já tentou se livrar de algum vício ou mesmo de um hábito nocivo sabe como isso é difícil. Para essas pessoas, uma das maneiras mais efetivas para encontrar orientação e força para perseverar ao longo do processo de mudança é a participação em grupos de auto-ajuda, como a AAA (Associação dos Alcoólicos Anônimos), os Vigilantes do Peso, e outras associações congêneres. Esses grupos geralmente seguem a linha estabelecida pelos fundadores da Irmandade dos Alcoólicos Anônimos, que certamente receberam inspiração do Alto para aquela nobre missão de resgate de tantas almas perdidas no vício. Essas orientações, de cunho nitidamente espiritual, podem ser acompanhadas com proveito no livro Os Doze Passos e As Doze Tradições.[58] Os membros desses grupos conseguem, com muita dedicação e perseverança, dar a volta por cima e mudar inteiramente suas vidas. O mais interessante é que uma das principais fontes de força para permanecerem sóbrios é a ajuda que passam a dar a outros irmãos que estão lutando para livrar-se da prisão do vício. Tornam-se, com isso, verdadeiros apóstolos da boa nova de que é dando ajuda que se recebe ajuda, inclusive para vencer a fraqueza e o vício. A mudança de nossos hábitos materiais em hábitos espirituais é ainda mais difícil do que a luta contra alguma fraqueza ou vício específico, porque o inimigo nesse caso é a lendária Hidra de sete cabeças, que é o egoísmo, a fonte de todos os vícios.

 

O amor

Com um sistemático programa de purgação das negatividades de nossa vida, estaremos eliminando progressivamente os obstáculos e impedimentos que nos afastam do Senhor, a fonte da Verdade. Estaremos, então, em posição de cultivar a vibração elevada que possibilita a sintonia desejada. De todos os atributos divinos, o amor é o mais distinto e tocante. A beleza, a paz, a harmonia e o conhecimento também são atributos divinos e certamente constituem vibrações capazes de nos aproximar do Supremo Bem. No entanto, o amor tem uma qualidade especial que nos atrai.

E, por que o amor nos atrai? Porque o amor é uma das energias mais primevas e básicas do mundo manifestado, podendo ser considerado como a essência da natureza divina. O amor é uma energia que surgiu no momento em que o Universo foi constituído. Quando Deus, o Uno, desejou manifestar-se como a infinidade da diversidade, criou concomitantemente uma força que harmonizasse a tendência separatista do mundo que estava sendo criado. O amor é uma expressão dessa força, conhecida como a lei universal da atração. O amor é a garantia de que o mundo manifestado seguirá o Plano Divino, passando por todas as etapas do processo de experimentação ou aprendizado inerente à diversidade, retornando finalmente para a unidade, na medida em que a força de atração do amor for vencendo a da separatividade da matéria.

A lei da atração universal manifesta-se de inúmeras formas: no mundo infinitamente grande da mecânica celestial, como a lei da gravitação universal; no mundo infinitamente pequeno dos átomos, como energia atômica; nos diversos reinos da natureza, como coesão molecular, como lei da gravidade, como afinidade química, como magnetismo, como equilíbrio ecológico, como coesão das células, tecidos e órgãos de todo organismo, enfim, como uma série de forças que atuam para que os diferentes aspectos da natureza, em todos seus níveis, possam manter sua coesão e coexistir com todas as outras coisas, num ambiente cuja tendência é a harmonia dinâmica de todas as partes, cada qual caminhando rumo à evolução.

No reino humano, em que a multiplicidade no plano físico é exacerbada pela separatividade da mente, a atuação do amor é especialmente importante. Num nível mais elementar, ele é a força que atrai os sexos opostos para que a perpetuação das espécies possa ser garantida. É a força neutralizadora do amor que cria o instinto maternal, em que a mãe, e a seu modo também o pai, passa a dedicar-se e, mesmo, a sacrificar-se por seus filhos. É a força que leva os indivíduos a se agregarem em grupos cada vez mais extensos e diferenciados, como a família, a tribo, a comunidade, a cidade, a etnia, a associação religiosa, a nação e, chegará o dia, a família humana unida e administrada como uma única nação. Quando alcançarmos a experiência do amor universal estaremos em condição de conhecer o princípio do amor, que é Deus.

O amor é infinito, mas o ser humano parece percebê-lo em camadas. Não importa quão profundo e rico seja a manifestação do amor experimentada num determinado momento, existem sempre camadas mais profundas que serão reveladas na medida em que o ser humano entregar seu coração em doação altruísta e incondicional. A experiência das camadas do amor que estão ao nosso alcance aguça nossa percepção para novos aspectos do amor.

O amor nos proporciona a armadura para vencer as mais nefastas forças desagregadoras da humanidade: o ódio e o egoísmo. Os seres verdadeiramente amorosos cativam a todos. As pessoas sentem-se instintivamente atraídas por eles. A razão por trás disso é que o âmago de nosso ser é amor, pois nossa natureza divina interior é amor, ainda que geralmente esse amor não consiga manifestar-se plenamente por estar abafado pelo domínio da personalidade egoísta. Portanto, como o semelhante atrai o semelhante, o Cristo interior em nós, o puro amor latente, sente-se atraído pelo amor exterior atuante manifestado em qualquer pessoa.

O amor incondicional de Deus pelos homens é um fato incontestável. Uma expressão desse amor incondicional é manifestada pelo Sol, que ilumina e aquece a todos, sejam eles cristãos ou pagãos, santos ou pecadores. Jesus, ao pregar a necessidade de amarmos a todos os seres, explica que quando fizermos isso estaremos agindo como verdadeiros filhos que seguem o exemplo do Pai que está nos céus, ?porque ele faz nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos? (Mt 5:45).

Deus é amor! Ele nos ama de forma total e incondicional. Essa verdade universal e atemporal está reiterada ao longo da Bíblia, tanto no Antigo como no Novo Testamento. Algumas poucas passagens servirão para refrescar nossa lembrança e reforçar nossa determinação de permanecer no amor divino.

?Eu amo aqueles que me amam, e aqueles que me procuram encontram-me? (Pr 8:17)

?Deus demonstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando éramos ainda pecadores? (Rm 5:8).

?Que Cristo habite pela fé em vossos corações e que sejais arraigados e fundados no amor. Assim tereis condições para compreender com todos os santos qual é a largura e o comprimento e a altura e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo que excede a todo conhecimento? (Ef 3:17-19).

?Tornai-vos, pois, imitadores de Deus, como filhos amados, e andai em amor, assim como Cristo também nos amou e se entregou por nós? (Ef 5:1-2)

?Deus é amor: aquele que permanece no amor permanece em Deus e Deus permanece nele? (1 Jo 4:16).

Os místicos de todos os tempos sabem, por experiência própria, que Deus é amor, o mais puro, verdadeiro, total e incondicional amor que existe. Poderíamos imaginar que o amor de Deus experimentado pelos místicos, pelo fato deles estarem a caminho da santidade, não seria necessariamente a experiência das pessoas comuns. Puro engano. Não só as pessoas comuns, mas até mesmo algumas que cometeram ou tentaram cometer um dos maiores crimes, o suicídio, tiveram a comprovação cabal do amor incondicional de Deus por elas. Nas últimas décadas, pesquisadores vêm coletando relatos de pessoas que passaram por experiências geralmente referidas como de quase morte, ou experiência perto da morte (EPM), que revelam aspectos da vida ignorados pela maior parte das pessoas.

Talvez o mais conhecido pesquisador nessa área seja o médico americano, R.A. Moody Jr.[59] Usando, porém, os relatos contidos num livro disponível em português, podemos acompanhar a experiência de pessoas comuns que, em virtude de um acidente, uma operação cirúrgica ou mesmo um atentado contra sua própria vida, passaram pelas primeiras etapas da morte. Apesar das características pessoais desses relatos, alguns pontos comuns são observados. Quase todos descrevem o sentimento de passarem por uma espécie de túnel escuro em alta velocidade, de fazerem uma revisão extremamente rápida, mas completa, de toda sua vida, percebendo as conseqüências de seus atos e como que julgando a si mesmos, e, o mais marcante, a aproximação de uma luz fulgurante que é a mais forte expressão do amor que jamais experimentaram. Essa luz amorosa é geralmente descrita como Deus pela maior parte dessas pessoas. A experiência de Janet, que passou por uma EPM em conseqüência de uma cirurgia, foi descrita em suas palavras, assim:

?Senti uma paz total, um êxtase total. E o tempo não existia. Eu então senti que estava me movimentando muito rapidamente, no que parecia ser o espaço exterior. E eu me dirigia para uma luz muito brilhante. Parei antes de alcançar a luz. E senti essa grande presença de amor, amor absoluto. Houve então uma revisão de toda a minha vida. Lembro de olhar para ela, avaliá-la e julgá-la por mim mesma. Senti que ninguém mais me julgou ? eu julguei a mim mesma. Acho que a maior vergonha que senti em relação à minha vida foi o fato de ter rejeitado totalmente o conceito de Deus. Eu não havia dado, em absoluto, nenhum reconhecimento a Deus, eu realmente não acreditava em Deus. E senti uma tamanha tristeza por ter duvidado de que Deus existia, pois Ele era tão real e tangível ? a essência total do amor. Digo ?Ele?, mas isso é apenas o meu condicionamento. Deus era apenas essa essência, essa essência total de amor.?[60]

Jesus, ao ser perguntado qual era o maior mandamento, respondeu: ?Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Desses dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas? (Mt 22:37-40). Sabemos que Deus tem um plano divino, e que o propósito do homem nesse plano é realizar a sagrada missão de manifestar sua natureza espiritual em sua natureza material. Em virtude da liberdade de ação e pensamento que Deus nos concedeu (o livre arbítrio), Seus mandamentos dirigidos à humanidade não têm um sentido de proibição ou exigência impositiva do Governante para com seu súdito. Ao contrário, refletem a suprema compaixão e sabedoria do Pai Celestial, pois visam facilitar a jornada de seus filhos rumo à realização desse plano e, conseqüentemente, a realização da suprema bem-aventurança de todos os seres humanos.

Procuremos examinar com mais atenção esses dois mandamentos dos quais dependem toda a lei e os ensinamentos dos profetas. O primeiro ponto que nos chama a atenção é o fato do Mestre nos instar a amar ao ?Senhor teu Deus?. Por que Jesus não diz simplesmente amar a Deus, expressando assim a realidade impessoal de que só existe um Deus, que é o Deus de todos os homens, de todos os seres e de todas as coisas? A expressão de Jesus, porém, nos remete ao aspecto pessoal de Deus em nós, Deus imanente, ou seja, ?teu Deus.? O referencial do objeto de nosso amor como sendo Deus interior, facilita a missão do homem de amar ao seu Deus interior de todo seu coração e com toda sua alma, pois Deus não mais será concebido como um Deus transcendente e, portanto, distante, mas sim como estando muito perto, na verdade, no âmago de nosso coração.

Jesus acrescenta ainda, que devemos amar a Deus ?de todo nosso entendimento.? Nesse ponto, o Divino Mestre oferece uma abertura para que a alma expresse seu grau de amadurecimento. Qual é o nosso entendimento de como devemos amar a Deus? Como o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, sempre que estiver perdido ou inseguro sobre como agir diante da Divindade, seu primeiro ponto de referência deve ser a expressão terrena da Divindade, ou seja, o próprio homem. Portanto, como uma primeira aproximação, procuremos imaginar como devemos expressar o mais puro, verdadeiro e sincero amor a outro ser humano. Em primeiro lugar, deve-se procurar saber o que o outro precisa e de que gosta e, em seguida, procurar com todo empenho e, dentro do razoável, fazer o que ele gosta. Assim, o que Deus espera de nós, seus filhos, o que Lhe dá mais alegria? Não precisamos de muita imaginação para saber que o Pai celestial, que tem tudo e não precisa de nada de nosso mundo, simplesmente deseja que nós, seus filhos, sejamos felizes. Mas ele quer para nós a verdadeira e permanente felicidade e não meramente as alegrias e prazeres ilusórios e passageiros deste mundo. Para alcançarmos essa verdadeira felicidade precisamos cumprir nossa missão no mundo, que é ?conhecermos a Verdade que nos libertará.?

Em termos práticos, amar a Deus é nada mais nada menos do que o instrumento para conhecermos a Verdade e alcançarmos a suprema bem-aventurança. Como podemos estar certos disso? Vejamos: como Deus é a realidade última, sempre que voltamos o nosso coração e interesse para Deus estamos tirando a nossa atenção do mundo material ilusório que nos cerca e nos aprisiona. O verdadeiro amor a Deus nos transforma de seres autocentrados em seres centrados em Deus (theoscentrados). Esse era o ideal a que Paulo nos conclamava ao dizer que devemos deixar morrer o homem velho em nós para que o homem novo centrado em Deus pudesse nascer. Para isso devemos aceitar a dádiva de amor que Jesus nos concedeu, ou seja, seus ensinamentos voltados para nossa salvação: ?Quem tem meus mandamentos e os observa é que me ama; e quem me ama será amado por meu Pai? (Jo 14:21).

Mas o nosso entendimento do amor a Deus pode ir mais além. Quem ama verdadeiramente neste mundo deseja unir-se ao objeto de seu amor. Esse deve ser também o objetivo último de nosso amor a Deus, evoluirmos do estágio em que procuramos agradá-lO, para o estágio de sermos admitidos à sua Presença e comungarmos com Ele, para finalmente alcançarmos a suprema bem-aventurança em que poderemos nos unir de forma permanente a Ele. Essa tem sido a trajetória de todos os místicos, os homens e mulheres que, em todos os tempos e religiões, conseguiram, por meio de sua total entrega a Deus, superar todas as dificuldades até alcançar o Supremo Bem e tornarem-se unidos ao Bem Amado.

O segundo mandamento e que tem a mesma importância do primeiro, é: ?Amarás o teu próximo como a ti mesmo.? É interessante notar que, em aramaico, a palavra usada para ?ti mesmo? era a mesma que foi traduzida como ?alma? no primeiro mandamento. A palavra era ?naphsha? que corresponde a ?nephesh? em hebraico. Esse termo é difícil de traduzir por uma única palavra, sendo as mais comumente empregadas: ?alma,? ?si mesmo? e ?vida.? A idéia corresponde à natureza interior do homem, seu Cristo interno ou eu superior.[61] Portanto, devemos amar nosso próximo como ao nosso Cristo interior. Vemos assim, porque Jesus disse que o segundo mandamento era semelhante ao primeiro, pois o ?si mesmo? é o Cristo interior, que por sua vez é o Senhor nosso Deus.

Infelizmente, alguns teólogos pregam a noção errônea de que todo homem, em virtude do ?pecado original?, não passa de um ser reles, verdadeiro verme indigno do amor de Deus. Essa idéia ainda assombra e abate muitos devotos que desejam se aproximar de Deus e são tolhidos pela barreira psicológica de sua suposta indignidade. Deus não nos criou como lixo ou como vermes, mas sim como seus filhos bem amados. Se Ele nos ama de forma incondicional, nós também devemos nos amar, pois, na verdade, somos Ele em nossa essência última. Na medida em que estivermos conscientes de que não somos nosso corpo ou nossa natureza exterior, mas sim o Cristo interior, torna-se óbvio que é um erro grosseiro nos considerarmos como vermes indignos de Deus.

Fica claro que é impossível amar a Deus sem amar nosso próximo, já que ele é também uma expressão de Deus, o Cristo interior em todos os seres. Por essa razão foi dito: ?Quem não ama seu irmão, a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá amar? (1 Jo 4:20). Por outro lado, ao amarmos verdadeiramente nosso próximo estaremos também expressando nosso amor a Deus, pois nosso próximo é uma outra expressão de Deus, da mesma forma como nós somos. Essa identidade misteriosa de Cristo, como o Segundo aspecto da Trindade e como o Cristo interior em todos os homens, é asseverada na passagem em que é dito que os justos receberiam a herança do Reino: ?Pois tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e me recolhestes. Estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, preso e vieste ver-me.? E ao ser questionado pelos justos quando todas essas coisas tinham ocorrido, respondeu-lhes o Senhor: ?Em verdade vos digo: cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes? (Mt 25:35-36, 40).

Com isso torna-se mais fácil entendermos a profundidade e abrangência da ode ao amor escrita por Paulo, muitas vezes referida erroneamente como Hino à Caridade, erro esse advindo da tradução da palavra amor no original grego, agape, para o latim como caritas, e dessa língua para o português como caridade.

?Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e as dos anjos, se eu não tivesse amor, seria como um bronze que soa ou como um címbalo que tine.

Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência, ainda que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tivesse amor, eu nada seria.

Ainda que eu distribuísse todos os meus bens aos famintos, ainda que entregasse o meu corpo às chamas, se não tivesse amor, isso nada me adiantaria.

O amor é paciente, o amor é prestativo, não é invejoso, não se ostenta, não se incha de orgulho.

Nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor.

Não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade.

Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.

O amor jamais passará. Quanto às profecias, desaparecerão. Quanto às línguas, cessarão. Quanto à ciência, também desaparecerá. Pois o nosso conhecimento é limitado, e limitada é a nossa profecia. Mas, quando vier a perfeição, o que é limitado desaparecerá? (1 Co 13:1-10).

Podemos entender agora porque Jesus, seus discípulos e evangelistas insistiram tanto na importância do amor. Ao longo do texto bíblico, inúmeros apelos são feitos para amar-nos uns aos outros (Jo 15:17), a amar-nos como Jesus nos amou (Jo 13:34 e 15:12) e até mesmo a amar nossos inimigos (Mt 5:44). Desses, amar nossos inimigos é, talvez, o mais duro teste para o verdadeiro cristão. Só conseguimos amar nossos inimigos quando nos tornamos conscientes de que nosso verdadeiro ser é o Cristo interior, e não a personalidade exterior. Então, passaremos a perceber que aquele que age como nosso inimigo é, na verdade, o Cristo aprisionado no interior de uma personalidade imatura e cega pela ignorância, que, por essa razão, é levada a odiar e agredir seu próximo (nesse caso a nós mesmos). Mas perdoar e amar nossos inimigos é também um ensinamento de grande profundidade. O verdadeiro perdão a nossos inimigos funciona como uma esponja purificadora que apaga o elo que possa ter sido estabelecido com aquele que nos persegue em virtude da operação da lei de causa e efeito. Perdão é um ato de supremo desapego da nossa natureza inferior, que clama por retaliação, e sua prática proporciona o necessário espaço para que o sentimento de compaixão do Cristo interior se manifeste.

O amor a Deus é a chave para o progresso espiritual que nos levará ao conhecimento da Verdade libertadora. Aqueles que por ventura se sentem ainda incapazes de amar ao Senhor seu Deus de todo coração, de toda alma e de todo entendimento não precisam desanimar. Sabemos que o caminho espiritual começa sempre no ponto onde estamos. Para aqueles que só conseguem amar seus pais, filhos e seu marido ou esposa esse é um bom ponto de partida. O segundo passo é aumentar a intensidade desse amor de forma altruísta. A seguir, estender esse amor a um número cada vez maior de pessoas. Chegará o momento em que serão capazes de perceber que Deus está no interior de cada ser. Nesse momento aquelas pessoas compreenderão que estão amando a Deus de acordo com seu entendimento. A partir de então só precisarão aumentar a dedicação e o grau de entrega na expressão do seu amor.

O aspirante que, ardendo de amor em seu coração, se julgar preparado a invocar as bênçãos do Senhor para conhecer a verdade libertadora deveria certificar-se se ele realmente está pronto para entregar-se inteiramente ao Senhor. Quando pedimos a Deus o maior tesouro que o homem pode possuir, ou seja, a presença consciente de nosso Bem-Amado, devemos estar prontos para dar o que até então era o bem mais valioso para nós, a nossa vida, o nosso tempo. Aquele que tudo nos dá também espera de nós tudo o que temos. Essa é a suprema renúncia que deve ser feita por todo aquele que aspira alcançar as alturas espirituais.

Nossa atitude nesse processo deve ser de entrega total a Deus. Jesus disse: ?Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz cada dia e siga-me? (Lc 9:23), indicando, a todos os que almejam alcançar o estado de unidade com o Pai, quais são as qualificações para isso. A primeira, é renunciar a si mesmo, significando renunciar ao mundo e à gratificação do eu ? é a fase de desapego e purificação mencionada anteriormente. A segunda, é tomar sua própria cruz cada dia, aceitando sem recriminações as conseqüências ainda pendentes da lei da retribuição, acrescidas das provações e testes inerentes à vida espiritual. A Via Sacra pela qual Jesus passou expressa de forma contundente a cruz das provações que todos nós temos que carregar, não uma só vez, mas todos os dias, para chegar ao topo da montanha. Finalmente, seguir Jesus significa seguir seus ensinamentos e seu exemplo de vida altruísta, inteiramente dedicada à sua missão redentora. Obviamente, poucos estão preparados para esse grau de comprometimento espiritual; isso explica por que muitos são chamados, mas poucos são escolhidos (por si mesmos) para trilhar o caminho apertado que leva à Casa do Pai.

Talvez uma pequena parábola possa ilustrar as implicações de nossa aspiração pela bênção divina e a atitude que devemos desenvolver para que a possamos receber.

Um jovem monge vivia em reclusão num mosteiro isolado. Ele era muito dedicado e aspirava ardentemente alcançar a graça da experiência de Deus, mas, sendo jovem, tinha muitas idéias próprias de como as coisas deveriam ser feitas.

Um dia observou que um abacateiro no pomar, ao contrário das outras árvores, não havia produzido frutos. Sabendo que o mosteiro era pobre, pensou que uma ampla colheita de abacates iria representar uma grande dádiva para seus irmãos de claustro. Resolveu então pedir a Deus, com todo fervor, que enviasse suas bênçãos para o pequeno abacateiro para que ele produzisse muitos frutos.

E Deus atendeu a seu pedido! Na estação seguinte a árvore floriu alegremente, e, alguns dias depois, começaram a aparecer dezenas, talvez centenas de pequeninos abacates. Passaram-se as semanas e os abacates foram crescendo até que, num dia, para espanto e pesar do jovem monge, um ramo não agüentou o peso da farta produção de frutos e quebrou. Em poucos dias quebraram-se praticamente todos os galhos do abacateiro, deixando todos os monges desolados.

Nosso jovem monge não conseguia entender o que havia ocorrido. Havia pedido a Deus com toda fé sua bênção e essa lhe havia sido concedida. Mas, antes que o benefício esperado pudesse ser colhido tudo tinha sido perdido. Buscou refúgio na capela e orou com todo fervor pedindo a Deus para entender. Finalmente, depois de várias horas de profundo recolhimento, finalmente, vencido pelo cansaço parou de orar e entregou-se a Deus. Nesse momento teve a nítida impressão de ter ouvido como que uma voz silenciosa em seu coração dizendo: ?O abacateiro não estava preparado para receber a Minha bênção. Você está preparado??

Será que já desenvolvemos a fortaleza interior necessária para receber a bênção de Deus que tanto aspiramos sem nos desestruturamos? Para alcançarmos a comunhão com Deus teremos que nos fortalecer em todos os sentidos. O exemplo do abacateiro é especialmente feliz porque todo ser humano no caminho espiritual pode ser comparado a uma árvore. Mas ele deve tornar-se uma árvore especial, divina, promovendo uma radical transformação na sua orientação de vida, que seria simbolizada por uma árvore invertida, com suas raízes voltadas para o céu e seus ramos e frutos tocando a terra. As raízes para o alto simboliza que ele passou a buscar sustentação no mundo divino, dele tirando seu sustento interior. O pão e vinho da sagrada eucaristia que nos foram dados por Nosso Senhor simbolizam esse alimento do Alto que deve nutrir nossa vida interior. Por outro lado, devemos estar inteiramente desapegados e cientes de que nossa vida não mais nos pertence: tudo o que produzirmos, todos os frutos de nossas virtudes deverão ser colocados à disposição da família humana, portanto, os frutos da árvore invertida estarão tocando o solo, simbolizando a atitude altruísta de doação.

Esse é o sentido profundo da metanóia, a transformação da mente que é a radical reorientação interior de todo aquele que aspira trilhar o caminho apertado que leva à verdade. Em vez de nos firmarmos e buscarmos nosso sustento no mundo material que tão bem julgamos conhecer, devemos agir como as aves do céu e os lírios do campo, entregando nossas vidas ao cuidado do Senhor. Mas, isso não significa que nos tornaremos irresponsáveis e alheios às necessidades terrenas. Passaremos a ser obreiros na seara do Senhor, dedicando nosso tempo e energia para o benefício de todos os seres, sempre com altruísmo e sabedoria, seguindo o exemplo do Divino Mestre.

 

Contemplação ou oração do silêncio

Em nosso processo de busca por uma crescente sintonia com o Cristo interior, a fonte da Verdade, verificamos que primeiro precisamos neutralizar as vibrações dissonantes com a Divina Presença e, a seguir, promover as vibrações que nos aproximam de nossa meta. O último passo é soarmos a nota secreta que servirá como ponte para a travessia do abismo existente entre a terra (nossa consciência de cérebro usual) e o céu (a consciência de Deus em nosso interior). Nesse momento nos confrontamos com mais um paradoxo da vida espiritual, pois essa vibração secreta é o mais profundo silêncio, exterior e interior, em que se alcança a aquietação total da mente. O que se faz necessário para a comunicação com nosso Deus interior é o silêncio. Esse mistério já era conhecido dos antigos judeus, tendo sido revelado como: ?Aquietai-vos, e sabei que eu sou Deus? (Sl 46:10).

Com o ritmo acelerado da vida moderna, em que o homem é constantemente atraído e entretido por coisas em seu exterior, a aquietação das emoções e da mente parece impossível, tal é o alvoroço no ambiente de trabalho, barulho em nossos meios de transporte e no ambiente familiar, com o incessante ruído da televisão, música barulhenta e chamadas telefônicas. Por isso, enquanto nossa personalidade estiver voltada para as coisas exteriores, o crescimento espiritual será mínimo, porque a porta que leva ao Cristo interior só pode ser encontrada e aberta no silêncio, que por sua vez só é encontrado quando nos voltamos para o interior.

A Providência Divina, no entanto, está sempre procurando nos fazer olhar para dentro. Infelizmente, para as pessoas comuns, isso só pode ser conseguido pela dor, devido à insistência da personalidade de viver no mundo de futilidades e coisas não-essenciais da vida moderna. A dor, seja devido a uma doença, a perda de um ente querido, a uma crise profissional ou financeira, a uma profunda decepção, sempre nos leva à introspecção e a reavaliar nossas vidas. Nos momentos de dor e crise pode despontar em nossos corações a semente da compaixão, ao verificarmos que muitas outras pessoas também estão sofrendo como nós.

Deus fala de uma forma muito especial que, às vezes, é referida como a ?voz do silêncio?. O valor da contemplação é que ela tende a produzir o estado de tranqüilização, permitindo a percepção transcendental e transformando a servidão inferior, em que o homem natural vive sob a influência de seu ambiente terreno, na servidão superior da dependência consciente daquela Realidade em que ?vivemos, nos movemos e existimos?, como expresso pelo Apóstolo Paulo (At 17:28).

Nos primeiros séculos, entre os padres do deserto, como eram chamados os que abandonavam a vida nas comunidades e cidades para buscar, no recolhimento do deserto, as condições apropriadas para a experiência de Deus, surgiam vários neófitos devotos buscando também essa experiência. Ao perguntarem a seus irmãos mais experientes nessa busca o que era preciso fazer, a resposta usual era levá-lo a um poço para ver seu próprio rosto. E diziam, então, ?Tu fostes criado à imagem e semelhança de Deus. Olha para ti primeiramente? e mandavam-no olhar seu rosto na água do poço. Mas, enquanto o neófito olhava para a superfície da água, começavam a jogar pedrinhas na água, agitando-a. Inevitavelmente o devoto reclamava que não podia ver seu rosto na água em movimento. Ao que os instrutores respondiam: ?Assim como é impossível para uma pessoa ver seu rosto em águas agitadas, também é impossível buscar a Deus se a mente estiver ansiosa, agitada e distraída.?

Mesmo nos dias de hoje e para as pessoas ativas no mundo, a contemplação tem o poder de operar a alquimia interior de transformação do chumbo da natureza material do homem no ouro da percepção de sua natureza superior. Nas palavras de Frei Betto: ?O contemplativo é aquele que sabe fazer silêncio no sentido etimológico de selo. O selo de Deus me guarda. Como ensina santo Tomás, quanto mais vou ao encontro de mim mesmo, mais descubro em mim um outro que não sou eu e, no entanto, é o fundamento do meu existir. A descoberta de Deus é sempre mediatizada pela autodescoberta. Quando rezo, encontro um outro que não sou eu, mas que, no entanto, apela para que eu seja o meu Eu verdadeiro. A espiritualidade corrente ou institucional privou-nos desse conteúdo na medida em que doutrinarizou a experiência da contemplação. Ficamos com a cabeça cheia de discursos sobre Deus. Sabemos falar de Deus, sobre Deus, e até falar com Deus. Mas somos analfabetos quando se trata de deixar Deus falar em nós.?[62]

Vejamos, portanto, em que consiste essa prática específica que permite a Deus falar em nós. Essa prática é a meditação, muitas vezes referida na tradição cristã como a oração do silêncio, ou contemplação. A prática da meditação é apresentada na Bíblia de forma alegórica. Jesus, contrastando a postura daqueles que chama de hipócritas por fazerem suas orações nas sinagogas e em lugares públicos para serem vistos, exorta seus seguidores a fazer suas orações em recolhimento: ?Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto e, fechando tua porta, ora ao teu Pai que está lá, no segredo; e o teu Pai, que vê no segredo, te recompensará? (Mt 6:6).

As palavras do Mestre transmitem um ensinamento profundo, quando devidamente entendidas. O que é apresentado como sendo externo, o quarto de dormir, refere-se a algo interno, a caverna do coração. Jesus nos exorta a por nossa atenção no âmago de nosso ser, simbolizado pelo coração. Fechar a porta, significa fechar a entrada das percepções do mundo exterior, inclusive o fluxo de pensamentos, para o recôndito da consciência. Orar em segredo ao Pai significa permanecer em absoluto silêncio, sem palavras e pensamentos, no que é conhecido na tradição monástica como o estado de contemplação. Com essa total aquietação da mente criamos as condições para que a pura luz da intuição possa atravessar nossa mente e gravar em nosso cérebro o conhecimento da Verdade, a maravilhosa recompensa prometida pelo Pai.

Os místicos de todos os tempos praticaram a meditação contemplativa ainda que se referissem a ela por vários nomes. Muitos escritores durante os primeiros séculos do cristianismo fizeram referência a ela.[63] S. Pedro de Damasco, um dos padres da igreja primitiva, escreve: ?Somente o silêncio engendra o conhecimento de Deus, pois ele é da maior ajuda mesmo para os mais fracos e para aqueles sujeitos às paixões. Ele capacita os devotos a viverem sem distrações e a retirarem-se da sociedade humana, dos cuidados e encontros que obscurecem o intelecto.?[64]

Para que o devoto possa alcançar a experiência de Deus, ele não precisa acrescentar nada a sua vida. Ao contrário, precisa retirar todo ruído, toda interferência exterior, todas imagens e projeções que tem de Deus. A voz do silêncio com que Deus fala aos seus filhos diletos é uma palavra misteriosa, como sugere mestre Eckhart: ?Essa palavra é uma palavra oculta e chega na escuridão da noite. Para entrar nessa escuridão retire todas as vozes e sons, todas imagens e semelhanças. Pois nenhuma imagem jamais alcançou as fundações da alma onde o próprio Deus atua com seu ser.?

As referências à oração do silêncio de Teresa de Ávila em seu livro: Castelo Interior ou Moradas,[65] são extremamente reveladoras. Ela descreve a oração do silêncio como uma entrega total da alma a Deus. A alma deve agir como um bicho da seda que se recolhe ao silêncio de seu casulo para morrer e assim transformar-se numa linda borboleta, como disse Santa Teresa: ?Olhai esta alma, à qual Deus suspendeu totalmente o intelecto e os sentidos, deixando-a abobada, a fim de lhe imprimir melhor a verdadeira sabedoria. Durante o tempo em que dura esse estado, não vê, não ouve, nada entende. Esse tempo é sempre breve e parece-lhe ainda mais breve do que realmente é. De tal forma Deus se imprime a si mesmo no interior dessa alma que, ao sair daquele estado, voltando a si, de nenhum modo duvida de que esteve em Deus e Deus nela.?[66]

João da Cruz[67] talvez tenha inspirado o retorno dessa prática para grande número de fiéis dentro da Igreja Católica em nossos dias. Com sua linguagem poética ele consegue de alguma forma transmitir a experiência da alma em busca do Bem Amado nos mundos sutis em que Ele se encontra: ?Se está em mim aquele a quem minha alma ama, como não o acho nem o sinto? A causa é estar ele escondido, e não te esconderes também para achá-lo e senti-lo. Quando alguém quer achar um objeto escondido, há de penetrar ocultamente até o fundo do esconderijo onde ele está; e quando o encontra, ficar também escondido com o objeto oculto. Teu amado Esposo é esse tesouro escondido no campo de tua alma, pelo qual o sábio comerciante deu todas as suas riquezas (Mt 13:44); convém, pois, que, para o achares esquecendo todas as tuas coisas e alheando-te a todas as criaturas, te escondas em teu aposento interior do espírito; e, fechando a porta sobre ti (isto é, tua vontade a todas as coisas), ores a teu Pai no segredo. E assim, permanecendo escondido com o Amado, então o perceberás às escondidas, e te deleitarás com ele às ocultas, isto é, acima de tudo o que pode alcançar a língua e o sentido.?[68]

Mas o que o devoto encontrará nesse silêncio? Os místicos que alcançam e se adentram nesse território desconhecido da mente humana têm dificuldade para descrevê-lo, em virtude das percepções inusitadas à sua consciência usual. A grande dificuldade é que a personalidade não está familiarizada com essas experiências e não tem termos de referência para elas, seja em seu mundo material seja em termos de seu sistema de pensamento. Por exemplo, uma pessoa que nunca tivesse ouvido uma grande sinfonia de um dos gênios da música não teria termos de comparação para descrevê-la objetivamente. A única coisa que poderia fazer seria dizer o que sentiu ao ouvi-la. Essa é a principal razão porque as expressões de sentimento são preponderantes nas descrições do estado contemplativo.

Vejamos, como o grande místico alemão Tauler, descreve esse estado: ?As grandes extensões desertas encontradas nesse território divino não têm imagem, nem forma, nem condição, pois elas não estão nem aqui nem lá. Elas são semelhantes a um abismo insondável, sem fundo e flutuando em si mesmo. Mesmo com a água indo e vindo, para cima e para baixo, agora afundando num buraco, de forma que parece que não existe água ali, e logo a seguir surgindo repentinamente como se fosse engolfar tudo, assim ocorre nesse Abismo. Esse, verdadeiramente, é muito mais o lugar de moradia de Deus do que o céu imaginado pelo homem. O homem que realmente deseje entrar certamente encontrará Deus ali, ficando ele mesmo simplesmente em Deus, pois Deus nunca se separa desse território. Deus estará presente com ele, e ele encontrará e se regozijará da eternidade aqui. Não existe passado nem presente aqui, e nenhuma luz criada pode alcançar ou brilhar nesse território divino. Somente aqui se encontra o lugar da morada de Deus e seu santuário.?[69]

Com o passar do tempo, a repetição da prática da contemplação leva a alma a passar por experiências cada vez mais profundas e transformadoras. Santa Teresa, falando de um nível de experiência interior ainda mais profundo do que o citado anteriormente, diz que chega um determinado momento em que o Divino Esposo decide levar a noiva (a alma) como num rapto: ?Quando começa o rapto, ela perde o fôlego. A tal ponto que, mesmo quando conserva os outros sentidos por um pouquinho de tempo ? como acontece algumas vezes ? não pode absolutamente falar. De outras vezes perde todos os sentidos de repente. Esfriam-se-lhe as mãos e o corpo, de modo que parece não ter mais vida. Nem se sabe se ainda respira. Dura pouco tempo sem mudança. Diminuindo um pouco a suspensão, parece que o corpo vai tornando a si e cobrando alento. Mas logo torna a morrer, para dar mais vida à alma. Contudo, esse êxtase tão grande não dura muito.?[70]

A meditação do silêncio, apesar de sua simplicidade, tem o potencial de proporcionar benefícios incalculáveis a seus praticantes. Vários livros foram escritos a respeito dessa prática.[71] A oração do silêncio, resgatada dos primórdios da tradição cristã, depois de ter sido esquecida por vários séculos, vem sendo apresentada em linguagem moderna em duas vertentes principais: a da ordem cisterciense e a dos beneditinos. Ambas declaram que a prática foi originalmente ensinada por Jesus e praticada extensamente pelos padres do deserto.

Depois de esquecida ou não mencionada na literatura, por vários séculos, foi resgatada no século XIV por um autor anônimo, provavelmente um monge, que escreveu uma das obras mais influentes entre os místicos conhecida como A Nuvem do Não-Saber.[72] Membros da ordem cisterciense, com base na Nuvem do Não-Saber, desenvolveram a técnica que eles tornaram conhecida como oração centrante.[73] A ordem cisterciense, também conhecida como trapista, estabeleceu grupos de oração centrante atuando em vários países, sendo que suas práticas meditativas e atividades de retiro podem ser conhecidas até mesmo pela Internet.[74]

O método da oração centrante é simples e visa promover o silêncio interior. De forma resumida,[75] escolhemos em primeiro lugar uma palavra simples, à qual atribuímos um valor sagrado. Essa palavra simboliza nosso consentimento à presença e ação de Deus em nosso interior. Ela deve tocar nosso coração com algum significado ou aspecto divino, tal como luz, paz, amor, Senhor, Jesus, Pai etc. Sentado confortavelmente e com a coluna ereta, o devoto deve procurar o silêncio interior, na câmara secreta do coração, onde Jesus disse que se encontra o ?Pai em segredo.? Quando percebermos pensamentos aflorando em nossa mente, devemos enunciar mentalmente, de forma lenta e suave, a nossa palavra sagrada; com muita paciência, devemos repetir essa palavra sagrada todas as vezes que percebermos pensamentos em nossa consciência.

O termo ?pensamento? é usado para englobar toda percepção, incluindo as percepções dos sentidos, sentimentos, imagens, memórias, reflexões ou comentários. Qualquer que seja o ?pensamento?, devemos retornar sempre, gentilmente, para a palavra sagrada; essa é a única atividade que iniciamos durante a meditação do silêncio. Mesmo que aparentes percepções ou idéias interessantes possam aflorar durante o exercício contemplativo, elas não devem ser elaboradas, mas simplesmente deixadas passar, voltando-se ao silêncio mental.

Um dos mais ativos divulgadores da oração centrante, William Meninger, monge da ordem trapista, que obviamente alcançou profunda realização mística por meio da contemplação, utiliza uma alegoria imaginativa, nos moldes da linguagem sagrada descrita anteriormente, para descrever as dificuldades que serão encontradas pelo devoto para firmar-se na contemplação. Ele descreve as principais fontes de atividade da mente, como quatro irmãs que moram numa pequena casa, o corpo humano. A mais ativa chama-se Intelecto. Ela passa a maior parte do tempo na sala da frente, bem iluminada e com a porta aberta para receber todo visitante que possa trazer algum tipo de verdade. E muitos visitantes chegam a todo instante. A segunda irmã, Dona Vontade, é cega e vive no quarto dos fundos, sem janelas e sempre escuro. Da. Intelecto percebe as verdades com seus sentidos e leva as mais significativas para sua irmã, Da. Vontade, que, sendo cega, abraça-as com fé e amor. As duas outras irmãs, Da. Memória e Da. Imaginação, vivem no porão cercadas de fotos e filmes. Estão constantemente buscando materiais que julgam ter o poder de ajudar suas irmãs na busca da verdade. Porém, realmente atrapalham mais do que ajudam, por isso suas irmãs procuram mantê-las trancadas no porão quando estão seriamente engajadas na procura da verdade. Somente quando Memória e Imaginação ficam quietas no porão sem interromper o trabalho de suas irmãs no nível térreo, e quando Da. Intelecto está dormindo, é que Da. Vontade consegue, sem ser perturbada, fazer progresso em sua busca silenciosa da Verdade.[76]

A vertente da oração do silêncio difundida pela ordem dos beneditinos é muito semelhante a dos trapistas. Sua característica marcante é o uso da palavra maranatha durante a meditação. Essa palavra aramaica significa ?vem Senhor?, sendo mencionada ao final da Primeira Carta aos Coríntios e no final do Apocalipse de João. A meditação deve ser realizada duas vezes ao dia, com duração de 20 a 30 minutos. O meditador deve se sentar ereto, fechando levemente os olhos e mantendo-se relaxado, mas alerta. De forma silenciosa em seu interior, deve repetir a palavra maranatha, recitando-a lentamente como quatro sílabas de igual comprimento: ma ? ra ? na ? tha. Não pense nem imagine nada. Se vierem pensamentos ou imagens à sua mente durante a meditação, são distrações. Volte simplesmente a repetir ma ? ra ? na ? tha. O uso dessa palavra poderosa tem a vantagem de nos colocar em sintonia com a vibração de devoção de muitos milhares de místicos que a usaram ao longo dos séculos. Essa vibração de amor e entrega a Cristo, repetindo constantemente nosso apelo: ?Vem Senhor,? não deixará de produzir seu fruto esperado.

A ordem dos beneditinos, sob a liderança do monge Laurence Freeman, continuador do trabalho de John Main, que introduziu a técnica, vem promovendo ativamente essa prática, conhecida como ?meditação cristã?. Uma instituição sediada em Londres, conhecida como World Community for Christian Meditation, foi criada para promover retiros de fim de semana e ensinar a técnica, com várias práticas dirigidas e apresentação de palestras sobre vários aspectos da meditação. Eles procuram estimular a criação de grupos de meditação, existindo atualmente mais de mil desses grupos em mais de 40 países. No Brasil é conhecida como Comunidade Mundial de Meditação Cristã.[77]

Nas palavras de John Main: ?A visão cristã da vida é a unidade. Essa é a idéia por trás da disciplina da meditação. Seu objetivo é perceber que toda a humanidade foi unificada naquele que está unido com o Pai. Toda a matéria e toda criação também é atraída ao movimento cósmico em direção à unidade que será a realização da harmonia divina. Na união nos tornamos aquele que fomos chamados a ser. Somente na união sabemos plenamente quem somos.? A conquista interior da percepção da unidade levou os líderes da Comunidade, inicialmente John Main e, após seu falecimento, Laurence Freeman, a promover ativamente o diálogo com outras religiões. Um resultado desse trabalho de aproximação religiosa foi a publicação do livro do Dalai Lama versando sobre uma perspectiva budista dos ensinamentos de Jesus, com o título de The Good Heart,[78] que tem uma introdução com apresentação do contexto cristão pelo padre Laurence Freeman.

A jornada interior no território do silêncio é longa e árdua. Muitos neófitos desistem porque acham que não estão progredindo após algumas semanas e mesmo meses de prática, pois não percebem resultados exteriores. Sabemos, pela lei da ação e reação, que todo ato tem suas conseqüências. Assim, nossos esforços na meditação certamente têm seus resultados interiores, ainda que não sejam notados por nossa consciência. Os meditadores avançados ensinam-nos que, com a prática continuada da meditação, a matéria de nosso cérebro vai sendo paulatinamente purificada e energizada, acumulando as condições necessárias até que, num determinado momento, a massa crítica é alcançada e ocorre o vôo da alma rumo ao céu infinito.

Quando se alcança o silêncio interior começa a vida contemplativa do místico. Nas palavras de um místico moderno bem conhecido, a prática contemplativa ?é a vocação para a união transformadora, para o cume da vida mística e da experiência mística, para a verdadeira transformação em Cristo, para que Cristo vivendo em nós e dirigindo todas nossas ações possa Ele mesmo fazer com que os homens desejem e busquem aquela mesma união exaltada da alegria, da santidade e da vitalidade sobrenatural irradiada por nosso exemplo, ou melhor, por causa da influência secreta de Cristo vivendo em nosso interior em completa posse de nossas almas.?[79]

Para concluir, o devoto deve estar ciente de que o trabalho de aquietação da mente é o maior desafio de todos aqueles que buscam a Deus no âmago de seu ser. Os místicos algumas vezes levam vários anos para alcançar os resultados esperados. Parece que nossa natureza inferior luta contra o estabelecimento desse silêncio interior, sentindo instintivamente que o ambiente de recolhimento, totalmente contrário a sua hiper-atividade usual, causará sua morte figurativa, ou seja, fará com que seu domínio sobre o ser humano seja perdido para a alma. Por isso, somente com muita persistência e determinação será possível alcançarmos o silêncio interior e, assim, entrarmos no território sagrado onde Deus nos aguarda.

 


 

 

Voltar


PESQUISAR EM LEVIR.COM.BR

GLOSSÁRIO
TEOSÓFICO
HOME TEOSOFIA PALESTRAS ASTROLOGIA NUMEROLOGIA MAÇONARIA CRISTIANISMO ESOTERICA.FM MEMBROS
WWW.LEVIR.COM.BR © 1996-2024 - LOJA ESOTÉRICA VIRTUAL - FALE CONOSCO: levir@levir.com.br - whatsapp: 11-99608-1994