O MISTÉRIO DE BUDDHA
H.P.Blavatsky
(A Doutrina Secreta, Vol.VI,
pg.25/33)
Eis em que consiste o mistério de
Buddha:
Gautama, conquanto fosse a encarnação da Sabedoria divina,
teve que, em seu corpo humano, instruir-se e iniciar-se nos segredos do
mundo, como qualquer mortal, até o dia em que, abandonando seu retiro
secreto dos Himalaias, pregou pela primeira vez nos bosques de Benares. O
mesmo sucedeu com Jesus, de quem nada se diz e nada se sabe, desde a idade
de doze até a de trinta anos, quando reapareceu pregando o Sermão da
Montanha.
Gautama havia jurado segredo
inviolável sobre as doutrinas esotéricas que lhe foram comunicadas. Mas, por
causa da imensa piedade que lhe inspiravam a ignorância da humanidade e os
sofrimentos conseqüentes, e por mais que desejasse não quebrantar o solene
voto de sigilo, não pôde manter-se dentro dos limites prescritos. Quando
promulgou a sua filosofia exotérica (a "Doutrina do Olho"), baseada na
Verdade eterna, deixou de ocultar certos ensinamentos, e, transpondo os
lindes permitidos, deu motivo a que fossem mal interpretadas as suas
palavras. Ansioso por acabar com os falsos deuses, revelou, nos "Sete
Caminhos do Nirvana", alguns dos mistérios das Sete Luzes do Mundo Arupa
(sem forma). Um fragmento da verdade é muitas vezes mais nocivo que a
ausência dela.
"A verdade e a ficção são como o
azeite e a água: nunca se misturam."
Sua nova doutrina, que representava o
corpo externo do Ensinamento Esotérico, sem a alma que a vivifica, produziu
efeitos desastrosos: nunca foi corretamente entendida, e os budistas do Sul
acabaram repudiando-a. Sua imensa caridade e ilimitado amor para com os
homens e todas as criaturas estavam por trás do seu involuntário erro; mas o
Karma não leva muito em conta as intenções, boas ou más, quando não geram
frutos. A "Boa Lei", tal como a evangelizava Buddha, constituía o mais
sublime código de ética e o incomparável sistema filosófico das coisas
visíveis do Cosmos; e no entanto extraviou as mentes imaturas e
não-educadas, induzindo-as a crer que nada mais havia além da capa exterior
- e assim foi aceita unicamente a letra morta da doutrina. Por outro lado,
os novos ensinamentos perturbaram muitos homens inteligentes, que até então
se tinham mantido fiéis à crença bramânica ortodoxa.
Em tais circunstâncias, cinqüenta e
poucos anos depois de sua morte, o "Grande Mestre"[i] renunciou ao
Nirvana e ao estado de Dharmakâya, e preferiu renascer uma vez mais, por
motivos kármicos e de compaixão pela humanidade. Para Ele, a morte não havia
sido morte; mas, como se diz no "Elixir da Vida", trocou Ele
“a súbita imersão nas trevas por uma
transição para uma luz mais radiante". [ii]
Rompida foi a barreira da morte; e,
como outros muitos Adeptos, desfez-se Buddha do invólucro mortal, cujas
cinzas os discípulos guardaram como relíquia; e, revestido de seu corpo
sutil, começou a existência interplanetária. Renasceu como Shankara, o maior
instrutor vedantino da índia, e cuja filosofia (baseada, como a de Buddha,
embora sob um aspecto diferente, nos axiomas da eterna Revelação, Shruti ou
a primitiva Religião-Sabedoria) se atém a um justo meio-termo entre a
metafísica demasiado obscura dos brâmanes ortodoxos e a doutrina do budismo,
que, afastando com sua roupagem exotérica todas as esperanças espirituais,
todas as aspirações transcendentes e seus símbolos, semelha a cristalinos
pingentes de gelo e representa, em sua fria sabedoria, como que os
esqueletos das verdades primordiais da Filosofia Esotérica.
Então foi Shankarachârya o mesmo
Gautama Buddha sob nova forma pessoal? O leitor ficará talvez ainda mais
perplexo se lhe disserem que o corpo "astral" de Gautama encarnou no corpo
físico de Shankara, cujo princípio superior, ou Âtman, era, não obstante, o
seu próprio divino protótipo, o "Filho da Luz", o filho celeste nascido da
mente de Aditi.
Esse fato também se explica pela
misteriosa transferência da divina ex-personalidade, que se fundiu na
individualidade impessoal ( agora em sua plena forma trinitária de Mônada,
como Atmâ-Buddhi-Manas ), para um novo corpo, seja objetivo e visível, seja
subjetivo e invisível. No primeiro caso, temos um Mânushya-Buddhi; no
segundo, um Nirmanakâya. Diz-se que Buddha está no Nirvana, embora o antigo
corpo mortal ou corpo sutil de Gautama esteja ainda presente entre os
iniciados; e que não deixará o reino do Ser consciente enquanto a humanidade
sofredora necessitar de sua ajuda - pelo menos até o fim da atual Raça-Raiz.
De tempo a tempo o Gautama "astral" se reúne misteriosamente, e de modo
incompreensível para nós, com Avataras e grandes santos, e atua por
intermédio deles. E os nomes de alguns são conhecidos.
Afirma-se, desse modo, que Gautama
Buddha reencarnou em Shankarachârya - e que, conforme diz Sinnett em seu
Esoteric Buddhism, “Shankarachârya foi, sob todos os aspectos, nem mais nem
menos que Buddha em um novo corpo"[iii].
Mas, conquanto seja verdadeira esta
proposição em seu sentido místico, o modo de expressá-la pode induzir em
erro, se não for acompanhado de explicações.
Shankarachârya era certamente um
Buddha; não foi, porém, uma reencarnação de Buddha, embora o Ego "astral" de
Gautama (ou melhor: seu Bodhisattva) possa ter-se associado misteriosamente
a Shankara. Sim, talvez fosse o Ego de Gautama em novo e mais apropriado
veículo - o de um brâmane da índia meridional. Mas em ambos Âtman, o Eu
Superior, era distinto do Eu Superior de Buddha, que então se encontrava em
sua própria esfera cósmica.
Shankara foi um Avatar, no completo
sentido deste termo. Sankârachârya, o grande comentador dos Vedas, como tal
o considera, ou seja, uma encarnação direta cio próprio Shiva - o Logos, ou
Sétimo Princípio da Natureza. A DOUTRINA SECRETA vê em Shankarachârya a
morada, durante os trinta e dois anos de sua existência mortal, de um dos
mais elevados Seres espirituais manifestados, uma "Chama", um dos Sete Raios
primordiais.
E que se entende por "Bodhisattva"? Os
budistas da escola mística Mahâyâna ensinam que todo BUDDHA se manifesta ao
mesmo tempo (hipostaticamente ou de outro modo) em três mundos do Ser: no
mundo de Kâma (de concupiscência ou desejo, o mundo sensorial, a nossa
Terra), em forma humana; no mundo Rupa supra-sensível, como Bodhisattva; e
no mundo espiritual superior (o das existências incorpóreas), como
Dhyâni-Buddha. Este último prevalece eternamente no espaço e no tempo; vale
dizer, de um a outro Mahâ-Kalpa. E a culminação sintética dos três é
Adi-Buddha[iv] - o
Princípio-Sabedoria, que é absoluto e, portanto, fora do espaço e do tempo.
A relação entre eles é a seguinte. Quando o mundo necessita de um Buddha
humano, o Dhyâni-Buddha "cria", pelo poder' de Dhyana (meditação, devoção
onipotente), um "filho nascido da mente" - um Bodhisattva, cuja missão é
continuar, após a morte física do Mânushya Buddha (o Buddha humano), a obra
deste na Terra, até a vinda do Buddha seguinte.
O significado esotérico do ensinamento
é claro. No caso de um simples mortal, seus princípios são apenas os
reflexos, mais ou menos brilhantes, dos sete Princípios celestes - a
Hierarquia dos Seres supra-sensíveis. No caso de um Buddha, os princípios
são eles-mesmos in esse. O Bodhisattva toma o lugar de seu Karâna Sharira e
do resto correspondente; e é sentido que a Filosofia Esotérica explica a
frase: "Pelo poder de Dhyâna [ou meditação abstrata] o Dhyâni-Buddha [o
Espírito ou a Mônada de Buddha ] cria um Bodhisattva" - ou seja, o Ego
astralmente revestido no Mânushya-Buddha. Por isso, enquanto o Buddha
retorna ao Nirvana, de onde saiu, o Bodhisattva fica para prosseguir na
Terra a obra do Buddha. Ao Bodhisattva podem assim pertencer os princípios
inferiores do corpo de aparição do avatar Shankarachârya.
Ora, dizer que Buddha reencarnou
novamente, depois de alcançar o Nirvana, seria uma heresia, tanto para o
hinduísmo como do ponto de vista do budismo. A própria escola exotérica
Mahâyâna, referindo-se aos três corpos "búddhicos"[v], ensina que o
Buddha, uma vez que reveste o corpo de Dharmakâya (o Ser ideal e sem forma),
abandona para sempre o mundo das percepções sensoriais, e Ia não tem, nem
pode ter, nenhuma relação com ele.
Mas dizer, como o faz a Filosofia
Esotérica ou Mística, que o Buddha, estando embora no Nirvana, pode deixar o
Nirmanakâya (o Bodhisattva ) para continuar-lhe a obra, é perfeitamente
ortodoxo e conforme à escola esotérica Mahâyâna e à escola Prasanga
Madhyâmika, que ensina um sistema por demais racionalista e
antiesotérico.
Porque no Comentário ao Kâla Chakra se
explica que existem: I." O Âdi-Buddha, eterno e não-condicionado.
2.° Os Sambhogakâya-Buddhas ou
Dhyâni-Buddhas, existentes na eviternidade, e que jamais desaparecem. São,
por assim dizer, os Buddhas Causais.
3.° Os
Mânushya-Bodhisattvas.
A relação entre eles é determinada
pela respectiva definição. Âdi-Buddha é Vajradhara, e os Dhyâni-Buddhas são
Vajrasattva; mas, conquanto se trate de Seres distintos nos seus
correspondentes planos, em verdade são idênticos, pois um atua por
intermédio do outro, do mesmo modo que um Dhyâni atua por intermédio de um
Buddha humano. Âdi é a "Inteligência Ilimitada"; Dhyâni é somente a
"Inteligência Suprema". De Phra Bodhisattva, que depois foi Gautama Buddha
na Terra, se diz que:
"Tendo satisfeito todas as condições
para alcançar imediatamente o estado perfeito de Buddha, o bendito Ser
preferiu, movido por sua infinita compaixão para com todas s criaturas,
reencarnar mais uma vez, em benefício da humanidade."
Segundo os ensinamentos esotéricos, o
Nirvana dos budistas não é senão o limiar do Paranirvana; enquanto que para
os brâmanes é o summum bonum, aquele estado final de onde não há retorno
possível - pelo menos até o próximo Mahâ-Kalpa. Mas nem mesmo esta última
ressalva é admitida por alguns filósofos demasiado ortodoxos e dogmáticos,
que se opõem à doutrina esotérica, e para quem o Nirvana é a total
aniquilação, em que nada existe: só o Todo não-condicionado. Para
compreender em sua plenitude os característicos desse Princípio Abstrato, é
preciso senti-lo por intuição e ter a completa percepção da "única condição
permanente no Universo", que os hindus tão bem definem como o estado de
perfeita inconsciência - o Chidàkâsham (campo ou base da consciência)
verdadeiramente",
por paradoxal que possa isto parecer
ao leitor profano[vi].
Shankarachârya foi considerado como um
Avatar - e assim também o crê a autora deste livro, sendo os outros,
naturalmente, livres de o não admitir. E como Avatar ele tomou o corpo de um
filho recém-nascido de um brâmane da índia meridional, corpo que, por
motivos tão importantes quanto misteriosos para nós, foi, como se diz,
animado pelos resíduos astrais pessoais de Gautama. Este divino Não-Ego
escolheu para seu próprio Upâdhi (base física) o Ego humano etéreo de um
grande sábio do nosso mundo de formas, como o veículo mais apropriado a que
nele descesse o Espírito.
Diz Shankarachârya:
"Parabrahman é Kartâ [Purusha, e não
há outro Adhishtàthaâ[vii]; e Parabrahman
é Prakriti, e não há outra substância[viii]”
Ora, o que é verdade no plano
macrocósmico também o é no plano microcósmico. Portanto, estaremos mais
perto da verdade se dissermos - uma vez admitida tal possibilidade - que o
Gautama "astral", ou o Nirmanakâya, foi o Upâdhi do espírito de
Shankarachârya, e não uma reencarnação daquele.
Quando tem de nascer um
Shankarachârya, é óbvio que todos os princípios do homem mortal manifestado
devem ser os mais puros e perfeitos da Terra. Em conseqüência, os princípios
que estavam anteriormente em Gautama, o
grande predecessor direto de Shankara, foram naturalmente atraídos para
este, pois a economia da Natureza não admite a revolução de princípios
semelhantes a partir do estado grosseiro.
Mas cumpre não esquecer que os
princípios etéreos superiores não são visíveis para o homem, como algumas
vezes sucede com os princípios inferiores e mais materiais (os corpos
astrais por exemplo), e devem ser considerados antes como Potestades ou
Deuses, separados ou independentes, do que como objetos materiais. Por isso,
o mais acertado seria dizer que os diversos princípios (o Bodhisattva) de
Gautama Buddha, que não foram para o Nirvana, se uniram para formar os
princípios médios da entidade terrena Shankarachârya[ix].
É de todo necessário estudar
esotericamente a doutrina dos Buddhas e perceber as sutis diferenças entre
os vários planos de existência, para que seja possível a compreensão correta
do que acabamos de expor. Podemos, contudo, esclarecer um pouco mais,
dizendo que Gautama, o Buddha humano, que tinha, exotericamente, Amithâbha
por seu Bodhisattva, e Avalokiteshvara por seu Dhyâni-Buddha (a tríade
emanada diretamente de Âdi-Buddha), os assimilou por seu "Dhyâna"
(meditação), chegando deste modo a ser um Buddha ("iluminado"). De certa
maneira, é esse o caso de todos os homens; cada um de nós tem o seu
Bodhisattva (o princípio médio, se nos ativermos à divisão trina do grupo
setenário) e o seu Dhyâni-Buddha, ou Chohan, o "Pai do Filho". Eis aí, em
poucas palavras, o elo que nos une à Hierarquia superior de Seres Celestes;
mas somos demasiado pecadores e imperfeitos para o perceber.
Seis séculos depois da desencarnação
do Buddha humano (Gautama ), outro reformador, tão nobre e compassivo quanto
ele, ainda que menos favorecido pelas circunstâncias, surgiu em outra parte
do mundo, numa raça menos espiritual. Há grande semelhança entre as
influências exercidas pelos dois Salvadores, um no Oriente e o outro no
Ocidente. Milhões de criaturas se converteram às doutrinas de ambos os
Mestres; mas destruíram-nas ou deformaram-nas insidiosos inimigos
alimentados pelo sectarismo, usando de maliciosas tergiversações de verdades
que, estando ocultas, eram duplamente perigosas.
De Buddha disseram os brâmanes que,
apesar de ser realmente um avatar de Vishnu, viera para destruir a crença
bramânica, sendo assim o aspecto maligno do Deus. De Jesus afirmaram os
gnósticos bardesianos e outros que era Nebu, um falso Messias, destruidor da
religião ortodoxa. Alguns sectários disseram que ele foi "o fundador de uma
nova seita dos nazarenos". A palavra naba, em hebraico, significa "falar por
inspiração" ( xz2 ou -m é Nebo,
o Deus de sabedoria). Mas Nebo é também Mercúrio, e este, no
monograma hindu dos planetas, é Buddha. Confirmando os talmudistas, ao
sustentarem que Jesus foi inspirado pelo Gênio (ou Regente) de Mercúrio, que
Sir William Jones confunde com Gautama Buddha. Há muitos outros estranhos
pontos de semelhança entre Buddha e Jesus, que não podem ser aqui
expostos[x].
Se os dois Iniciados, por terem
consciência do perigo de proporcionar às massas incultas os poderes
inerentes ao conhecimento final, deixaram em profundas trevas os mais
secretos recantos do santuário, quem, conhecendo a natureza humana, poderá
censura-los por isso?
É possível que Buddha houvesse
revelado mais do que o estritamente necessário ao bem da posteridade.
Contudo, guardou prudente reserva sobre os pontos mais perigosos do
conhecimento esotérico, tendo morrido com a idade provecta de oitenta
anos[xi] convencido de
haver ensinado as verdades essenciais e lançado as sementes para a conversão
de um terço da humanidade. Mas Jesus, que havia prometido aos seus
discípulos conferir-lhes o dom de fazer "milagres" ainda maiores que os
dele, só deixou ao morrer um pequeno número de discípulos fiéis, que estavam
apenas a meio caminho do conhecimento. Tinham eles, portanto, que enfrentar
um mundo ao qual só podiam transmitir o incompleto conhecimento que
possuíam, e nada mais. Em épocas posteriores, os partidários exotéricos de
ambos os Mestres deturparam as verdades ensinadas, a tal ponto que muitas
vezes as deixaram irreconhecíveis. No que respeita aos prosélitos do Mestre
ocidental, a prova está em que nenhum deles pode atualmente realizar os
"milagres" prometidos. Defronta-lhes esta alternativa: ou reconhecerem o
próprio erro, ou levarem o Mestre à barra do tribunal por haver formulado
uma promessa vã, uma jactância sem apoio na realidade[xii].
Por que essa diferença no destino dos
dois? Para os ocultistas, o enigma da desigualdade do Karma (ou Providência)
é decifrado pela DOUTRINA SECRETA.
"Não é licito" falar publicamente
destas coisas, como nos diz São Paulo. Podemos apenas dar mais uma
explicação acerca deste assunto.
Dissemos anteriormente que o Adepto
que se submete, por auto-sacrifício, a uma nova existência, renunciando ao
Nirvana, embora não venha a perder os conhecimentos adquiridos em vidas
passadas, jamais pode elevar-se
a mais alto nível nesses corpos de
empréstimo. Por quê? Simplesmente porque em tal caso ele se converte em
veículo de um "Filho da Luz" pertencente a uma esfera ainda mais elevada, de
um Ser que, sendo arûpa, carece de corpo astral próprio para atuar a ponto
neste mundo.
Esses "filhos da Luz" ou
Dhyâni-Buddhhs são os Darmakâyas de Manvantaras precedentes, que, terminado
seu ciclo de encarnações (no sentido ordinário) - e portanto já não tendo
Karma -, abandonaram há muito seus rûpas individuais e se identificaram com
o primeiro Princípio.
Daí a necessidade de um Nirmanakâya,
que se ofereça em sacrifício e esteja disposto a sofrer pelos erros e
pecados do novo corpo em sua peregrinação terrestre, sem qualquer recompensa
futura na ordem evolutiva, pois que não há renascimentos para ele, no
sentido comum desta palavra. O Eu Superior, ou Mônada divina, não está, em
semelhante caso, preso ao Ego inferior; sua conexão é apenas temporária, e
quase sempre atua segundo os ditames do Karma. É um verdadeiro e genuíno
sacrifício, cuja explicação pertence à mais alta Iniciação de Jnâna
(Conhecimento Oculto). Está intimamente relacionado, pela evolução direta do
Espírito e a involução da Matéria, com o grande e primevo Sacrifício na
manifestação dos Mundos, a gradual submersão e morte do espiritual no
material.
A semente "não vivificará, se primeiro
não morrer"[xiii]. Por isto
mesmo, no Paramusha Sûkta do Rig Veda[xiv], fonte e
origem de todas as religiões posteriores, está dito alegoricamente que "o
Purusha de mil cabeças" foi assassinado quando se fundou o Mundo, para que
de seus restos nascesse o Universo. Isto não é nada mais, nada menos, que a
base, a semente em verdade, do símbolo do Cordeiro sacrifical, que se
encontra sob múltiplas formas em várias religiões, inclusive no
Cristianismo. Temos aqui um jogo de palavras. O termo sânscrito "Aja"
(Purusha ), com que se designa o Espírito Eterno, o "não-nascido", quer
dizer também "cordeiro". O Espírito como que desaparece, ou morre
(metaforicamente) ao descer na matéria - e daí a alegoria do sacrifício do
"não-nascido", ou do "cordeiro".
Só compreenderão por que BUDDHA elegeu
este sacrifício aqueles que, ao minucioso conhecimento de Sua vida terrena,
além uma completa compreensão das leis do Karma. Todavia, casos como o de
Gautama são excepcionalíssimos.
Consoante a tradição, os brâmanes
cometeram um grave pecado quando perseguiram Gautama BUDDHA e lhe condenaram
os ensinamentos, em vez de harmonizá-los com os dogmas do puro hinduísmo
védico, como o fez mais tarde Shankarachârya. Jamais Buddha se opôs aos
Vedas; apenas combateu o alargamento exotérico de interpretações eivadas de
preconceitos. O Shruti, a divina revelação oral de que resultaram os Vedas,
é eterno, e chegou aos ouvidos de Gautama Siddharta do mesmo modo que aos
dos Rishís que o transcreveram. Ele aceitou a revelação, mas rejeitou os
posteriores acréscimos introduzidos pela imaginação e a fantasia dos
brâmanes; e fundou as suas doutrinas sobre as bases da mesma verdade
imperecível.
Como no caso de seu sucessor
ocidental, Gautama, o "Misericordioso", o "Puro" e o "Tosto", foi o primeiro
Adepto na hierarquia oriental, se não no mundo inteiro, que estreitou em
fraternal abraço todos os homens, sem distinção de raça, nascimento ou casta. Foi quem primeiro proclamou
essa nobre e grande máxima, e o primeiro que a pôs em prática. Os pobres, os
oprimidos, os párias e os miseráveis, Ele os convidou a tomar parte no
festim real; e excluiu os que até então se tinham acastelado no orgulho e no
egoísmo, crendo que os contaminava até a sombra dos deserdados da terra. Os
brâmanes sem espiritualidade insurgiram-se contra Ele, em razão daquela
preferência. E daí em diante nunca perdoaram ao príncípe-mendigo, ao filho
de reis que, desprezando a própria categoria e posição social, abriu de par
em par as portas do santuário, até então interdito aos párias e aos homens
de condição inferior, e sobrepôs o mérito pessoal ao direito hereditário e à
riqueza material. O pecado era deles; mas a causa era de BUDDHA: por isso o
"Misericordioso", o "Bendito", não podia afastar-se inteiramente deste mundo
de ilusão e de causas geradas sem expiar os pecados de todos - e, portanto,
os dos próprios brâmanes.
Se o "homem aflito pelo homem"
encontrou um refúgio seguro junto ao Tathagata, o "homem que aflige o homem"
foi também quinhoado com o Seu auto-sacrifício e o seu compassivo amor.
Diz-se que Ele desejou expiar todos os
pecados de seus inimigos, e somente depois quis ser um Dharmakâya completo,
um Tivanmûkta "sem resíduos".
O fim da vida de Shankarachârya nos
põe em presença de um novo mistério. Shankarachârya se retira para uma gruta
dos Himalaias, sem consentir que o siga nenhum de seus discípulos, e dali
desaparece para sempre das vistas profanas.
Morreu? A tradição e a crença popular respondem negativamente, e alguns dos
Gurus da região não desmentem o rumor, se é que o não confirmam
expressamente.
Mas somente os Gurus conhecem a
verdade com todos os seus pormenores, tal como ensinada pela DOUTRINA
SECRETA; e eles não a comunicam senão - quando julgam conveniente fazê-lo -
aos discípulos diretos do grande Mestre dravidiano. Entretanto, perdura a
crença de que esse Adepto dos Adeptos ainda vive atualmente, em sua entidade
espiritual, como uma presença misteriosa e invisível, mas inconcussa, na
Fraternidade de Shamballa, além, muito além, dos nevados cumes da
cordilheira dos Himalaias.
NOTAS
[i] Quando dizemos
"Grandes Mestres", não queremos significar o Seu Ego Búddhico, mas o
Princípio que servia de veículo ao seu Ego pessoal ou terreno.
[ii] Five Years of Theosophy, nova edição, pág.
3.
[iii] Op. cit, pág.
183, 8.ª edição.
[iv] Seria inútil
objetar com argumentos de obras exotéricas às afirmações constantes deste
livro, que visa a expor, ainda que superficialmente, ensinamentos
esotéricos. É por estarem imbuídos de doutrinas exotéricas que o Bispo
Bigandet e outros dizem que a noção de um supremo e eterno Ãdi-Buddha só se
encontra em escritos de data relativamente moderna. O que aqui expomos foi
tomado das partes secretas do Dus Kyi Khorlo tem sânscrito Kala Chakra, que
significa "Roda do Tempo" ou tia duração).
[v] Estes três
corpos são: 1° o Nirmanakâya (em tibetano: Pru-Ipai-Ku), no qual o
Bodhisatva, depois de entrar na senda do Nirvana pelos seis Paramitas,
aparece entre os homens com a missão de instruí-los; 2.° O Sambhogakâya (em
tibetano: Dzog-Pai-Ku), o corpo de bem-aventurança, impermeável às sensações
físicas, de que se reveste aquele que satisfez os três requisitos de
perfeição moral; 3.° o Dharmakâya (em tibetano: Chos-Ku). que é o corpo
Nirvânico.
[vi] Five Years of Theosophy, artigo: "Personal and Impersonal God",
pg. 129.
[vii] Adhishtâthâ --
o agente operante em Prakriti (ou na matéria).
[viii]
Vedanta-Sutras, Adhyâya [cap. I], shloka 23.
Comentário. A passagem acima foi assim traduzida por Thibaut (Sacred Books
of the East, XXXIV, pág. 286): "O Eu é, portanto, a causa operativa, porque
não há outro princípio diretor; e a causa material, porque não 1r.í outra
substância i
da qual possa originar -se o mundo”.
[ix] Em
Fire Years of Theosophy (artigo "Shakya Muni's Place to History", pág. 23-1,
nota) afirma-se que, estando um dia o Senhor na cova de Sattapani, comparou
o homem com uma planta de sete folhas (Saptaparna ) "Mendicantes" - disse
ele - "há sete Buddhas em cada Buddha, e há seis Bhikshus, mas um só Buddha.
em cada mendicante. Quais são os sete? Os sete ramos do conhecimento
integral. Quais são os seis? Os seis órgãos dos sentidos. E os cinco? São os
cinco elementos do Ser ilusório. E qual é o Uno, que é também dez? É o
verdadeiro Buddha, que desenvolve em si as dez formas de santidade e as
submete todas ao Uno . . ." Significa isso que cada princípio de Buddha era
o supremo, ou seja, o de mais alta evolução possível na Terra; ao passo que,
no caso de outros homens que alcançam o Nirvana, assim não ocorre
necessariamente. Até mesmo como simples Buddha humano (Mànushya ), Gautama
foi um modelo para todos os homens. Mas os seus Arhats não o
eram.
[x] Isis
sem Véu, vol. II, pág. 132.
[xi] Os
ensinamentos esotéricos dizem que viveu cem
anos.
[xii] "Antes
de chegar a ser um Buddha e preciso ser um Bodhisattva; antes de chegar a
Bodhisattva cumpre ser um Dhyâni-Buddha ... Um Bodhisattva é o caminho para
ir ao Pai, e do Pai à Essência única e Suprema" (Descent of Buddhas, pág.
17, de Aryâsanga). "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida; ninguém vai ao Pai
senão por mim" (São João, XIV, 6). O "caminho" não é a "meta". Em nenhuma
passagem do Novo Testamento se vê Jesus chamar a si mesmo Deus, ou mais do
que um "Filho de Deus", o filho de um "Pai" comum a todos, sinteticamente.
Paulo nunca disse: "Deus se manifestou na carne", mas sim: "Aquele que se
manifestou na carne" (I Timóteo, III, 16). Enquanto os budistas em geral, e
especialmente os da Birmânia, consideram Jesus como a encarnação de
Devadatta, um parente que se opôs aos ensinamentos de Buddha, os estudantes
da Filosofia Esotérica vêem no Sábio nazareno um Bodhisattva a quem animou o
espírito do próprio Buddha.
[xiii] I
Corintios, xv. 36.
[xiv]
Op_ cit.. Mandala x. Hino 90.