"Vejam o exemplo do montanhês. Se nosso espírito se perder no
desejo pelas coisas que estão acontecendo lá embaixo, logo é colhido em um
labirinto de infinitas distrações e caminhos tortuosos; a alma se aparta de si
mesma, dissipada e despedaçada em tantas partes quantos sejam os objetos de
seus desejos. Isto conduz a uma subida instável, a uma jornada sem fim e a
cansaço sem repouso.
"Mas se o coração e a alma se erguem, pelo desejo e amor,
daquilo que se lhes está abaixo e evitam ligar-se em muitas distrações; e se,
esquecendo estas coisas, a alma recolhe-se ao único, imutável e todo-suficiente
bem, dedicando-se ao serviço deste bem, e firmemente se estabelece ali pelo
poder de sua vontade - então esta alma será tão mais recolhida e forte quanto
mais seus pensamentos e desejos se dirigirem para Deus".
De Adhaerendo Deus
ALBERTUS MAGNUS
Entre a superstição a se erguer como um odor fétido da decomposição das
religiões mediterrâneas clássicas, e o dogmatismo emanando do Cristianismo,
torcido em direção ao total controle político e social do fragmentado Império
Romano, a verdade e a intuição encontram pouco espaço onde florescer. Tendo os imperadores abandonado os idaeis
republicanos de humanitas, a religião
estatal que os sustentava definhou. Os Mistérios e ritos secretos, já
materializados através da popularização, foram ao mesmo tempo bem recebidos e
degradados. As tentativas dos Padres da Igreja primitiva em assegurar a
respeitabilidade para a nova religião e em obter o controle das rédeas e das
linhas de influência da administração imperial se tornaram tão obcecadas com a
erradicação de filosofias opostas que freqüentemente abandonavam até mesmo a
intenção de pensamento e ação éticos. Enquanto que os indivíduos encontravam
alimento para a alma nos ensinamentos de Jesus, assim como haviam uma vez
encontrado nutrição nos hinos de Orfeu, a religião institucionalizada se tornou
uma estranha mistura de superstição temerosa e dogma cristalizado. O
expansionismo e o controle eram amenizados apenas por variações na complacência
e no auto-engrandecimento; e a religião cognominada a partir do Homem das Dores
se espalhou como uma nuvem escura pela Europa.
Muito antes de Lutero ter-se sentido compelido quase contra sua vontade a
erguer a tocha do protesto em prol da capacidade da mente de ser racional,
reverente e livre, outros haviam chegado a sentir que distorções fundamentais
permeavam a igreja. A Espanha islâmica
reintroduziu Platão no continente, e indivíduos perspicazes responderam ao
lembrete de que a vida espiritual é invisível, impossível de ser formulada e,
em última análise, inefável. Quando os escritos de Aristóteles surgiram algumas
décadas depois, muitos professores e pensadores viram neles um fulcro para
mover a consciência para longe das abstrações vazias da teologia censurada, em
direção ao pensamento desimpedido inspirado pelo livre exame da natureza.
Relativamente livres para discutir a natureza antes despercebida, monges e
professores ficaram mais audazes e começaram a questionar as práticas
institucionais. Questões de estrutura acabaram levando a questões de doutrina.
A indulgência eclesiástica e a crescente riqueza da igreja perturbavam a muitos
que não estavam preparados para desafiar os dogmas da fé, mas que conheciam o Sermão da Montanha e liam Platão. Nos
primeiros anos do século XIII, surgiram ordens religiosas dedicadas ao
princípio da pobreza voluntária, especialemente em torno da memória de
Francisco de Assis e do trabalho de Domingos de Gusmão, da Espanha. Roger Bacon
era um Franciscano e Albertus Magnus abraçou a Ordem Dominicana.
Embora o início da vida de Albertus seja obscura, a tradição e a
evidência circunstancial concordam que ele nasceu como primogênito do Conde de
Bollstädt, em Lauingen, na Suábia, em 1193. Durante sua juventude ele foi
criado nas propriedades da família, recebendo uma educação adequada à pequena
nobreza. Aparentemente seu fascínio pelas operações e processos da natureza
manifestaram-se em uma idade muito precoce; em seus anos de maturidade Albertus
compôs tratados sobre falcoaria e cavalaria que foram os melhores de seu tempo,
amiúde corrigindo com sua extensa experiência os erros santificados pela
tradição. Quando ele escreveu que "o objetivo da ciência natural não é
meramente aceitar as declarações de outros, mas investigar as causas em ação na
natureza", resumiu uma inclinação de toda sua vida. Depois de uma
prolongada educação em casa, Albertus entrou na universidade recentemente
fundada em Pádua. Enquanto que sua alma encontrava sustento em Platão, seu
temperamente inquisitivo foi aguçado com os escritos de Aristóteles. Graças a
estes dois interesses, sua despreocupação com as sutilezas da argumentação
teológica - a ortodoxia iluminada por uma perspectiva Platônica o satisfazia -
encontrou-se com o desafio da ciência natural Aristotélica. A reverência para
com o mestre é encontrada na organização de seus próprios escritos como um
comentário geral sobre os livros de Aristóteles, e a investigação é evidenciada
por sua disposição de descobrir através da experiência a verdade ou falsidade
de cada conclusão.
Albertus possuía um notável dom para o ensino, assim como para o
aprendizado, e ele descobriu que a administração das terras ancestrais e os
interesses ociosos da nobreza eram menos atraentes do que o estudo intenso e a
contemplação tranqüila. Em 1223 Jordan da Saxônia, Mestre Geral da Ordem
Dominicana dos Pregadores, chegou a Pádua procurando recrutas. Ele logo
persuadiu dez estudantes a entrar na ordem, incluindo Albertus, que teve de
suportar e vencer a furiosa oposição de sua família. Seus talentos intelectuais
e pedagógicos foram facilmente reconhecidos, e foi-lhe ordenado continuar seus
estudos em Pádua, e mais tarde em Bolonha, mesmo enquanto servia a ordem como
leitor. Durante anos ele viajou para estabelecimentos Dominicanos na Itália,
França e estados Germânicos como professor e pregador, cuja integridade veio a
se emparelhar ao seu brilhantismo. Enquanto que esta combinação de traços
tornou Albertus especialmente inclinado à vida retirada e contemplativa de
estudante e escritor, outros reconheciam seu valor como administrador e árbitro
tanto nos assuntos da igreja como na sociedade secular.
Por volta de 1243 Albertus foi mandado para o convento Dominicano de
Saint-Jacques, na Universidade de Paris. Ali ele encontrou as mesmas palavras
de Aristóteles, recentemente traduzidas do grego e árabe, suplementadas por
traduções e comentários de Averróis. Depois de dar conferências sobre a Bíblia e as Sententiae de Pedro Lombardo, o manual teológico padrão da idade
média, Albertus recebeu o grau de mestre e assumiu a cátedra universitária para
estrangeiros em 1245, o ano em que Tomás de Aquino chegou a Paris para estudar
teologia. Talvez Tomás tenha sido primeiramente inspirado a produzir sua massiva
Summa Theologiae por seus primeiros
contatos com Albertus, que havia começado a compor uma monumental apresentação
de tudo o que era conhecido em cada ramo e departamento de estudo. Ao longo de
um período de duas décadas, só Albertus entre os pensadores de seu tempo
forneceu comentários para cada tratado atribuído a Aristóteles. Em acréscimo,
escreveu ensaios seminais em cada ramo da ciência natural, da lógica e
retórica, matemática e astronomia, ética e metafísica, economia e política. A
despeito de seu amor por tal atividade, seu caráter e talentos foram
considerados valiosos para o crescimento de sua ordem e para o programa da
igreja.
Em 1248 Albertus foi enviado para Colônia como Regente de Estudos para
organizar o primeiro studium generale - a casa geral de estudos - da
Ordem Dominicana. Tomás se tornou seu principal discípulo, e embora Tomás
retornasse a Paris em 1252 depois que diferenças teológicas entre eles se
tornaram cada vez mais nítidas, os dois permaneceram no mais estreito contato
durante todas suas vidas. Em 1254 Albertus foi feito Provincial da Teutônia, a
província Germânica da ordem, uma tarefa que ele desempenhou soberbamente, mas
sem entusiasmo. Por volta de 1256 as universidades começaram a se interessar
pelo modo de vida exemplificado nas ordens mendicantes, especialmente na
renúncia de toda propriedade pessoal e comunitária e na condição desdomiciliada
dos monges, o que lhes dava grande liberdade de deslocamento. Paris tentou
impedir que Dominicanos e Franciscanos ensinassem, os únicos meios de
subsistência dos mendicantes, e o Papa Alexandre IV convocou uma conferência em
Anagni para debater o assunto. Sob ordens papais, Tomás de Aquino e Albertus
Magnus representaram os Dominicanos, e Boaventura falou pelos Franciscanos. A
despeito de protestos vigorosos do clero regular, os mendicantes conquistaram o
direito de ensinar em Paris e nas outras universidades. Para Albertus a vitória
foi ambígua: foi-lhe permitido renunciar como Provincial em 1257 a fim de poder
ensinar novamente, mas em 1259 o papa indicou-o bispo de Regensburg.
Albertus já havia obtido fama por
resolver disputas entre as facções religiosas e políticas em Colônia, uma
tensão contínua à qual ele foi compelido a voltar numerosas vezes em sua vida
posterior. Abusos, ineficiência e irregularidades em Regensburg haviam
acarretado descrédito para a administração da igreja. Albertus corrigiu os
problemas, e a morte de Alexandre IV permitiu-lhe renunciar a esta função em
1261. Voltou então a Colônia, mas como bispo ele em certos aspectos era isento
das regras de sua ordem, e assim podia dispor de seu tempo e da herança
ancestral mais livremente do que antes.
Quando o Papa Urbano IV decidiu organizar mais uma cruzada, escolheu
Albertus como seu legado para a Germânia e a Boêmia. Durante um ano Albertus
viajou, ostensivamente pregando a cruzada, mas ele logo percebeu que havia um
desinteresse quase universal em um empreendimento que já tinha repetidamente se
provado caro, indecisivo e vão. Ele aproveitou a oportunidade para estudar a
flora, fauna e geologia das regiões por onde passava. Ele palestrou em várias
cidades e geralmente se interessava pelos assuntos de sua ordem, que se
expandia rapidamente, mas agradou-lhe voltar permanentemente para Colônia em
1270. Embora oficialmente aposentado, Albertus resolveu outra disputa entre o
arcebispo e a cidade e fez mais duas viagens, uma em 1274 para o Concílio de
Lion, para apoiar a pretensão de Rodolfo de Habsburgo ao trono da Alemanha, e a
outra, em 1277, para Paris. Tomás de Aquino havia morrido poucos anos antes, e
seus escritos estavam sendo condenados como heréticos. Albertus defendeu o nome
de Tomás e as doutrinas Aristotélicas que eles mantinham em comum.
A despeito de seus encargos administrativos e viagens obrigatórias,
Albertus escreveu volumosamente e executou muitas experiências práticas. Seu
interesse de toda vida a respeito da possibilidade de se criar autômatos sugere
que ele pode de fato tê-lo feito. A tradição registra que uma vez Tomás entrou
sem ser convidado no laboratório de Albertus e lá encontrou um simulacro de uma
jovem que lhe disse três vezes a palavra salve
(saudações). Aterrorizado diante do que ele tomou como um fenômeno
demoníaco, Tomás destruiu a imagem exatamente no momento em que Albertus
entrava na sala. "Tomás, Tomás!", gritou Albertus, "o que
fizeste? Destruíste o trabalho de trinta anos!" Durante seus últimos anos
em Colônia, Albertus foi honrado com o título de Magnus, "o Grande",
o único erudito medieval a receber esta láurea em sua época. Seu contemporâneo
Franciscano, Roger Bacon, que discordava dele em muitos assuntos, chamou-o de
"o mais notável dos eruditos Cristãos". Albertus Magnus morreu em
Colônia, a 15 de novembro de 1280, para o alívio de muitos que o temiam como
alquimista e mago, e para a grande tristeza de muitos outros, que viam nele o
farol da ciência escolástica e o exemplo da mente inquisitiva. Declarado santo
em 1931, uma década mais tarde seria nomeado patrono dos que se devotam às
ciências naturais. Ele é conhecido como Doctor Universalis pelo seu imenso
leque de conhecimentos, o que havia de se tornar um ideal na Renascença e ser
considerado impossível em épocas posteriores.
Albertus foi um seguidor das doutrinas Platônicas em sua vida religiosa e
um adepto de métodos amplamente Aristotélicos em sua observação da natureza.
Enquanto que distinguia claramente o conhecimento pela revelação através da fé
e o conhecimento através da filosofia e da ciência, negava qualquer sugestão de
"duas verdades". Tudo o que é realmente verdadeiro, ensinava
Albertus, se harmoniza com a fé e a razão. Há mistérios só acessíveis pela fé,
mas muitos ensinamentos Cristãos também são reconhecíveis pela razão, por
exemplo, a doutrina da imortalidade da alma. Enquanto que era muito desejoso de
corrigir a tradição Aristotélica e a doutrina Cristã em minúcia considerável, a
Albertus aborrecia questionar os pressupostos de qualquer uma delas. Não
obstante, sua profunda e usualmente secreta convicção de que a vida espiritual
consiste fundamentalmente no ardente direcionamento da alma para o divino
marcou todos os seus esforços. Isto foi auxiliado por uma crescente percepção
da natureza, a obra da mão da Divindade. Os autores antigos compartilhavam da
mesma reverência pelas filigranas da causalidade e assim merecem eles mesmos
todo o respeito, mas eles se chocariam ao descobrir que as gerações
subseqüentes tenderam a idolatrá-los como uma desculpa para aceitar suas
opiniões sem ponderação adequada ou investigação independente. Não vendo
conflito entre honrar as conquistas do passado e questionar vigorosamente no
presente, Albertus demonstrou verdadeira liberdade de mente e estabeleceu os
padrões de pesquisa que encorajaram a Idade Dourada do Escolasticismo a lançar
os alicerces do Renascimento. Vendo o universo manifesto como uma vasta
procissão hierárquica emanando ou fluindo da atividade criadora da Deidade,
Albertus ensinou que o estudo das operações na natureza provê chaves para os
mistérios do ser.
Em acréscimo aos seus tratados atualizados sobre falcões e cavalos, derivados
de um longo trabalho com o reino animal, Albertus escreveu com tanta autoridade
sobre ervas e plantas que pelos quatro séculos subseqüentes os herbários
copiaram - muitas vezes com diversos erros - dos seus escritos. Ao estudar a
alquimia ele reconheceu as tendências ao charlatanismo e ao mau uso do
conhecimento. Em seu Libellus de Alchimia
(Opúsculo sobre Alquimia), advertiu:
"O
primeiro preceito é que o obreiro nesta arte deve ser silente e reservado e
jamais revelar seu segredo a quem quer que seja, sabendo bem que se muitos
souberem, o segredo já não será mantido, e que quando é divulgado, será
repetido com erro. Assim será perdido, e a obra permanecerá imperfeita". |
Dado o sigilo de seu próprio trabalho de laboratório e a reação de Tomás
diante do seu autômato, Albertus entendeu em primeira mão o significado desta
injunção. Mais do que convencido, ele também soube que o mesmo preceito se
aplica à alquimia espiritual.
"Divide
o ovo dos filósofos em quatro partes, que terão cada qual uma natureza, então
as reúna com igualdade e proporcionadamente, de modo que não haja
inconsistência, e então adquirirás o que foi proposto, querendo Deus. Este é
um método universal". |
De Mineralibus trata longamente da composição e
propriedades das pedras preciosas e semipreciosas, das imagens talhadas na
pedra, da natureza dos metais e sais. Discutindo o valor das imagens e selos
gravados na pedra, Albertus indica que processos astrológicos podem imprimir
características de uma espécie no material de outra.
"Às vezes as luminárias e outros planetas se encontram em um local que tem tão grande poder de produzir seres humanos que
imprime a forma humana sobre sementes de um tipo todo distinto, e em oposição
ao poder formativo inerente naquela semente... Esta é a razão por que mesmo nas
pedras endurecidas por vapores, é impresso no material a forma de um homem ou a
de algumas outras espécies da natureza..." |
Em seu Liber de Natura Locorum,
um tratado de geografia, Albertus demonstrou que o clima, e portanto a flora e
a fauna, são determinados tanto pela latitude como por condições locais. A
Terra é dividida em zonas climáticas do tropical ao frígido, mas extensas
florestas, rios e montanhas influenciam e podem alterar radicalmente as
temperaturas e pluviosidade dentro daquelas zonas gerais. Albertus especulou,
com base em conhecimento de segunda-mão da Índia, que o hemisfério sul da Terra
apresentava as mesmas zonas em ordem reversa. Albertus postulou um diâmetro
razoavelmente preciso para uma Terra esférica, e negou como absurda a opinião
comum de que a metade sul do globo era desabitada porque as pessoas que
ocorresse viver lá despencariam.
Os fenômenos naturais são dignos de estudo porque eles expandem a mente
com a maravilhosa atividade do Divino. Aceitação impensada da tradição aliada a
uma atitude mundana cegam e mutilam a alma, destruindo a vida espiritual, e
assim desperdiçando o tempo precioso entre o nascimento e a morte. Ele escreveu
no De Adhaerendo Deo (Da Adesão a
Deus) que:
"A verdadeira razão pela qual estamos de
muitas formas excluídos da experiência e deleite da vida interior e não podemos
de modo algum conseguir um vislumbre dela é porque a distraída e incultivada
mente humana não entra em si mesma pela lembrança de Deus. O torvo entendimento
humano é tão obstruído com imagens terrenas que não pode encontrar caminho de
volta para seu próprio coração interno, nem refrear seus desejos e entrar em si
mesmo por desejar a luz interior da alegria espiritual". |
Albertus Magnus viveu em uma época de claras limitações
de pensamento e expressão, mas ainda assim ele demonstrou como a mente
sustentada por um senso do Divino desperto no coração pode chegar além das
fronteiras de uma época e aspirar se elevar às alturas da percepção.
"Retiremos nosso coração das distrações deste
mundo, e devolvamo-lo às alegrias da vida interior, para que possamos ser
dignos, em alguma pequena medida, de fixar nossa morada na luz da contemplação
divina. Pois esta é a vida e a paz de nossa alma". |