ARYADEVA
"Eu me inclino diante de Manjushri sempre jovem,
Eu me inclino e purifico as três portas -
Corpo, fala e mente:
Diante do Mestre, luz do mundo;
Diante dos Ensinamentos, ambrosia curativa das
aflições das emoções;
Diante daqueles que estão nas Sendas de
Aprendizado
E na Senda da Cessação do Aprendizado.
Bons resultados e a obtenção de um alto
nascimento
Provêm das sementes dos atos virtuosos.
Maus resultados e nascimento vil
São o produto de maus atos,
Assim como sementes de cevada produzem colheitas
de cevada e os grãos de trigo produzem apenas grãos de
trigo.
Assim, apenas os bons atos criam a felicidade
E os erros engendram a miséria.
O poder divino está em nossas ações
E não em algum deus externo"
ARYADEVA
Mesmo que o esforço hercúleo de Nagarjuna de
prover uma fundamentação metodológica e uma base filosófica para reunir os
diversos pontos de vista Budistas tenham falhado em atingir sua meta, ele deu
um impulso para a renovação espiritual que se ramificou em muitas direções. Ele
fundou a escola Madhyamika - o Caminho do Meio - que trabalhou para preservar
um sentido de fraternidade entre a diversidade. Com o surgimento do Madhyamika,
o poder psicológico e metafísico do Mahayana fez uma impressão perdurável em
todos os aspectos da tradição Budista. Aqueles que resistiam à idéia de que
Gautama Buddha transmitira um ensinamento arcano aos seus discípulos mais
avançados não obstante tomaram métodos e analogias Madhyamika para elucidar
suas próprias concepções. A tradição de que Nagarjuna fora o líder do grande
mosteiro-universidade de Nalanda atesta a penetrante influência de seu
pensamento. O Madhyamika nutriu-se na Índia e então disseminou-se para a China
e o Japão, onde floresceu em condições muito diferentes daquelas de seu local
de origem. Chegou a ter sua própria descendência - a escola de idealismo
Yogacharya - e acabou se dividindo em duas tendências distintas. O Bhavaviveka
sustentava que o Madhyamika tinha um conteúdo positivo próprio, enquanto que o
Buddhapalita procurava reduzir todas as proposições filosóficas ao absurdo, na
crença de que isso conduziria à percepção intuitiva da Realidade que está além
de toda cognição possível.
Muito antes da expansão Madhyamika, contudo, a
visão de Nagarjuna foi consolidada com consumada habilidade dialética por seu
principal discípulo, Aryadeva, um dos "quatro sóis que iluminam o
mundo". Como seu ilustre instrutor, a vida de Aryadeva está completamente
imersa em lenda e hagiografia. Os biógrafos relatam que Aryadeva, nascido no
coração de um lótus, se tornou o filho adotivo de Panchashringa, rei de
Sinhala, que se acredita geralmente ser o moderno Sri Lanka. Sua graça e
brilhantismo naturais impressionaram tanto seu pai que ele foi declarado
Príncipe Herdeiro e entronizado como seu herdeiro oficial. Ele já havia
estudado profundamente as doutrinas do Budismo Theravada, e a perspectiva de se
tornar rei o entristecia. Por fim, renunciou ao trono em favor de uma vida de
monge, mas as delicadas complicações políticas derivadas da presença de um
antigo Príncipe Herdeiro próximo ao trono de um outro sucessor impeliram-no a
viajar à Índia. Tendo já aprendido as artes e as ciências relacionadas ao
pensamento do Budismo ceilandês, procurou por um professor que o pudesse
conduzir ao coração do Dharma.
Finalmente, Aryadeva encontrou Nagarjuna e se
tornou seu devotado discípulo por toda a vida. De acordo com Hsuan Tsang,
Aryadeva encontrou a residência de Nagarjuna e fez-se anunciar. Ao invés de convidar Aryadeva para entrar,
Nagarjuna ordenou que sua tigela de mendigo fosse enchida de água pura e
entregue a Aryadeva. Ao receber a tigela, Aryadeva mergulhou nela uma agulha e
a devolveu. Nagarjuna acolheu o recém-chegado, dizendo aos seus discípulos
atônitos que a tigela cheia de água representava seu conhecimento, e a agulha
significava que Aryadeva havia penetrado nele até seu verdadeiro âmago.
Aryadeva foi indicado o sucessor espiritual de Nagarjuna e por fim se tornou o
diretor de Nalanda. Ele escreveu alguns textos, dentre os mais famosos o Chatushataka (O Tratado dos Cem), que
sobrevive na tradução tibetana e em fragmentos em sânscrito. Taranatha relatou
histórias de que Aryadeva estabelecera mosteiros e realizara muitos notáveis
atos de magia, embora acrescentasse que não poderia garantir estas tradições.
Aryadeva às vezes era chamado de Nilanetra,
"Olhos azuis", por causa desta característica única de seu rosto, mas
o nome pode ser associado à sua obtenção do "corpo de arco-íris".
Também era chamado de Kanadeva, "Deva de um olho só", devido a um
misterioso encontro com Shiva em seu aspecto como Maheshvara. Ao debater com
Shaivitas teístas, argumentava que uma estátua de ouro de Maheshvara não era o
próprio deus, e para provar o ponto, arrancou o olho esquerdo da imagem. Quando
Maheshvara visitou Aryadeva no dia seguinte, o monge arrancou seu próprio olho
para mostrar que não fora orgulhoso, pois a estátua não é o deus, e o corpo não
é aquele que percebe dentro dele. Embora as obras de Aryadeva sugiram que ele
tenha debatido com os filósofos Jainistas, os teístas Vaishnavas e Shaivas, e
com os seguidores de numerosos pontos de vista Budistas, seu interesse era
remover o erro antes do que compelir todos os indivíduos a aderirem à
exatamente a mesma doutrina e prática. Ele conduzia sua dialética sublime com
especial entusiasmo na análise crítica das tradições teístas nas quais a
Deidade era primeiro personalizada e então absolutizada. Ele lançou críticas
igualmente fortes contra os sistemas Theravada que enfatizavam a prática com
exclusão do entendimento.
Acima de tudo, Aryadeva desejava modificar a
tendência Theravada de basear práticas espirituais e normas éticas em um
entendimento psicológico do sofrimento, substituindo-as por uma percepção ética
enraizada em abstrusa metafísica. Ele via que a ética sem uma firme compreensão
da metafísica implícita à doutrina das Duas Verdades - paramarthasatya e samvritisatya,
a absoluta e a condicional - reforçava a prática e negligenciava a
meditação. A metafísica Madhyamika, por outro lado, requeria o casamento da
meditação e da ação ética como os dois lados da mesma moeda. A despeito da
severidade da senda da emancipação, Aryadeva aplicava o ponto de vista das Duas
Verdades para incluir no Dharma todos os seres receptivos.
O amor à religião é prescrito pelos Tathagatas
para aqueles que anelam pelo céu; a verdade mais alta, contudo, é prescrita
para aqueles que buscam a libertação. Aquele que deseja o mérito religioso não
pode falar sempre de shunyata. O
remédio não se torna um veneno quando mal utilizado? Assim como alguém pode tornar
algo claro para o estrangeiro somente se usar a sua linguagem, do mesmo modo
alguém não pode explicar qualquer coisa ao povo comum a não ser usando a
linguagem comum.
Não obstante, explicações relativísticas são
úteis somente até o grau em que guiam um indivíduo em direção à meditação sobre
a plenitude do Vazio aparente, shunyata.
A tradição conta que o debate mais desafiador
e triunfante de Aryadeva foi com Matricheta, um grande devoto de Maheshvara.
Ele viajava ao mesmo tempo que ensinava, e por fim chegou a Nalanda. Nagarjuna
e Aryadeva estavam em seu retiro em Sri Parvata, e os monges ficaram
desconcertados com a poderosa argumentação de Matricheta. Foi enviada uma
mensagem para Nagarjuna, que testou seu discípulo e enviou-o para enfrentar o desafio.
Os quatro debates foram conduzidos em dois níveis, o dialético e o mágico.
Aryadeva venceu cada discussão dialética, mas só ao demonstrar sua habilidade
superior na magia ao frustrar as tentativas de Matricheta de invocar auxílio
invisível. Os discípulos de Matricheta imediatamente entraram para a Sangha,
mas Matricheta absteve-se até que completou uma profunda meditação sobre seus
erros. Então arrependeu-se sem reserva e por fim tornou-se um renomado
instrutor Budista. Subseqüentemente, Aryadeva retirou-se para o sul da Índia,
onde continuou a ensinar até sua morte. Algumas fontes sustentam que Aryadeva
foi apunhalado por um discípulo enfurecido de um vencido Tirthika, e mesmo ao
morrer ele recusou permitir seus seguidores de perseguir seu agressor. "tudo
é irreal", disse ele. "Reflitam sobre o verdadeiro significado de
todas as coisas no mundo dos fenômenos. Quem é apunhalado ou assassinado? Não
há nem assassinado nem assassino". Refreando assim seus discípulos, deu ao
seu agressor a oportunidade de fugir e talvez de se arrepender e colocar seus
pés na senda da emancipação.
A tradição Budista reverencia Aryadeva não
apenas como um superlativo expoente dos ensinamentos Madhyamika, mas até mais,
como um Bodhisattva que deu sua vida pelo bem da humanidade. Ele equilibrou
descompromissadamente análises incisivas sobre a confusão mental com orientação
positiva para reorientação da consciência em direção à Senda do Bodhisattva.
Seu equilíbrio dialético sublinha seu Chatuhshataka,
o mais celebrado trabalho de Aryadeva. Ele inicia com argumentos para a
eliminação dos preconceitos errôneos, a saber, que as coisas do eu são
permanentes, agradáveis, puras. A relatividade da existência fenomênica e a
Primeira Nobre Verdade demonstram que nada na experiência pode ser permanente,
agradável ou verdadeiramente puro. Se isto é entendido, é claro que não pode
haver um eu neste nível. Tendo a confiança no mundo profano sido abandonada
através da percepção desta impermanência inerente, a pessoa está pronta para
contemplar aquelas práticas Bodhisáttvicas que conduzem ao Budado. Assim, a
pessoa precisa eliminar os kleshas,
os envilecimentos que impedem o crescimento espiritual, Para conseguir isso, a
pessoa deve procurar suas causas nos muitos níveis de desfrute que surgem dos
objetos aparentemente desejáveis pelos sentidos. Só então a pessoa está pronta
para entrar no discipulado. Tendo esclarecido os requisitos para a senda da
emancipação, Aryadeva acrescentou uma vigorosa análise da insubstancialidade de
todos os dharmas, constituintes da
existência, que são demonstrados ser nada mais que signos de shunyata. Começando com a idéia de um
eu, e incluindo o tempo, as opiniões dogmáticas (como existência e
não-existência) e a realidade condicional, Aryadeva sujeitou os elementos da
existência fenomênica à negação do Shunyavada,
o caminho da vacuidade. Ele concluiu com uma discussão dos problemas
epistemológicos e lógicos envolvidos no ensinamento do shunyata.
Aryadeva também compôs tratados que teriam
apelo para uma larga audiência de estudantes sérios. Seu Skhalitapramathana-yukt-hetu-siddhi (A Dialética que Refuta os
Erros Estabelecendo Razões Lógicas) apresenta uma variedade de concepções
errôneas e sumariza as doutrinas que ajudarão o discípulo a superá-las e
progredir para a Iluminação. Entendendo a profundidade e tenacidade das
estruturas psíquicas, a pessoa se prepara para considerar o Dharma sem
cegueira, limitações ou preconceitos. As expressões metafísicas das verdades
mais elevadas podem então ser usadas para romper as matrizes da ignorância e
desilusão e transformar a consciência. Assim, Aryadeva escreveu a Dialética para oferecer ajuda
"neste mundo das cinco degenerações" - degenerações da extensão da
vida, do entendimento das concepções corretas, das emoções aflitivas (ambição,
raiva, ignorância, orgulho e coisas semelhantes), da estabilidade psicológica
dos seres sencientes e a degeneração desta época de contendas. Curiosamente,
Aryadeva não começa negando a existência putativa da não-existência; antes,
afirma a existência daquilo que alguém nega. Rejeitando o argumento de que
todas as coisas vêm para um fim e portanto não carecem de cuidados hoje, ele
insiste que conquanto todas as coisas pereçam, deixam sementes para crescimento
futuro. Nada apenas acontece, mas invariavelmente é causado. Assim, somente
pelo cultivo das virtudes que combatem as raízes da causação dependente é que a
pessoa pode adquirir a libertação de um ciclo infindável de renascimentos
compulsórios.
"Se nossa migração para condições
elevadas e baixas fosse irrestrita e tão livre
como um pássaro voando sem obstáculos,
então nenhuma obstrução poderia existir.
Mas pela virtude ou pelo erro,
nosso caminho é feito para a alegria ou para a
lamentação.
Aqueles têm o poder para o júbilo ou para a
tristeza,
aqui o poder dos deuses não vale nada".
Tendo afirmado a eficácia da ação correta por
causa da impermanência de todas as coisas - e não porque pode ser dito que algo
permanece o mesmo - Aryadeva nega então que qualquer noção concebível de um eu
individual pode ser válida.
"É como, por exemplo,
o erro comum
de tomarmos uma corda por uma serpente.
O fenômeno da corda
não é visto pelo que é,
mas é visto como possuindo um eu.
Ainda assim a corda e a serpente jamais podem
ser,
de modo que os fenômenos jamais são o
ser".
Similarmente, aqueles que são tentados a
reduzir o mundo fenomênico a algum substrato material permanente estão
igualmente em erro.
"Estas coisas elementares - fogo e água,
terra e vento - não podem existir em si
mesmas,
pois são compostos de coisas menores,
partes subatômicas (p'a-ra-rab dul), e assim
até mesmo a menor das partículas
pode ser dividida seis vezes.
Assim, não pode existir a "parte menor de
todas",
e da mesma maneira toda substância
jamais pode existir permanentemente
e sua destruição é tríplice".
Para aqueles que vêem na presente ordem das
coisas as linhas da permanência, acreditando que uma pessoa naturalmente
renasce na mesma raça ou gênero, posição social ou personalidade, Aryadeva
adverte:
"Assim como o ouro ou a prata se conformam
aos moldes -
sejam eles de leões, cavalos ou touros -
do mesmo modo o espírito - o continuum mental -se conforma, através
do impulso do desejo, em cor e forma e estrutura de consciência, como figuras
que são moldadas no fogo".
Quando uma pessoa começa a perceber a natureza
deceptiva de todos os fenômenos, pode surgir uma tendência de acreditar que se
entender a natureza de todos os tipos de fenômenos que aparecem, de alguma
forma discernirá a Realidade neles. Este é o erro sutil de confundir a classificação
exata com a percepção espiritual.
"Se se atinge estados elevados
por se conhecer este caminho
de fazer enumerações,
então as coisas como o ouro precioso
deveriam ser compelidas a aparecer
através da contagem de gravetos e pedras.
Assim devemos dizer tranqüilamente
que este tipo de lógica
é refutada pelo senso comum,
para não dizermos pela verdade derradeira.
É como se um homem faminto
dissesse que estava satisfeito
depois de listar todas as suas comidas
favoritas".
Para Aryadeva, o erro fundamental na má
concepção da Realidade surge de uma falha em reconhecer-se a não-egoidade ou
falta de uma natureza inerente de todas as coisas. Quando alguma
substancialidade ou realidade inerente é concedida ao fenômeno, então a pessoa
falha em compreender a verdade da origem dependente em sua raiz. Este
entendimento errôneo é a causa direta das cinco aflições - desejo, ódio,
ignorância, arrogância e dúvida - e estas cinco reafirmam a relevância da
Primeira Nobre Verdade. Metafisicamente, o erro pode ser explicado com relativa
facilidade, mas não pode ser entendido sem grande esforço. Para compreender a
vacuidade daquilo que parece pleno e a realidade do que parece vazio, a pessoa
tem de penetrar e romper os padrões de percepção e entendimento errôneos que penetram
todos os níveis da consciência corporificada. Assim a metafísica pura do
Shunyavada - o Caminho do vazio - deve ser traduzida para o Madhyamika, o
Caminho do Meio, que evita todos os extremos e excessos. A Senda do
Bodhisattva, ao longo do qual a pessoa anda por etapas, através de despertares
progressivos para a natureza real das coisas e do gradual descarte de falsas
concepções sobre o eu, é o único caminho para o perfeito conhecimento e a
Iluminação plena. O caminho do Meio, que tem sido caracterizado como
"zerologia" - o estudo e prática de shunya - é trilhado avançando no aprendizado e também reduzindo a
pessoa a zero, ao mesmo tempo em que ela se une ao todo - shunyata - através de serviço altruísta e meditação sobre os
fundamentos. Aryadeva é chamado de Bodhisattva porque ele fundiu claridade de
percepção com ação compassiva na inabalável convicção de que todos poderiam
trilhar a senda da emancipação.
"Arjuna! se um homem vê em toda parte -
ensinado por sua própria similitude - uma
Vida,
Uma Essência no Mal e no Bem.
Considerai-o um Yogi, sim, um perfeito!"
SHRI KRISHNA
OM
Autor: Elton Hall
Tradução: Um Colaborador
Revisão: Osmar de Carvalho
Fonte: |