"Este é o meu conselho a respeito do
estado de vossa alma. Como a vejo, deveríeis considerar como um favor especial
tudo que torna difícil para vós amar a Deus, mesmo se outras pessoas, incluindo
os frades, sejam responsáveis por isso ou mesmo se elas chegarem a levar-lhe à
violência física. Este é o caminho que devíeis querer seguir, e podeis tomar
isto como uma ordem de Deus e minha. Estou convencido que isto é verdadeira
obediência. Devei amar aqueles que se comportam daquele modo para convosco, e
não devíeis querer nada deles, exceto o que Deus permitir que vos suceda.
Podeis demonstrar vosso amor por eles desejando que sejam melhores Cristãos.
Isto seria de maior benefício para vós do que a solidão de uma eremita".
Carta a um Ministro
FRANCISCO DE ASSIS
Cada época tem suas fontes secretas de
renovação e seus homens excepcionais que discernem o essencial da vida. Como
Platão ensinou no Mito de Er, quando uma cultura não tem seus valores claros, a
maioria das pessoas fica obnubilada na sua consciência e age compulsivamente ou
com desagrado. Quando uma cultura tem uma formulação rígida de valores, muitos
se tornam conformistas cegos. No meio da estagnação e do caos, as forças
quintessenciais da ideação penetram no campo do pensamento e da ação, afetando
a muitos sem que se dêem conta e provendo os materiais brutos para que alguns
poucos auto-escolhidos se coloquem como exemplos para a época e como uma
inspiração para o porvir. Os séculos XII e XIII aparecem para as gerações
subseqüentes como toscos senão mortos, de um ponto de vista, e de outro, como
tediosos em suas intrigas políticas e religiosas. Ainda assim eles foram tempos
de despertar de novas possibilidades de aprofundamento das dimensões da
existência humana.
As cortes do sul da França e do norte da
Espanha cultivaram a tradição trovadoresca do amor cavalheiresco. As relações
entre os homens e as mulheres foram tiradas do contexto dos contratos de
casamento e reformuladas em termos de uma busca por ideais. Uma estranha mistura
de piedade e desejo de ação manifestou-se nas Cruzadas, nas quais nobres de
toda a Europa navegaram para Ultramar para resgatar a Terra Santa das mãos dos
gentios. A aceitação acrítica da autoridade eclesiástica, antes, abrira caminho
para reformas religiosas radicais,
dramaticamente corporificadas nos movimentos Cátaro e Albigense. A velha
nobreza possuidora de terras viu-se confrontada por uma classe comercial
emergente que tinha seus próprios modos de vida e valores. Dentro da
fermentação política e econômica da época, surgiu um novo despertar espiritual
que levou grande número de indivíduos a abandonar o mundo por retiros ascéticos
em vales despovoados e colinas remotas. O mundo medieval era fluido e promissor
para aqueles que floresciam em meio à mudança.
Pietro di Bernardone, um próspero comerciante
de Assis, viajava freqüentemente para Champagne para as grandes feiras
comerciais. Lá, em 1181, sua esposa Pica deu à luz uma criança que ela batizou
de Giovanni. Assim que Pietro retornou à casa ele mudou o nome para Francesco,
derivado de França, o país cuja cultura ele admirava. Pouco se sabe da família
de Francisco, exceto que sua mãe era piedosa e ortodoxa, e seu pai, não muito.
Homem determinado, ele desafiava o temperamento do Ducado de Espoleto ao demonstrar
entusiasmo por tudo o que era francês. Colhidos entre os esforços papais de
preservar e expandir suas terras e pelo avanço do Sacro Império Romano, os
cidadãos eminentes de Assis consideravam desagradável, senão perigoso, o desdém
cavalheiresco de Pietro para com os assuntos políticos. As idéias Albigenses
haviam viajado com os mercadores para a Itália, e Pietro fora influenciado
pelos ensinamentos dos Katharoi,
"os puros". Antes de Francisco nascer o imperador havia dominado a
Úmbria, e Assis, diversamente de suas cidades irmãs, havia aceito o governo
germânico. Na paz resultante, os mercadores prosperaram e Francisco cresceu em
uma vida de calmo luxo. Sua educação foi modesta mas sólida, adequada a uma
pessoa que eventualmente assumiria um papel principal nos negócios familiares.
Em 1197 Henrique VI morreu e os domínios
Hohenstaufen se dissolveram em suas partes componentes. Três meses mais tarde
faleceu o papa Celestino, e no início de 1198 Lotário de Segni foi ordenado
padre, consagrado bispo, e coroado como papa Inocêncio III. Em poucos meses
Inocêncio aproveitou a ocasião e conduziu um avanço triunfante sobre as antigas
terras papais, recebendo cidade após cidade de seus usurpadores imperiais.
Quando o Ducado de Espoleto foi reclamado pelo papa, Assis não resistiu. Os
cidadãos, contudo, não viram vantagem em substituir um tirano por outro, e eles
laboriosamente desmantelaram o forte real da colina sobre a cidade. Embora se
submetessem à autoridade papal, elegeram cônsules e começaram a operar como um
território semi-independente. Os jovens de Assis aproveitaram a nova liberdade
ao máximo. Francisco era freqüentemente eleito "Rei das Folias" e
conduzia os jovens em arruaças e saques pela cidade. O que lhe faltava de
nobreza hereditária, ele adquiria com sua habilidade de pagar. Enquanto que
muitos nobres aceitassem sua perda de poder e mesmo se mudassem para a cidade
para desempenhar seu papel de cidadãos, alguns dos senhores mais poderosos
resistiam às mudanças e apelaram por ajuda para a vizinha Perúgia. Quando os
cidadãos de Assis destruíram o castelo de Sassorosso, seus nobres fugiram para
Perúgia e a cidade pediu compensação pelas perdas dos seus novos cidadãos.
No outono de 1202, o exército de Assis marchou
sobre Perúgia. A riqueza de seus pais possibilitou a Francisco que se juntasse
à cavalaria, e ele rumou para a antecipada vitória com excitação e um
sentimento de destino. O exército posicionou-se em Collestrada, perto do rio
Tibre, esperando pelas forças de Perúgia. A batalha seguinte foi desastrosa
para Assis. Muitos soldados a pé foram mortos, e Francisco foi capturado junto
com um grupo de companheiros a cavalo. Ficou um ano prisioneiro de Perúgia, e
durante seu cárcere ele apresentava um corajoso bom-humor que afetava mesmo os
prisioneiros mais deprimidos. Quando foi libertado, voltou para casa, para
descobrir que a facção moderada havia falhado em assegurar uma paz razoável com
Perúgia. Os elementos mais extremos forçavam um prosseguimento da guerra e
haviam mesmo eleito um podesta, ditador
temporário, Cátaro durante alguns meses. A igreja reagiu aliando-se a Perúgia,
e um número de cidadãos, incluindo, ao que parece, Pietro Bernardone, foi
solicitado a fazer profissões especiais de ortodoxia. A guerra havia acabado.
Francisco sentiu em si uma profunda
necessidade de cumprir seu destino, mas não foi abençoado com uma intuição
imediata do que seria este destino. Seu pai havia-lhe ensinado as canções dos
trovadores na langue d'oc, o francês
arcaico do sul. O amor cavalheiresco e espiritualizado dos trovadores e as
lendas populares da Távola Redonda do rei Artur mesclaram-se num entendimento
romântico das Cruzadas e dos reinos de Ultramar. Conquanto os detalhes não
sejam conhecidos, é claro que Francisco desenvolveu um profundo anelo de se tornar
um cavaleiro, pois nesta figura arquetípica ele encontrava unidos o guerreiro e
o fiel devoto do Divino. Walter de Brienne estava lutando na Apúlia pela
restauração da ordem legítima, e Francisco decidiu juntar-se a ele no sul. Seu
pai armou-o com um magnífico paramento de cavaleiro e mandou-o para a fama e
para a glória. Logo antes de partir, teve um sonho:
"Enquanto Francisco dormia, um homem apareceu-lhe e
chamou-o pelo nome em um vasto e aprazível palácio, onde as paredes eram
cobertas de cotas de malha, brilhantes escudos e todas as armas e armaduras dos
guerreiros. Francisco deliciou-se, e refletindo em qual poderia ser o
significado de tudo isso, ele perguntou a quem eram destinadas as armas
esplêndidas e o belo palácio; e ele recebeu a resposta de que eram para ele e
seus cavaleiros."
Esta aparente confirmação de suas aspirações
aumentou sua alegria ao partir de Assis em direção ao sul.
Mal havia andado Francisco poucas milhas além
de Espoleto quando caiu doente. No meio de um estupor, uma voz perguntou-lhe:
"A quem seria melhor servir, ao servo ou ao amo?" Francisco respondeu
que seria melhor servir ao amo. "Por que, então", continuou a voz,
"procuras o servo antes do que o amo?" Surpreso, mas não penetrando no
significado, Francisco disse "O que queres que eu faça, Senhor?" A
voz respondeu: "Volta à tua terra natal e prepara-te para fazer o que te
for ordenado". Enquanto esta instrução fosse bem diferente das vagas
idéias que Francisco estivera entretendo, de imediato ele abandonou sua empreitada
cavalheiresca e voltou a Assis. De certo modo ele encontrara em si algo da
máxima importância, e de outro modo havia perdido completamente a si mesmo. De
volta a Assis, permanecia bem disposto e afável, mas novas correntes se moviam
em sua profundeza. Mesmo que não incomodasse os outros com suas dúvidas
interiores, periodicamente ele entrava em humores reflexivos e, às vezes, em
transes. Para a grande consternação de seu pai, Francisco comprou dispendiosos
ornamentos para as igrejas de Assis, fez uma peregrinação até Roma, e começou a
pedir conselhos ao novo bispo de Assis, o ambicioso e mundano Guido. Francisco
estava pressentindo seu caminho para sua missão verdadeira, e suas atividades,
às vezes excêntricas para a visão do povo e cada vez mais aborrecidas para seu
pai, eram bastante convencionais para a época. Não obstante, o ponto de virada
veio com um simples ato. Perto do fim de sua vida, ele ditou seu Testamento: Começa ele:
"Foi assim que Deus inspirou a mim, o Irmão
Francisco, a embarcar em uma vida de penitência. Quando eu estava em pecado, a
visão dos leprosos me enojava além da medida; mas então Deus me levou á
companhia deles, e eu me apiedei deles. Quando eu me acostumei a eles, o que
antes me nauseara se tornou para mim fonte de consolo espiritual e físico.
Depois disso eu já não demorei em deixar o mundo".
Francisco fez uma ligação intuitiva entre seu
modo de vida, que era irresponsável em um mundo de sofrimento e dor universais,
e sua repulsa pelo sofrimento alheio. O horror que ele experimentava ao ver a
decadência física no mundo era somente um reflexo da decadência moral e
estagnação espiritual em si mesmo. Uma vez tendo percebido a ligação, não
haveria escapatória das implicações pela fuga a qualquer aspecto do mundo.
Francisco iniciou, com medo a princípio, a visitar e assistir os leprosos,
levando comida, roupa, positividade e interesse humano. A lógica de sua
percepção conduziu à adoção de uma vida de penitência, mas tal lógica não se
discernia imediatamente, e Francisco percebeu-o só com vagar. Ele começou a
desaparecer nas colinas em torno de Assis, retirando-se em cavernas para
buscar, como dizia aos seus amigos curiosos, tesouros. Então um dia, ao passar
pela decrépita igreja de São Damião, logo ao sul da cidade, ouviu uma voz interior
dizer-lhe que entrasse e rezasse. Ele o fez e logo ouviu uma voz:
"Francisco, não vês que minha casa está em ruínas? Vai, e repara-a para
mim". Talvez por ter a mente um pouco literal demais, talvez como uma
prefiguração de sua grande obra, Francisco presumiu que significasse a
restauração da igreja em que rezara. Na primeira oportunidade tomou grande soma
de dinheiro da casa de seu pai e foi para a igreja. Seu pai enviou um grupo
para trazê-lo de volta, mas Francisco se escondeu em uma gruta durante um mês.
Tudo isso era demais para Pietro, e quando Francisco fez uma aparição pública,
seu pai agarrou-o e prendeu-o e acorrentou-o em um porão escuro. Isso foi o
pior escândalo que o povo da cidade poderia lembrar.
Pietro insistia que Francisco não podia gastar
a fortuna da família em reparos de igrejas. Francisco insistia que ele faria
exatamente isso. Por fim Pietro teve de viajar a negócios, e durante sua
ausência Pica libertou Francisco, que imediatamente voltou para São Damião. No
seu regresso, Pietro ordenou publicamente que Francisco voltasse para casa.
Francisco recusou. De acordo com os estatutos locais, o mau uso de bens
paternos era punível com o exílio. Pietro denunciou seu filho e exigiu que
fosse trazido a julgamento, mas quando o juiz emitiu uma ordem para que
aparecesse, Francisco rejeitou-a alegando que estava ligado à igreja e sob a
jurisdição do bispo. Sem a autorização do bispo, nenhuma autoridade secular
poderia tocar em Francisco, e assim seu pai citou-o diante do tribunal eclesiástico.
Desta vez Francisco apareceu por vontade própria, ouviu as acusações de seu pai
e aceitou o julgamento do bispo. Guido, não desejando dividir nenhum grupo por
causa de um conflito familiar, tomou um rumo intermediário, declarando que
Francisco deveria devolver o dinheiro disputado e que a soma necessária para a
restauração da igreja em seu devido tempo seria divinamente manifesta.
Imediatamente Francisco desnudou-se, dobrou suas roupas e colocou o dinheiro em
cima da pequena trouxa. O surpreso bispo colocou seu manto em torno de
Francisco e acolheu-o no palácio episcopal.
Agora Francisco estava completamente sozinho.
Salvo pelo conselho paternal e a doação de uma velha túnica, o bispo Guido não
se sentiu obrigado para com o impetuoso jovem. De início a cidade tratou
Francisco como uma piada pública. Logo, contudo, Francisco viu como a igreja
deveria ser restaurada: ele devia fazê-lo ele mesmo. Usando velhas pedras,
começou a reconstruir São Damião. Quando acabou o material disponível, foi para
a cidade pedir por mais. Como os discípulos do Buddha, e em contraste com as
tradições monásticas da Europa, ele também esmolava por comida. Quando as
pessoas viram que ele trabalhava por si mesmo, ganhou sua simpatia, e elas lhe
deram materiais e começaram a visitá-lo na pequena igreja para dar-lhe uma mão.
Quando São Damião ficou completa, ele mudou-se para a capela arruinada de São
Pedro della Spina, e depois voltou-se para o mais famoso de seus trabalhos, uma
antiga igreja chamada de Porciúncula. Quando ela foi acabada, em fevereiro de
1208, veio um padre da abadia Beneditina local para celebrar a missa. Seu texto
foi os ensinamentos de Jesus para irem pelo mundo sem dinheiro ou posses e
pregar a penitência. Súbito, Francisco exclamou: "É isto o que eu desejo
de todo coração!", e deixou seus trajes de pedreiro pela túnica eremítica.
Francisco era doce e humilde. No pensamento
medieval o penitente se sacrificava e renunciava ao mundo não apenas pelo bem
de sua própria alma, mas também como um exemplo e uma força positiva na
humanidade como um todo. O penitente afetava toda a comunidade e era aceito
como parte da sociedade medieval. Diversamente dos eremitas errantes
costumeiros daquela época, Francisco não proferia sermões admoestadores com uma
face dorida. Ele andava sorrindo e dando risadas e lembrando aos indivíduos que
encontrava que o mundo é belo, e a terra, boa. Ele apreciava tanto a vida na
natureza que as pessoas passaram a acreditar que ele conhecia a linguagem dos
animais, especialmente a dos pássaros. Para ele, todo elemento da natureza era
sacramental - cada flor, criatura ou mineral atestava a bondade e a glória
transcendente do Divino. Logo indivíduos começaram a passar seu tempo com ele,
e não demorou que surgisse uma "ordem" informal. A idéia de uma ordem
de penitentes tomou forma quando Bernardo, um rico imigrante de Assis, falou
seriamente em juntar-se a Francisco como seu discípulo. Depois de consideráveis
discussões os dois foram até um padre e pediram-lhe que abrisse o missal ao
acaso por três vezes. As três passagens foram notáveis:
"Se desejas ser perfeito, vai, vende o
que tens, e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu; depois vem e segue-me."
"Não leveis nada para o caminho, nem
cajado, nem bolsa, nem pão, nem dinheiro."
"Se algum homem vier a mim, que negue a
si mesmo, tome sua cruz e siga-me".
"Esta é a nossa vida", disse
Francisco, "esta é a nossa Regra, e quem quiser se unir a nós terá de
fazer o mesmo". Assim, os rudimentos da Ordem Franciscana, consagrada à
pobreza, perambulação e penitência, surgiu. Dentro de duas semanas Pedro e
Gilles se uniram a Francisco e Bernardo. Os quatro alegremente distribuíram
tudo o que Bernardo possuía, para o espanto de Assis. Francisco chamou seu
grupo de a Távola Redonda, e não há dúvida que ele via seu grupo como
cavaleiros espirituais em uma tradição semelhante à de Artur. Foi seguido por
indivíduos de origem pobre e mesmo pela flor da jovem nobreza de Assis.
Francisco escreveu uma Primeira Regra, então perdida, e, a despeito, da
diversidade de origens, aqueles eremitas se governavam democraticamente. Em
1209 partiram para Roma para buscar aprovação papal. Assim que chegaram à
Cidade Eterna, Francisco conseguiu encontar-se com o papa em um corredor de
Latrão. Francisco proferiu seu pedido em meio a assombro e incoerência, e o
chocado Inocêncio disse-lhe para viver em um chiqueiro. Francisco obedeceu
literalmente. O bispo Guido, em Roma para negócios, ouviu sobre este estranho
incidente e persuadiu o grupo de irmãos a se lavar e falar com o cardeal Giovanni
de São Paulo. Depois de diversos dias de encontros, o cardeal concluiu que
Francisco e seu grupo não demonstravam nenhuma tendência de heresia, e
providenciou um encontro formal com o papa. Para a surpresa de seus
conselheiros, o papa acolheu Francisco, encantado com as histórias de sua
obediência literal no assunto do chiqueiro, e aprovou a Regra da Ordem sob a
condição de que os frades pregassem penitência e não teologia.
De volta a Assis, a Ordem - mais uma
fraternidade em tom e temperamento - floresceu modestamente. Na perspectiva de
Francisco, a Ordem havia de ser rigorosamente simples: eles seriam pobres,
evitariam o dinheiro, seriam mendigos, andarilhos, pregadores da penitência,
castos e, acima de tudo, irmãos em espírito. Mas ele não acreditava em
excessos. Ele não estava além da autoflagelação, mas para com os outros
insistia na moderação. A Ordem não existia para recriminação mútua, mas para
apoio coletivo. Enquanto que o modo de vida dos primeiros Franciscanos era
suficientemente árduo para desencorajar a maioria das pessoas, a boa disposição
e a alegria dos irmãos eram atraentes. Em 1211, Clara, uma jovem nobre cuja
infância havia se passado no exílio em Perúgia, solicitou um encontro com
Francisco. Com o auxílio de vários irmãos que juraram silêncio, eles se
encontraram secretamente em diversas ocasiões. Seus espíritos se exaltaram, e
se apaixonaram. Com cuidadosos arranjos prévios, Clara fugiu de casa uma noite,
encontrou-se com os Franciscanos, cortaram-lhe o cabelo e a levaram para o convento
de São Paulo. Quando a família tentou resgatá-la, ele se recusou a ir. Também
recusou-se a tomar o hábito Beneditino, pois, disse ela, havia jurado a Ordem
Franciscana. Assis ficou escandalizada, embora ninguém pudesse encontrar o
menor sinal de alguma indecência. Pior ainda, em poucos dias a irmã de Clara,
Agnes, fugiu para juntar-se a ela. Nesta altura o bispo Guido, aborrecido e
embaraçado com estas atividades imprevistas, entrou em cena. Ele ofereceu a
Clara a igreja de São Damião, a primeira estrutura reconstruída por Francisco,
e estabeleceu-a ali, a duas milhas da Ordem masculina. Logo, a Clara e Agnes
uniu-se sua terceira irmã, Beatriz, e sua parenta Pacífica. Por fim sua mãe,
Ortolana, também se juntou a elas, e Francisco tornou Clara a primeira abadessa
das Clarissas Pobres. Sabendo bem dos rumores que cercavam as ordens que
admitiam homens e mulheres em uma vida comum, Francisco foi cuidadoso em manter
separados os sexos. Embora mesmo durante sua vida os Franciscanos acabassem por
modificar a Regra o bastante para Francisco acreditar que o impulso inicial
havia desaparecido de seu movimento, a Ordem foi sempre honrada por sua
circunspeção.
O espírito das cruzadas ainda não havia
morrido na Europa. Francisco o havia experimentado quando, ainda jovem,
desejara se juntar a Walter de Brienne na Apúlia. Agora ele sentia uma profunda
necessidade de pregar aos Sarracenos, os Muçulmanos que estavam aos poucos
reconquistando a Terra Santa. Quando o irmão de Walter de Brienne casou com a
jovem Maria de Jerusalém e embarcou para Acre, Francisco desejou acompanhá-lo.
Delongas e mau tempo fizeram-no desembarcar na Eslovênia e de lá ele voltou
para a Itália. Destemido, aprontou-se com vários irmãos para uma peregrinação à
catedral de Santiago de Compostela, na Espanha. Embora não dissesse nada de
seus verdadeiros propósitos aos seus companheiros, os historiadores em geral acreditam que ele planejava confrontar
lá os Mouros. Na melhor das hipóteses a viagem foi custosa, e embora Francisco
estivesse alegre durante o trajeto, caiu doente em Santiago. A doença perdurou
e a jornada de volta para casa foi longa. Embora desapontado, Francisco não se
desencorajou. Em 1215 Inocêncio III convocou o grande XII Concílio Ecumênico,
onde, além de proclamar setenta cânones que remodelaram a igreja, o papa fez a
convocação para uma nova Cruzada em 1217. Embora hesitante em fazê-lo,
Francisco finalmente aceitou cartas de salvo-conduto do cardeal Ugolino que,
como papa Gregório IX, canonizaria Francisco dois anos depois de sua morte. Em
1219 Francisco embarcou para Outremer.
Quando Francisco chegou em Acre, fez um
descoberta chocante: muitos Muçulmanos eram mais civilizados e Cristãos em suas
virtudes do que o era o endurecido e variegado grupo de cruzados. Sob as
instâncias de João de Brienne, não se fez nenhuma tentativa de retomada
imediata de Jerusalém. Antes, atacaram a cidade de Damietta no Egito e
capturaram as fortalezas externas. No meio deste conflito, logo depois que
Damietta caiu, Francisco foi para o campo do sultão Melek al-Kamil. Al-Kamil
apreciava discussões filosóficas e convidou Francisco a aproximar-se dele. Para
fazê-lo, contudo, Francisco teria de caminhar sobre um tapete de cruzes que o
sultão usava para separar os conversos dos espiões. Al-Kamil surpreendeu-se ao
ver Francisco atravessar o tapete sem perturbação, mas Francisco explicou que
ladrões também foram crucificados com Cristo. A verdadeira cruz está na
consciência, e a cruz dos ladrões, no solo. Francisco e Al-Kamil ficaram
amigos.
Não houve dúvida sobre a fé de Francisco. Ele
ofereceu-se para sofrer o ordálio, mubhala,
o teste do fogo. Primeiro ele sugeriu que caminhasse pelo fogo junto com um
doutor Muçulmano. Aquele que saísse incólume professaria a verdadeira fé.
Quando o sultão informou-o de que era contra a lei do Corão aceitar tais
desafios, Francisco ofereceu-se para passar sozinho pelo fogo. Novamente o
sultão declinou, oferecendo a Francisco presentes e salvo-conduto de volta ao
campo Cristão. Quando a Segunda Regra foi publicada, Francisco especificou duas
formas de testemunho missionário. Ao mesmo tempo em que admitia o martírio, o
modo medieval por excelência, ele determinou que o rumo preferível seria viver
entre os infiéis como um exemplo de vida Cristã. Quando prega a penitência, a
pessoa está persuadindo indivíduos a tomarem no coração o que eles em algum
nível já acreditam. Fecha-se o vão
entre a teoria e a prática. Quando se testemunha para indivíduos de crenças
diferentes mas igualmente sinceras, só o exemplo será convincente.
Sua estada em Outremer foi perturbada por
mensagens informando-lhe de problemas com a Ordem na Úmbria. Apressou-se a
voltar para casa, encontrando lá novos estatutos em vigor e grande confusão
entre os irmãos. Enquanto resolvia estes assuntos e aplacava as disputas,
decidiu renunciar à liderança. Francisco se juntou a Gilles e Bernardo como
recluso. Em 1224, durante um jejum de quarenta dias, recebeu os estigmas, o
primeiro homem a exibí-los depois da Crucificação. Eles eram tão vívidos que
ele teve de ser carregado de volta a Porciúncula. Rapidamente também ficou
cego. Embora ainda sofrendo no corpo e
no coração, compôs o formoso Cântico ao
Irmão Sol. Em 1226, quando reconheceu que estava à beira da morte, ele
acrescentou o cumprimento final à Irmã Morte, e Clara foi autorizada a cuidar
dele. Agora sem força, sua vida já havia inspirado a milhares. O estranho homem
de Assis se tornara objeto de respeitosa reverência. Quando ele morreu, em 3 de
outubro de 1226, foi carregado para o próprio centro de Assis e lá enterrado.
Embora ele sentisse a si mesmo como um fracasso por não ter sido capaz de
manter sua Ordem fiel aos ideais que houvera estabelecido para ela, ele
triunfou do modo que ele considerava o melhor testemunho - pelo exemplo. Embora
houvesse escrito pouquíssimo, cristalizou a mensagem daquele testemunho em um
breve poema:
"Senhor,
Fazei-me instrumento de vossa paz.
Onde houver ódio,
que eu leve o amor;
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão;
Onde houver discórdia, que eu leve a união;
Onde houver dúvida, que eu leve a fé;
Onde houver erro, que eu leve a verdade;
Onde houver desespero, que eu leve a esperança;
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria;
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre,
Fazei que eu procure mais consolar, que ser consolado;
compreender que ser compreendido;
amar, que ser amado.
Pois é dando que se recebe,
é perdoando que se é perdoado,
e é morrendo que se vive para a vida eterna.
Amém."
São Francisco de Assis
"Sim! conhecendo a Mim como fonte de
tudo,
e criador de todas as criaturas,
o sábio em espírito adere a Mim,
entra em Meu Ser.
Corações fixos em Mim; alentos soprados para
Mim;
louvando-Me, todos,
de modo que tenham sua felicidade e paz,
com pensamentos e palavras piedosos:
e para estes - os que assim servem bem, os que
assim amam sem cessar,
eu dou uma mente de disposição perfeita,
por onde chegam a Mim".
SHRI KRISHNA
OM