O que é incutido na nossa
natureza, por assim dizer, durante a nossa infância vem a fazer parte integral
de nós. . . . Eventualmente, o barro pode ficar, algumas vezes, excessivamente
úmido para reter o molde estampado nele, mas duvido se existe algum período no
progresso de uma criança em que ela seja muito jovem para aprender... É
minha convicção que nenhuma idade é demasiado cedo, a respeito disto, isto é,
acerca do conhecimento que a Natureza tem perfeitamente prescrito para ela... Ensinar usando a coação física, portanto, não é uma educação liberal. Nem o
professor deverá perder-se numa excessivamente forte e freqüente linguagem de
repreensão. O remédio quando é repetido constantemente perde a sua eficácia... Mostremos-lhe que o castigo que devemos empregar é a palavra de orientação
ou de repreensão, à qual um homem livremente obedece...
Vergonha é a ansiedade que se tem
da repreensão justa; através de elogio um aluno é estimulado para superar em
tudo o que ele faz. Serão estas, pois, as armas do professor hoje em dia. E eu
posso acrescentar outra: ‘Esforços infatigáveis conquistam todas as coisas’,
disse o poeta. Prestemos atenção, demos coragem, estimulemos e insistamos ainda
outra vez, que aprendendo, repetindo, escutando com diligencia, o aluno se
sentirá conduzido para a sua meta.
De Pueris Instituendis[*]
ERASMUS
O Renascimento acendeu um archote de verdade, cujo suporte era
a visão do mundo medieval, o combustível pelo qual foi provido pelas formas e
valores do mundo clássico. A sua luz despertou a consciência humana para novos
modos de criatividade e energia expansiva, mas as sombras que projetou foram
ambíguas. O espírito de exploração não pode ser divorciado da destruição cruel
de povos e civilizações. O interesse por coisas novas e desconhecidas
anteriormente desviou a riqueza da terra para portos comerciais, além disso,
também alimentou o secularismo
comercial crescente que apoiou os nacionalismos emergentes e as classes
burguesas. Um desejo rejuvenescido para obter erudição pelo estudo e ciência,
apenas favoreceu um renascido sofisma, cujo estilo subjugou o pensamento e,
eventualmente, a própria verdade.
Se o Renascimento foi uma benção mista, a Reforma foi uma
espada de dois gumes. Fragmentando o poder da igreja na Europa central e do
norte, forçou confrontações nas ordens, com os piores abusos entre o clero e,
até mesmo, na corte do papa. Quer o desejo para com a pureza Protestante, quer
para a renovação Católica, tornaram-se inextricavelmente ligados com as
políticas das nações, da Escandinávia à Espanha. Embora advogando sinceramente
um regresso aos princípios seminais de Jesus e às práticas primitivas da
cristandade, o farisaísmo sectário arrastou-se para o dogma, e até mesmo os
métodos odiados da Inquisição encontraram moradas novas em alguns movimentos. O
Protestantismo intensificou os valores seculares e abriu caminho para o
Iluminismo, cujos valores racionalistas enfraqueceram as superstições nutridas
por muitos clérigos, mas também abriu, inadvertidamente, a porta para as
filosofias materialistas. Reis e bispos, pensadores e escritores, reconheceram,
de igual modo, que, dentro da confusão e tumulto, estavam acontecendo mudanças
fundamentais e irrevogáveis. Se uma época pode ser catalogada ‘disponível para
qualquer um pegar’, este período se qualificaria assim, e muitos lutaram para
afetar o resultado, cada qual de acordo com a percepção individual e
compromissos. Neste estado de violenta confusão mental e moral surgiu um
individuo, cujo amor inato de harmonia e senso de beleza permaneceu intacto
pelas intensas forças que modelam a vida e o pensamento europeus.
Desiderius Erasmus, ou Erasmo de Roterdã, nasceu,
provavelmente, em 28 de outubro de 1469, embora Erasmo tenha dado diferentes
datas em diferentes épocas de sua vida, e a celebração do dia de festa de S.
Simão e S. Judas pode ter sido simbólico.
O seu pai, Gerard, o mais jovem e mais talentoso de dez filhos, foi
empurrado para o sacerdócio contra a sua vontade e inclinações. Antes de ser
ordenado, cultivou uma relação com Margaret, uma viúva jovem de uma aldeia
vizinha, e ela deu-lhe duas crianças, Peter e, três anos mais tarde, Erasmo.
Rotterdam é tradicionalmente considerada o local do nascimento de Erasmo, visto
que sua mãe viveu numa modesta casa na Rua Nieuw-Kerk, onde ainda pode ser
vista. Embora Erasmo tenha passado ali os seus primeiros anos, freqüentemente
dizia que nasceu em Gouda, a aldeia do pai dele. Depois de passar vários anos
em Roma desfrutando um desregramento elegante, Gerard voltou a Gouda, tomou
providencias para as crianças, mas não viveu com elas.
Depois de alguma instrução escolar em Gouda, Erasmo foi enviado
a Deventer, uma escola para rapazes que formou Nicolau de Cusa e Thomas Kempis,
fundada pelos Irmãos da Vida Comum. A vida escolar era dura no décimo quinto
século, quando os açoites se seguiam à infração mais ligeira das regras ou
tradições, e os alunos pobres eram vitimas, igualmente, de outros estudantes e
professores. Erasmo agüentou repreensões e surras, quase chegando à inanição, e
sofreu abusos brutais, e o seu registro escolar não causava uma boa impressão.
Quando um professor acusou Erasmo de um falso crime com vista a castigá-lo, o
seu coração e a sua saúde quase findaram. Talvez tenha sido por esta altura que
foi mandado para a escola catedral em Utrecht como menino de coro. Mais tarde
ele voltou, e provavelmente passou oito anos em Deventer, o último dos quais
sob a orientação do humanista John Sintheim, que profetizou grandeza para o
seu, aparentemente obtuso, aluno. Depois que seus pais morreram da epidemia em
1483/4, Peter e Erasmo quiseram freqüentar uma universidade, mas os seus
tutores, que dissiparam o dote em três anos, persuadiram a irem para a vida
monástica. A recusa trouxe um compromisso temporário, uma segunda escola dos
Irmãos em Hertogenbosch, onde Erasmo foi encorajado a ler autores antigos,
incluindo Cícero e Sêneca. Aqui Erasmo
reviveu.
Em 1486, Peter e Erasmo foram novamente metidos no mosteiro e,
depois de cenas violentas, Peter foi mandado para o mosteiro de Sion em Delft,
enquanto Erasmo escolheu Emmaus em Steyn, perto de Gouda, ambos sob a ordem dos
cânones Agostinianos[†]. Os irmãos,
muito provavelmente, não voltaram a ver-se de novo e embora Erasmo escrevesse
ternamente ao irmão durante uma década, ele ficou amargurado por suas últimas
indulgências. Não obstante, até mesmo quando escreveu De contemptu mundi (Em Desprezo do Mundo), argüindo que a vida
monástica era a melhor para aquele tempo, não tinha muita simpatia por ela. Em
lugar dos rituais e rotinas do claustro, centros de toda a variedade de
hipocrisia e corrupção naqueles dias, ele procurava um principio mais profundo
de paz e harmonia, que subscrevesse todas as formas que pudessem tomar. Ele
amou Ovídio, porque “a sua pena nunca foi tingida, em parte alguma, por sangue”
e foi atraído para as cartas cosmopolitas de Jerônimo, mas foi tocado
profundamente por Lorenzo Valla, cujo tratado em estilo latino se tornou uma
bíblia para os humanistas. Anti clerical e não dogmático, o Cristianismo de
Valla era moral e humanitário, e embora um mestre de teologia, era indiferente
a credo e ritual e rejeitou a teologia escolástica a favor dos Evangelhos e dos
primitivos padres da igreja. Ele teve sérias dúvidas sobre o valor do monasticismo
como pratica de clausura em lugar de um ideal espiritual. Do mesmo modo que
Nicolau de Cusa ousou mostrar que os Decretals[‡]
de Isidoro eram fabricações, também Valla demonstrou em 1440 que a Doação de
Constantino, dando ao Bispo de Roma precedência sobre todos os outros, era uma
mistificação. Ele assegurou que os primeiros doutores da igreja eram abelhas
fazendo mel enquanto que os do seu tempo eram vespas que roubam o grão. Erasmo
descobriu em Valla a arte sutil por meio da qual a delicadeza e precisão de
expressão sustentam uma consciência mais ampla e mais tolerante, tendo
absorvido as idéias de Valla e assumindo-as como dele próprio.
Erasmo teve experiência com a
música em Deventer e experimentou a pintura em Steyn, e se o tríptico[§]
que lhe é atribuído é autêntico, ele demonstrou ser uma grande promessa naquela
direção. O uso criativo de palavras, contudo, trouxe Erasmo para a vida.
Desiludido por uma existência monástica, que nunca quis, Erasmo pegou uma
oportunidade para se tornar o secretário de Henry de Bergen, bispo de Cambrai,
e viver a vida da corte em Groenendael e Borgonha. Em 1492, logo após se ter
ligado ao bispo, foi ordenado padre. Entretanto, teve imenso tempo para ler,
achou que a vida da corte não era mais interessante que a do mosteiro e
solicitou a Henry que lhe permitisse estudar na Universidade de Paris. O Bispo
deu o seu consentimento, tendo-o provido com uma pequena pensão, e Erasmo
embrenhou-se na Universidade em extenso debate acerca do tema da concepção
imaculada da Virgem Maria. Embora ele obtivesse um bacharelato em Bíblia, achou
tais discussões tediosas, chamando aos teólogos que as continuavam “Theologasters”, que se julgavam
“inultrapassáveis por ninguém na escuridão dos seus cérebros, na barbaridade
dos seus discursos, na estupidez dos seus modos, na hipocrisia das suas vidas,
na violência da sua linguagem e na negritude dos seus corações”.
Para Erasmo, a teologia
escolástica representava uma corrupção intolerável da consciência: separando o
pensamento da vida, a mente é encorajada a sofisticar e a vida torna-se
hipócrita. Nem a profundidade espiritual dos ensinamentos de Jesus nem as
potencialidades dos seres humanos são realizadas em tais atividades. Em lugar
de procurar ensinar publicamente numa universidade que acabava de abandonar,
pois, no ponto de vista de Erasmo, Aquino[**]
era de difícil leitura e Duns Scotus[††]
fazia distinções desnecessárias nos seus argumentos, ele optou por ser
professor particular. A sua agradável urbanidade e brilhante sagacidade
atraíram estudantes de semelhantes características, incluindo um filho de James
III da Escócia, que veio a ser Arcebispo de St. Andrews, e William Bount,
quarto Barão Montjoy, mais tarde professor de Henry VIII. Lorde Mountjoy
convidou Erasmo para ir para a Inglaterra em 1499 e ele foi, em parte, por um
desejo de encontrar um modo de vida estável. Este relacionamento aumentou no
decorrer dos anos, e o barão concedeu a Erasmo uma pensão vitalícia de 20
libras anualmente. Durante o tempo que esteve na Inglaterra, Erasmo passou
vários meses em Oxford, onde fez amizade com John Colet, que apreciava a sua
interpretação da Bíblia e lhe ofereceu um cargo de professor na universidade.
Erasmo, porém, quis aprender a ler a Bíblia em Grego, um idioma que, na época,
não era lecionado em Oxford, e voltou a Paris em 1500. Ali, ele familiarizou-se
crescentemente com aquela língua, ao mesmo tempo que ensinava os estudantes e
escrevia ensaios e panegíricos de santos protetores. Ele fez amizade com o
futuro Papa Adriano VI e recebeu dádivas monetárias de Filipe da Borgonha. Em
1505, Lorde Mountjoy convidou novamente Erasmo para a Inglaterra, e em Londres
ele constituiu um circulo de amigos que incluía o arcebispo de Canterbury. John
Fisher, bispo de Rochester, que supervisionava a construção do Colégio de
Cristo para Lady Margaret, levou-o a Cambridge para uma visita ao rei. Ali, o
médico do rei incumbiu Erasmo para vigiar a educação de seus filhos na Itália.
Chegando a Itália em 1506, Erasmo orientou-se de modo a
visitar, em dois anos, as universidades principais, verificar o estudo de seus
estudantes na Bolonha, fazer um doutorado em divindade em Turim, e preparar a
publicação do seu Adagiorum
(provérbios) pelo grande editor veneziano Aldus Manutius. Consistindo em três
mil, duzentos e sessenta adágios, com ricos comentários que citam autores
clássicos e contemporâneos, o livro lançou Erasmo para a vanguarda do
conhecimento do Renascimento e do pensamento humanista. Alterado e aumentado
cada ano que passava, os Adágios tiveram sessenta e cinco edições durante a
vida do autor, e pelo menos 75 edições mais, naquele século, depois da sua
morte, tendo alcançado a forma final que englobava 4.151 provérbios, incluindo
os seus famosos ensaios literários sobre os males da guerra e das aparências enganadoras. Ridicularizando tradições sem
sentido, escarnecendo de pompas de todo o tipo, o livro tanto ridiculariza como
eleva, tanto usa racionalismos como risos. Utilizando uma teia de humor, ironia
e sátira, Erasmo fez a obra servir propósitos sérios. Num comentário sobre o
provérbio “Conversas maldosas corrompem um comportamento social cortês”, Erasmo
escreveu:
Enquanto toda a forma de contato e de relações tem um grande
efeito na melhoria ou na depravação da disposição dos mortais, a fala é a mais
influenciável de todas, pois ela vem dos mais secretos recessos da alma e traz
com ela uma força dupla e misteriosa. . . que derrama na mente do ouvinte em
que penetra, um veneno instantâneo se é perniciosa ou um remédio eficaz se é
saudável.
Ele acrescentou o ditado favorito de John Colet ao comentário:
“Nosso caráter é influenciado pela nossa conversação diária; nós crescemos de
conformidade com o que estamos acostumados a ouvir”. Embora prelados e
príncipes, estudiosos e sectários fossem envergonhados e ultrajados por
numerosas farpas satíricas e observações agudas abrigadas entre os Adágios,
cada qual achou o que foi dito sobre o
outro suficientemente divertido para impedir a formação de uma aliança para
suprimir o amaldiçoado documento. Um estado reformista condenou os Adágios, mas
foram divulgadas ilegalmente tantas cópias na área, que foi compelido a
publicar uma versão expurgada numa tentativa de diluir os efeitos.
Erasmo fez amigos íntimos no circulo de Aldus Manutius e foi
especialmente bem recebido entre os cardeais de Roma. Mas ele sentia que para
permanecer ali deveria esquecer os seus princípios básicos. Já em 1503 ele
tinha publicado o seu Enchiridion militis
Christiani, Manual do Cavaleiro Cristão, (brincando com a palavra enchiridion, que significa quer
‘manual’, quer ‘punhal’, e tomando o termo de Epictectus, o filósofo Estóico).
Neste, ele argüia que a vida humana é análoga à vida militar, na qual se deve
ser armado na maneira originalmente esboçada por São Paulo. Deve-se procurar
saber a diferença entre a verdade e a falsa sabedoria e compreender o contraste
entre o homem interno e o exterior. As aparências não são a realidade; jejuar,
por exemplo, quando empreendido para fins de busca egoísta, pode ser mais
carnal do que comer. O culto dos santos servem freqüentemente ao egoísmo.
Alguém adora São Roque – mas porquê? Porque ele pensa afugentar
a peste. Outro murmura orações a Santa Bárbara ou São Jorge, a fim de que não
caia nas mãos de um inimigo. Certo homem faz votos de jejum a Santa Apolônia
para escapar de dor de dentes; aquele outro contempla a imagem de São Job para
o livrar da coceira. . . . O verdadeiro caminho para adorar os santos é imitar
as suas virtudes, e eles gostam mais disto do que de centenas de velas. . . .
Veneram-se as relíquias de São Paulo jazendo num santuário, mas não a sua mente
imortalizada nos seus escritos.
Martinho Lutero estudou o Enchiridion
profundamente e adotou muitas das idéias ali expressas. Permanecer no meio de
muitas praticas ele detestava, apesar da lisonjeira apropriada, era mais do que
Erasmo poderia tolerar, e assim ele aceitou um convite de Lorde Mountjoy, que
teve um aluno que veio a ser Henry VIII, a regressar à Inglaterra. O arcebispo
de Canterbury pagou-lhe as despesas de viagem.
Durante quase uma década Erasmo floresceu na Inglaterra.
Provido com uma renda pelo arcebispo, recebendo o pagamento pelas suas
introduções a livros e lições em Cambridge, Erasmo começou a trabalhar
intensamente. Nesta altura, ele escreveu um comentário sobre o Novo Testamento
que foi considerado a fundação do criticismo bíblico, e editou as cartas de
Jerome e Sêneca. Entre os seus alunos de Cambridge contava-se William Tyndale
que mais tarde traduziu a Bíblia para o inglês. Enquanto em Londres, Erasmo
escreveu o seu trabalho mais famoso, Moriae
encomium (Elogio da Loucura), disposto na tradição clássica de adoxografia,
o tratamento pseudo sério de um assunto absurdo tal como em O Elogio da Nudez
de Synesius. A loucura exibe-se como um deus, descendendo do Inebriante e da
Ignorância, cujos companheiros fieis incluem Philautia (amor-próprio), Kolakia
(lisonja), Lethe (olvido, esquecimento), Misoponia (Ócio), Hedone (prazer),
Anoia (negligência), Tryphe (libertinagem), Komos (intemperança) e Eegretos
Hynos (sono de morte). Loucura, num discurso em frente dos deuses, reclama uma
mão dominando em todo o tipo de atividade humana, desde o negócio de príncipes
e comerciantes até a clérigos e mulheres, professores e sábios. Momus, o deus
da sabedoria primordial, foi atirado do céu porque fazia os deuses pouco
confortáveis.
Nem desde então qualquer mortal ousou dar-lhe abrigo, embora
deva confessar que ali o desejavam pouco, mas foi recebido nas cortes de
príncipes, não teve a minha companhia, pois Lisonja reinava ali principalmente.
A própria Natureza misturou um pouco de Loucura na sua
arquitetura.
Tão providente foi a Natureza, grande mãe da espécie humana,
que não deveria haver nada sem a mistura e o tempero da Loucura. . . . Júpiter.
. . confinou a razão num canto estreito do cérebro e deixou todo o resto do
corpo para as nossas paixões.
Embora ousando zombar de todos os
excessos humanos, Erasmo incluiu muita coisa nos seus temas, para fazer o
individuo sério pensar acerca do significado e propósito da existência humana.
No momento em que Erasmo partiu para o continente europeu para
ver seus mais sérios trabalhos publicados, ele era já famoso em todo o
continente. Os seus Adágios, Loucura e Colóquios – pequenos diálogos sobre vários
assuntos – eram quase de leitura obrigatória por quem se considerava educado. A
viagem que fez subindo o rio Reno foi semelhante a uma procissão triunfal, cada
cidade enviando os mais distintos cidadãos para o receberem. Ele podia agora
dar-se ao luxo de viajar livremente, visitar a Inglaterra várias vezes nos
próximos anos e perambular entre a Suíça e a Holanda. Contudo, a tensão
crescente, polarizada, por um lado no papado e, pelo outro em Lutero, fez a
vida suficientemente agourenta para Erasmo ficar dentro dos limites do Império
Romano – a Inquisição era bastante forte em qualquer lugar para o intimidar.
Como conselheiro do jovem Rei Charles, ele viajou para Bruxelas, onde passou
algum tempo em Louvain. Publicou anonimamente o livro Julius exclusus (Julius
Excluído do Céu), um dialogo satírico no qual o Papa Julius II discute com São
Pedro sobre o direito que tem de entrar no céu. Quando Julius encontra as
portas do céu fechadas, ele procura as chaves. O seu acompanhante Genius
sugere, “Você não abre esta porta, você sabe, com a mesma chave que abre o seu
cofre. . . . A chave que você tem aí é
a chave do poder político, não a do conhecimento”. Julius responde: “Bem, esta
é a única que sempre tive; e não vejo porque necessito da outra quando tenho
esta”. De imediato ele se volta para Paulo com ar fanfarrão: “Tendo descoberto
muitas novas, assim chamadas, bulas, eu alarguei o tesouro papal de modo não
muito pequeno”. E quando Pedro comenta as dificuldades da primitiva igreja em
face das bulas que enriquecem, Julius acrescentou: “Nenhuma admiração; por que
naqueles dias o lote e a recompensa dos bispos não era nada, apenas sofrimento,
vigílias, jejuns, estudos e, muitas vezes, a morte. Agora é um reino e uma
tirania. E quem não lutaria por um reino, se tivesse oportunidade?”
Desde o começo, muitos adivinharam o real autor de Julius.
Lutero achou-o “tão divertido, tão instrutivo e tão engenhoso, isto é, tão
inteiramente Erasmiano, que faz o leitor rir às custas dos vícios da igreja, sobre
a qual todo o cristão verdadeiro deveria queixar-se”. Em Basiléia, Johann
Froben levou a efeito a publicação de suas obras, e Erasmo estabeleceu-se lá,
embora continuasse viajando freqüentemente. Recebia presentes todos os
trimestres – do Papa Clemente VII, de Thomas Cromwell, do Arcebispo Cranmer. O
Duque da Bavária ofereceu-lhe um lugar de Professor catedrático na Universidade
de Ingolstadt, onde deveria ir freqüentemente, ficando livre dos deveres
próprios do titulo acadêmico. O Arquiduque Ferdinand ofereceu uma abastada
pensão se fosse residir para Viena, e promessas generosas vieram do Rei Francis
I e do Papa Adriano VI. Declinando todas as honras gratuitas, Erasmo veio a ser editor geral de Froben. Além das
suas próprias obras, ele superintendia as edições que eram impressas dos
primeiros escritores da igreja, incluindo obras de Jerônimo, Irenaeus,
Ambrósio, Agostinho, Chrisóstomo e Orígenes. Adicionalmente, ele escrevia,
tanto quanto, 40 cartas por dia, das quais mais de três mil sobreviveram, e
teve tempo para ser pintado e desenhado por artistas, incluindo Albrecht Durer,
cujos esboços e xilogravuras ainda persistem.
Quando Froben morreu em 1527, a Basiléia separou-se do Império
e religiosos fanáticos tomaram a cidade. Erasmo retirou-se para Freiburg em
Breisgau[‡‡],
onde foi bem recebido e lhe foi emprestada uma residência do anterior Imperador
Maximiliano. Erasmo louvou Lutero pela sua defesa de um Cristianismo
‘primitivo’ e a ênfase que deu aos princípios morais nos assuntos religiosos,
mas o fanatismo dogmático dos movimentos que cresciam ao redor da Reforma,
repeliram-no. Também não desejou defender as praticas corruptas da igreja, igualmente dogmáticas e deprimentes, em
menor grau nos mosteiros, que acreditava deveriam ser suprimidas. Lutero
admirava Erasmo e procurou conseguir o seu apoio para a causa Protestante. Ao
mesmo tempo, o papado queria ter a sua voz a seu lado. O Papa Paulo III
nomeou-o decano de Deventer e ofereceu-lhe a mitra de cardeal. Erasmo declinou
ambos, recusando ser cardeal, numa virada irônica da história, por justamente
as mesmas razões que conduziram Nicolau de Cusa a aceitar. Ele manteve-se
afastado da identificação com Lutero porque não via magnanimidade, tolerância
ou civilidade emergindo da Reforma. Quando Lutero escreveu, “Por que não
devemos atacar com todas as armas estes mestres da perdição, estes cardeais,
estes papas... e por que não devemos lavar nossas mãos nos seus sangues?”
Erasmo recuou com horror das implicações desta atitude. “É para isto”, ele
escreveu para Melanchthon, que nós derrubamos bispos e papas, para ficarmos
debaixo do jugo de loucos?”
Erasmo foi apanhado entre duas forças em briga, nenhuma das
quais compartilhava o seu sentimento pela palavra, Verbo, o seu respeito pela
liberdade humana e a profundidade do ensino que leva à integração e dignidade
do ser humano. A igreja Romana torceu a idéia de liberdade, enquanto Lutero
negava-a inteiramente. “Eu detesto os evangélicos”, concluiu Erasmo, porque é
através deles que a literatura está por todo o lado em declínio, e a ponto de
perecer”. Porque ele manteve a distância, ambos os lados o atacaram para dar a
parte oposta. Ele permaneceu só, representando aquela racionalidade fria, calma
e espiritual que busca entender sem preconceito e viver sem ser dirigido por emoções
efêmeras. Com a passagem dos anos ele retirou-se crescentemente para um pequeno
circulo de amigos íntimos, ligado com a relativa segurança da proteção do
império, preocupado com a degradação da situação e com a sua saúde. No final de
1535 foi compelido a ficar retido na cama, embora continuasse a escrever e a
editar. Talvez a execução de Thomas More em julho anterior, finalmente tenha
abalado a constituição delicada de Erasmo. “Com More, pareço ter morrido”,
escreveu Erasmo a um amigo, “Tanto faz, nós temos uma alma”.
No principio do
verão de 1536, Erasmo soube que estava morrendo. Ele escreveu algumas ultimas
cartas e preparou-se para a morte que não receava. Na noite do dia 11 de julho,
ele começou a repetir “Eu cantarei a clemência e o julgamento do Senhor!” e
recusou chamar um padre para se confessar e administrar a extrema unção. Com o
último alento articulou no idioma da sua infância, “Líber Gott” (Adorado Deus).
Ele morreu nem ao modo Católico nem ao modo Protestante, como para assinalar, mesmo
no fim, que existe um terceiro caminho entre aquelas duas oposições, um caminho
cujos blocos são a tolerância, cimentada pela caridade e assentada em linhas de
sabedoria. Ele ignorou as expectativas da herança e confiou os seus bens para
beneficio dos fracos, para jovens meninas que necessitavam de dotes e para a
educação de meninos. Embora, simultaneamente, procurado depois e posto em
dúvida pelos lideres em luta da época, ele elevou-se acima da divisão e do
conflito, sustentando o poder da harmonia, enraizado na verdade e na
honestidade, que foram a luz que o guiaram desde a infância. Os magistrados de
Basiléia deram-lhe um funeral magnificente, colocando o seu corpo na cripta da
catedral e erguendo uma estátua em sua honra numa praça pública. Os seus ideais
sobreviveram ao caos da época e nutriram o Iluminismo, que acarinhou os mais
profundos ideais da Renascença.
NOTAS:
* De Pueris Satim ac Liberaliter Instituendis(O Ensino de Crianças Firmemente,
mas Amavelmente, 1529).
[1]AGOSTINIANO adj. e s.m. Relativo a Santo Agostinho. /
Que adota a teoria de Santo Agostinho sobre a graça: diziam-se agostinianos
os jansenistas.
AGOSTINHO (Santo), bispo de Hipona, filho
de Santa Mônica (Tagaste [hoje SouqAras], Argélia, 354 - Hipona, Numídia, 430).
Foi um dos principais líderes da antiga igreja cristã.
Suas obras escritas tiveram grande
influência sobre o pensamento religioso medieval. Suas idéias também estavam
presentes nos ensinamentos de Calvino, Lutero e outros reformadores protestantes.
Ele influenciou filósofos como Kant e Pascal.
Sua Vida. Agostinho
nasceu em Tagaste, uma cidade no norte da África, perto da atual Constantina,
Argélia. Seu nome em latim era Aurelius Augustinus. Sua mãe,
Santa Mônica, era uma cristã devotada. Seu pai era pagão. Enquanto jovem,
Agostinho buscou o sucesso material e foi atraído para vários movimentos não
cristãos. Ele descreveu sua juventude e seus conflitos espirituais em Confissões,
uma das primeiras grandes autobiografias.
No começo da década de 380, Agostinho
ensinou retórica em Cartago, em Roma e depois em Milão. Alguns amigos em Milão
estimularam-no a ler os trabalhos dos filósofos gregos chamados neoplatônicos.
Essas obras e os sermões de Santo Ambrósio, bispo de Milão, convenceram
Agostinho a aceitar o cristianismo. Em 386, ele passou a dedicar-se à causa da
fé e, no ano seguinte, foi batizado por Ambrósio.
Pouco depois, Agostinho voltou para
Tagaste, onde organizou uma comunidade de monges. Em 391, ele viajou para perto
de Hipona. Lá, a congregação cristã convenceu-o a ficar. Ele foi ordenado padre
em Hipona, em 391. De 396 até sua morte, Agostinho foi bispo de Hipona.
Suas Convicções podem ser
divididas em três grupos principais: Deus e a alma, pecado e graça, e a igreja
e os sacramentos.
Deus e a Alma. Os estudos de
Agostinho sobre o neoplatonismo convenceram-no de que Deus existia na alma de
todos os seres humanos. Ele acreditava que as pessoas deviam dirigir sua
atenção para Deus, em vez de serem absorvidas pelas preocupações e prazeres do
mundo.
Pecado e Graça.Agostinho dizia
que as pessoas não poderiam mudar seu comportamento pecaminoso a menos que
ajudadas pela graça de Deus. Ele acreditava que Deus escolhia apenas alguns
indivíduos para receber Sua graça. Essa convicção faz parte de uma doutrina
chamada de predestinação.
A Igreja e os Sacramentos.Agostinho
acreditava que as pessoas não poderiam receber a graça de Deus a menos que
pertencessem à igreja e recebessem os sacramentos. Um grupo de clérigos no
norte da África dizia que a graça somente poderia ser dada se o clero em si
fosse perfeito. Mas Agostinho declarou que Deus poderia contornar as fraquezas
humanas através dos sacramentos. O mais extenso livro de Agostinho, Cidade
de Deus, conta a história da humanidade como um conflito entre os que
dependem de Deus e os que confiam em si mesmos.
[†] DECRETAL - Carta pontifícia em
resposta a consulta sobre matéria moral ou jurídica.
[§] TRÍPTICO - Quadro pintado em três
panos de modo que os dois exteriores podem dobrar-se sobre o do meio.
[**]TOMÁS DE AQUINO
(Santo),teólogo e filósofo da Igreja cristã (castelo de Roccasecca, 1225 -
Fossanova, 1274). É chamado Doctor Angelicus (Doutor Angélico) e
equipara-se a Santo Agostinho em importância.
Obras.
Santo Tomás de Aquino viveu em um século de grande controvérsia intelectual
provocada pela recuperação da obra de Aristóteles. Aceitou o que para ele era
verdadeiro nos estudos de Aristóteles, mas assinalou erros e construiu seu
grande trabalho a partir de uma combinação do pensamento aristotélico e da revelação
cristã. Afirmava não haver conflito entre a fé e a razão. Sustentava que a
filosofia se baseia na razão e a teologia na revelação da palavra de Deus. Como
Deus não pode errar, quaisquer discordância entre as conclusões filosóficas e
as verdades da revelação devem originar-se de um erro de raciocínio.
Tomás de Aquino escreveu vários livros. Entre suas obras, encontram-se
seus Comentários sobre o livro das sentenças, de Pedro Lombardo, sobre a
Bíblia e as obras de Aristóteles. Seus maiores trabalhos são a Suma contra
os gentios e a Suma teológica. O primeiro destinava-se a auxiliar os
missionários na conversão dos mouros da Espanha. O livro ataca a filosofia
naturalista dos muçulmanos cultos. Santo Tomás mostra também que a fé baseia-se
em um fundamento racional e que a filosofia não entra em conflito com o
cristianismo.
A Suma teológica é uma exposição sistemática do pensamento
cristão. A primeira de suas três partes trata de Deus e da criação, da natureza
humana e da vida intelectual do homem. A segunda ocupa-se do objetivo final do
homem e de virtudes e vícios. A terceira, inacabada, trata de Cristo e dos
sacramentos. Tomás de Aquino parou de escrevê-la em 1273, quando passou a
acreditar que tudo que escrevera não era nada "comparado com o que vi e o
que me foi revelado".
Vida.
Tomás de Aquino nasceu perto de Aquino, na província de Nápoles, Itália.
Freqüentou a universidade de Nápoles em 1239 e, então, decidiu entrar para a
ordem dos dominicanos. Sua família opôs-se tão ferozmente à idéia, que seus irmãos
o seqüestraram quando viajava para a França e o mantiveram encarcerado durante
um ano. Depois de sua libertação, Tomás de Aquino viajou para Paris em 1245 a
fim de estudar com Alberto Magno. Quando Alberto Magno partiu para Colônia,
Tomás o acompanhou. Em 1252, voltou para Paris para fazer conferências. Tomás
de Aquino organizou a escola de teologia dominicana em Nápoles. Morreu a
caminho do Concílio de Lyon. O Papa João XXII canonizou-o em 1323.
[††] DUNS SCOT ou SCOTUS (John), teólogo
escocês (Duns, Escócia, c. 1266 - Colônia, 1308). Sacerdote da Igreja Católica
e um dos grandes pensadores da Idade Média. Sabe-se que entrou para a ordem
franciscana, estudou em Oxford e, em 1301, tornou-se professor de teologia
dessa universidade. Ele defendia a doutrina da Imaculada Conceição contra a
opinião contrária de Tomás de Aquino, um notável estudioso dominicano. Duns
Scotus também é conhecido pelo título de Doctor Subtilis (Doutor Sutil).
Suas obras, que somente agora estão sendo editadas com comentários críticos,
combinam uma completa ortodoxia com uma surpreendente independência de
pensamento. Ele escreveu sobre a Bíblia e sobre Aristóteles.
[‡‡]BREISGAU ou BRISGÓIA, região da Alemanha,
entre a Floresta Negra e o Reno. Cid. principal: Friburgo em Breisgau.