"As areias são cheias de maus espíritos e ventos ardentes, e todos
que os encontram morrem; ninguém sai ileso. Nenhum pássaro voa no céu, nenhum
animal corre pelo chão. Envesgue os olhos, olhe como se para as quatro
direções, e não encontrará lugar algum para onde ir, nada para guiá-lo. Só os
ossos secos dos mortos servem como marcos na estrada".
FA HSIEN
"Foi o Mestre Fa Hsien quem primeiro abriu a estrada através do
deserto".
I Ching
Os ensinamentos de Buddha entraram na China ao longo da Rota da Seda, que
passava através dos reinos do noroeste indiano, pelo Pamir e pelo Deserto do
Takla Makan, por Tun-huang até Ch'ang-an. Pelo início do século V, grandes
luminares haviam trazido a buddhavachana,
a palavra de Buddha, para o norte e centro da China, estabeleceram comunidades
monásticas e traduziram textos sacros para o chinês. A esta altura o buddhadharma estava estabelecido na
China. Suas correntes engendraram entre
alguns monges um desejo de seguí-lo até suas origens indianas. Isoladamente ou
em grupos, monges rumaram para o oeste, através de terríveis ermos e desertos
em direção ao Pamir e ao país terreno do Buddha no sul. A maioria deles
desistiu da busca, parando em um ou outro reino-oásis ao longo do caminho, ou
mais provavelmente, morrendo antes de atingir sua meta. Fa Hsien foi um dos
primeiros a fazer todo o trajeto e voltar para casa, e foi o primeiro a deixar
sua história por escrito.
Fa Hsien nasceu em torno de 340 dC, na cidade de Wu-yang, na província de
Shansi. Todos os seus três irmãos mais velhos haviam morrido na infância, e
seus temerosos pais dedicaram-no ao serviço da comunidade Budista na esperança
de que ele pudesse obter alguma proteção divina. Quando ainda criança adoeceu
gravemente, e foi mandado para o mosteiro local para cuidados médicos e
espirituais. Ele logo se recuperou, mas recusou-se a voltar para casa,
declarando que queria se tornar um monge e servir o Buddha. Quando tinha dez
anos seu pai morreu, e um tio instou-o a deixar o mosteiro e ir viver com sua
mãe. Professando um profundo amor por ela, não obstante ele recusou, uma vez
que ele escolhera se tornar monge não só para satisfazer seu pai, mas para
renunciar ao mundo. Quando sua mãe morreu, alguns anos depois, ele providenciou
o funeral e cuidou meticulosamente de sua herança, mas imediatamente voltou ao
seu mosteiro.
Embora se tornasse um monge plenamente ordenado em torno dos vinte anos,
quase nada é conhecido de sua vida antes que ele partisse para a Índia. Por fim
ele chegou a Ch'ang-an e se familiarizou com todo o trabalho desenvolvido ali.
Tenha ou não encontrado Tao-an, ele estava profundamente ciente do interesse de
Tao-an em que a comunidade monástica tivesse seu próprio vinaya, ou conjunto de normas disciplinares. Ele provavelmente
soube que Kumarajiva havia tentado vir a Ch'ang-an, mas aparentemente não
percebeu que o grande tradutor possuía todo o vinaya Sarvastivadin. Mesmo se o soubesse, ele teria de esperar
muitos anos se passarem antes de poder ver Kumarajiva livre do cativeiro de Lu
Kuang, em Ku-tsang. Em 399 Fa Hsien decidiu viajar para a Índia para obter uma
cópia do vinaya. Ironicamente, antes
de atingir seu objetivo, Kumarajiva havia entrado em Ch'ang-an e começado a
traduzir as regras de disciplina para o chinês. Para grande benefício da
história, contudo, Fa Hsien fez um relato de sua viagem, que sobrevive como o
único registro do mundo Budista então florescente na Índia e na Ásia Central. O
relato que ele considerava apenas incidental em relação à sua obra maior acabou
se tornando um tesouro precioso para o futuro. Ao mesmo tempo em que partira
primariamente em busca de um texto completo do vinaya e de outras escrituras Budistas, ele também desejava
reverenciar em pessoa os lugares santificados pela presença do Buddha. É fácil
acreditar que sua audaciosa viagem se tornasse para ele um paralelo geográfico
dos perigosos estágios atravessados na senda da Iluminação.
Pode-se imaginar a vibração que uma viagem destas magnitude representaria
para um jovem enérgico excitado pela perspectiva de explorar lugares
desconhecidos e desvendar reinos exóticos em nome de uma busca espiritual. Mas
Fa Hsien não era jovem. Tendo passado uma vida no Sangha chinês, ele tinha em
torno de sessenta anos quando partiu de Ch'ang-an. De um ponto de vista prático,
uma viagem destas para um indivíduo com sua idade avançada devia ter parecido
sem esperança, mas a importância de sua missão levou-o a partir, e ele jamais
olhou para trás mesmo quando outros morriam ou desistiam do esforço ao longo do
caminho. O único fator a seu favor era ser monge, o que serviu como um
passaporte através dos vinte e dois reinos por onde passou, cada qual o
acolhendo e ajudando com orientação e mantimentos. Talvez porque os
ensinamentos Budistas prevaleciam em toda parte por onde viajou, ele não
testemunhou nem guerra nem ação militar de nenhum tipo - uma experiência
virtualmente única na história das áreas que ele visitou.
Na primavera de 399 Fa Hsien e um pequeno grupo de monges saiu de
Ch'ang-an em direção à Índia. Viajando para o oeste, eles atravessaram as
montanhas Lung e entraram em Ch'ien-kuei, onde observaram o tradicional retiro
de verão. Quando se moveram novamente para o oeste, através de Nu-t'an e das
montanhas Yang-lou, chegaram a Chang-yeh, um distante entreposto chinês. Lá encontraram
um outro grupo de monges que havia partido com o mesmo objetivo, e se uniram
todos na viagem para a Índia. Chegando em Tun-huang, o limite ocidental extremo
da influência chinesa, foram recebidos pelo prefeito Li Sung, que generosamente
os abasteceu para os rigores absolutos do deserto de Gobi que estava à sua
frente. A primeira das renomadas grutas-templo de Tun-huang havia sido ocupada
por monges Budistas cerca de trinta anos antes da chegada de Fa Hsien, e ele
vislumbrou o magnífico centro que se tornaria. Talvez ele tenha mesmo
encontrado alguns poucos dos primeiros Cristãos Nestorianos que eventualmente
encontraram refúgio ali, mas os Zoroastrianos refugiados da perseguição
Islâmica não apareceriam senão depois de vários séculos. Tun-huang se tornara
um porto não só para viajantes Budistas mas também para peregrinos de muitos
credos, e no início do século XX foram encontrados cerca de vinte mil
manuscritos cuidadosamente preservados e escondidos, incluindo textos sacros
Budistas, Nestorianos, Zoroastrianos e Taoístas.
Mesmo com o apoio do prefeito Li, era preciso muita coragem para seguir
através de um deserto cujos marcos de viagem consistiam somente dos "ossos
secos dos mortos". Depois de dezessete árduos e terríveis dias, o grupo
chegou ao reino-oásis de Shan-shan, perto do Lago Lop Nor, e se encontraram
novamente entre mãos Budistas amistosas e auxiliadoras. Isto foi o início da
descoberta de Fa Hsien de que os reinos adjacentes poderiam seguir
alternativamente as práticas Mahayana ou Hinayana (o assim chamado Budismo do
sul ou Theravada), ao mesmo tempo em que viviam lado a lado com respeito,
amizade a apoio mútuo. A despeito do pequeno tamanho de Shan-shan, ele
sustentava em torno de quatro mil monges. Quando ele passou para o noroeste, para
Wu-i (Karashahr), uma custosa viagem, ele encontrou outros quatro mil monges
sustentados pelo reino e praticando estritas disciplinas monásticas.
Voltando-se para o sul, Fa Hsien chegou a Khotan (Ho-t'ien), o mais rico
reino do sul da Rota da Seda naquela época e o complemento da Kucha nativa de
Kumarajiva na rota norte. Ele ficou deslumbrado com o que viu.
"A terra é extremamente próspera e feliz, e seu povo é numeroso e
desenvolvido. Todos são seguidores do buddhadharma
e se deleitam em praticar seus ensinamentos. Os monges chegam a dezenas de
milhares, e sua maioria é dedicada ao Mahayana. Todos eles recebem comida e
esmolas do governante do reino. As pessoas do governo vivem aqui e ali como
miríade de estrelas, e cada casa tem uma pequena stupa ou pagode erguido em frente ao seu portão".
Fa Hsien viu em Khotan um reino Budista quase utópico, pacífico, próspero
e piedoso. Tendo vindo de uma nação há muito tempo envolvida em guerras consigo
mesma e com outros, a calma e graciosa atmosfera de Khotan comoveu-o
profundamente. Embora escrevesse sobre sua viagem em um estilo direto - o livro
não era de grande importância para ele, um observador perspicaz dos seres
humanos e suas instituições - suas observações de Khotan não eram nem
simplistas nem românticas, pois ele permaneceu no reino durante três meses,
ostensivamente para assistir a um grande festival, mas também porque ele
admirara a pacífica espiritualidade do local.
Um outro monge uniu-se ao grupo de Fa Hsien em Khotan, e juntos os onze
monges viajaram por vinte e cinco dias através do deserto do Takla Makan antes
de chegarem ao oásis de Karghalik. Embora fosse um reino pequeno, seu
governante Budista sustentava mil monges Mahayana e voluntariamente ajudou Fa
Hsien a se preparar para cruzar o Pamir. Levando quinze dias para se
aprontarem, o pequeno grupo partiu para o planalto do Pamir, cuja altitude
média está acima dos 3.600 metros.
"O Pamir é coberto de neve tanto no inverno como no verão. É
habitado por dragões peçonhentos. Se alguém atiça o mau-humor dos dragões eles
imediatamente invocarão ventos infectos, farão cair neve ou chuvas de areia, ou
saraivadas de cascalhos e pedras. Das pessoas que enfrentaram tais
dificuldades, mal uma em mil saiu sem ferimentos. Os nativos da região chamam
os dragões peçonhentos de Povo das Montanhas Nevadas".
Embora uma tal jornada fosse assustadora para quem quer que se arriscasse
a empreendê-la, pode-se apenas imaginar a luz da audácia brilhando no coração
de Fa Hsien, impelindo-o para diante quando ele já tinha cerca de sessenta anos
de idade.
No caminho, pararam em Mamuk para o retiro de verão, depois seguiram em
frente até Tashkurghan no Afeganistão, onde testemunharam o rei sentado em uma
esteira e ouvindo os discursos de monges entronizados. Deixando estes reinos
Mahayana, ele por fim chegou a T'o-li ou Darel, um reino Hinayana que
assinalava a região mais ao norte da Índia. Porém sua extraordinária viagem
ainda não havia se completado, pois ainda lhe esperava a famosa Passagem
Suspensa através das gargantas do rio Indo superior.
"A passagem é precária e as rochas e escarpas são agudas, as
montanhas formam paredes de pedra que mergulham centenas de metros no vale
abaixo. Olhando para baixo fica-se com vertigens, e quando se tenta ir adiante
não se encontra onde colocar o pé".
Atravessar a Passagem Suspensa requeria cruzar setecentas escadarias,
conjuntos de marcas de pé escavadas na rocha nua à beira do precipício, além de
pontes suspensas. Mas quando ele chegou à planície Gandhara abaixo, ele soube
que verdadeiramente havia colocado os pés no solo sagrado da Mãe Índia. Seu
grupo visitou Udayana, Swat e Taxila, onde muitos séculos antes Apolônio de
Tíana havia aprendido com os Dezoito Sábios. Quando chegaram a Peshawar,
diversos monges decidiram voltar. Um deles, Pao-yun, conseguiu retornar a
Ch'ang-an e encontrou Fa Hsien alguns anos mais tarde.
Depois de se despedir daqueles que optaram por voltar á China, Fa Hsien e
seu reduzido grupo foram para Nagarahara (perto da moderna Jalalabad), onde
passaram o inverno à espera de atravessarem a cordilheira Safed Koh (Montanha
Branca). Embora dificilmente tão formidável quanto as outras cordilheiras que
já haviam cruzado, o clima da Safed Koh podia ser traiçoeiro. Quando realmente
iniciaram sua travessia pelas montanhas, fortes ventos gelados fustigaram-nos
de todos os lados. Hui-ching, que havia acompanhado Fa Hsien desde Ch'ang-an,
subitamente caiu doente e logo morreu nas montanhas. Chorando amargurado, Fa
Hsien lamentou o destino de Hui-ching, pois ele chegara até tão longe e foi-lhe
negada a oportunidade de ver o lugar de nascimento do Buddha. Indo para o sul,
Fa Hsien entrou no centro-norte da Índia, onde o tempo ficou melhor e a viagem
se tornou relativamente fácil, para grande alívio de todo o grupo.
Fa Hsien descobriu que Mathura, governada por uma realeza Budista, era
próspera e pacífica. Ele ficou especialmente impressionado com o modo que os
ensinamentos de Buddha haviam sido traduzidos em leis e instituições. Os
cidadãos não eram obrigados a se registrar junto ao governo e eram livres para
se deslocarem à vontade e morar onde bem entendessem. Também eram livres para
desbravarem novas terras para cultivo. A pena de morte era desconhecida e a
maioria dos crimes era punida com multas. A população em geral não comia carne
e se abstinha de bebidas alcoólicas. Numerosas escolas tinham seus seguidores
entre os três mil monges que ele encontrou ali. Havia stupas dedicadas aos maiores discípulos de Buddha - para Sariputra,
"primeiro na sabedoria", para Maudgalyayana, "primeiro em
poderes mágicos", e para Ananda, especialmente venerado pelas monjas, uma
vez que Ananda era reputado como tendo sido o primeiro a pedir ao Buddha que
permitisse às mulheres entrarem no Sangha.
Ele também descobriu que Manjushri e Avalokiteshvara eram venerados como
grandes Bodhisattvas, e que prajna, a
sabedoria perfeita, era tida como o mais alto ideal em direção ao qual um monge
ou monja poderia se dedicar.
A seguir Fa Hsien visitou Sankisa, um pequeno reino no qual monges e
monjas comiam juntos e estudavam tanto as escrituras Mahayana como as Hinayana.
Mais adiante ele chegou em Kanauj, cujos estabelecimentos monásticos eram
devotados aos ensinamentos Hinayana. Seguindo em frente, ele chegou a Savatthi
(Adyodhya), capital de Koshala e local da Gruta Jetavana, onde Buddha ensinou
por quase vinte e cinco anos. Ele escreveu sobre esta experiência na terceira
pessoa:
"Quando Fa Hsien e Tao-cheng chegaram no Mosteiro Jetavana,
lembraram que Aquele que é Honrado pelo Mundo vivera ali por vinte e cinco
anos, Eles mesmos haviam nascido em uma distante região bárbara e com seus
companheiros haviam viajado de país em país. Ao longo do caminho, alguns dos
membros de seu grupo haviam voltado à China, enquanto que outros, como
recordaram com tristeza, haviam perecido no caminho. E agora, quando chegavam
neste local e contemplavam os remanescentes do lugar onde Buddha havia uma vez
estado, se encheram de mágoa e lamentaram em seus corações".
Koshala havia uma vez sido um grande reino e Savatthi uma cidade
florescente, mas a guerra e a disputa religiosa depois do passamento de Buddha
haviam corroído a prosperidade de Koshala, e Fa Hsien mal encontrou duzentas
casas entre as ruínas da cidade. Cheio de pesar, Fa Hsien refletiu sobre a
impermanência de todas as coisas.
Viajando para o leste ele chegou a Kapilavastu, onde Buddha havia
nascido. "Na cidade não havia sinal de um governante ou de súditos,
estando tudo reduzido a ruínas". Mais ao leste ele visitou os jardins
reais de Lumbini, onde a rainha Maya havia dado à luz Buddha, e lá recolheram
água da fonte que a havia refrescado. Então viram Kushinagara, onde Buddha
entrou em paranirvana e passou para além da cena terrestre, e Vaishali
(Vesali), onde ele ensinou o povo Licchavi. Para Fa Hsien, visitar estes
lugares era o cumprimento de uma peregrinação santa, apesar do fato de eles
serem apenas esparsamente habitados em estarem em ruínas os tornar mais
relíquias a serem veneradas do que centros vivos onde se alegrar.
Fa Hsien deleitou-se quando entrou no reino de Maghada. Dos dezesseis
reinos mencionados na escritura Budista terem existido no tempo de Buddha,
Maghada foi o mais receptivo aos seus ensinamentos. O rei Bimbisara era um
discípulo leigo que ouvia atentamente os discursos de Buddha, e o rei Ajatashatru,
seu filho e sucessor, patrocinou o Sangha
durante os últimos anos de Buddha e depois de sua morte. Ele também lançou uma
enérgica política de expansão e unificação que culminou no reinado de Ashoka,
da dinastia Maurya, sobre quase todo o subcontinente indiano. A pronta
receptividade de Maghada aos princípios Budistas encontrou fruição no método de
governo do rei Ashoka. Ele renunciou à guerra como instrumento de política
estatal, construiu hospitais gratuitos e casas de pouso, subsidiou um sistema de
seguro social, e estabeleceu a tolerância religiosa e a honestidade na
administração. Seis séculos depois do notável governo do rei Ashoka, Fa Hsien
encontrou sua capital, Pataliputra, florescendo como uma das maiores cidades da
Índia.
"O palácio real e edifícios de Ashoka no centro da cidade, que
existem ainda como antigamente, foram todos feitos pelos espíritos que ele
empregava, e que empilharam pedras, ergueram muros e portões, e executaram as
elegantes esculturas e relevos - tudo de uma forma que nenhuma mão humana
poderia ter realizado...
"Próximo à stupa de Ashoka
foi construído um mosteiro Mahayana, muito grande e belo. Aqui também se
encontra um mosteiro Hinayana, e os dois juntos contêm seis ou sete mil monges.
Suas regras de comportamento e escolas são dignas de nota... Também reside no
mosteiro um instrutor Brâmane, de nome Manjushri, a quem honram e procuram os
hindus de grande virtude, bem como os monges Mahayana".
Fa Hsien deleitava-se de ver a política de tolerância universal de Ashoka
ativamente continuada na capital, e ficou pasmo de descobrir enormes somas
destinadas à generosidade e boas obras. "Os habitantes são ricos",
escreveu ele, "e rivalizam entre si na prática da benevolência e da
justiça". Enquanto em Pataliputra ele presenciou um maravilhoso festival.
Foram construídos enormes carros, cada um no formato de uma stupa. Devas feitos de ouro, prata e lápis-lazúli, e cobertos de cachemira
e seda adornavam todo o edifício móvel, e um Buddha com um Bodhisattva auxiliar
ficavam em cada um de seus lados. Ao todo cerca de vinte destes carros foram
construídos, e então monges e leigos de todo o reino se reuniram em Pataliputra
e reverenciaram as imagens neles. Quando isto acabou, uma delegação de Brâmanes
se dirigiu às stupas e convidou os
Buddhas a entrar na cidade, onde foram entretidos com música e oferendas
durante duas noites. Enquanto isso, as principais famílias Vaishya criaram
casas abertas onde o povo podia chegar para receber comida, roupas e tratamento
médico, tudo isto dado gratuitamente. Fa Hsien estava atônito com a unidade
espiritual que encontrara entre as religiões e seitas de Magadha.
Fa Hsien viajou então para Rajagriha, a capital de Magadha nos dias do
rei Bimbisara, e para o Monte Gridhrakuta ou Pico dos Abutres que fica nas
redondezas, onde Buddha havia pronunciado alguns discursos. Ele também viu a
Gruta Sattapani, onde, depois do paranirvana de Buddha, reuniu-se o Primeiro
Concílio para fixar seus ensinamentos nas mentes. Ali Ananda relembrou tudo o
que havia escutado Buddha dizer. Fa Hsien acorreu então para Bodh Gaya, o local
da Iluminação de Buddha, e para o Parque das Gazelas, em Sarnath (perto de
Benares), onde foram proferidos os primeiros discursos. Fa Hsien tinha agora
quase setenta anos e sabia que devia pensar em voltar à China. Ele havia
encontrado em Pataliputra o desejado vinaya
que procurava e levara tempo para aprender sua linguagem. Foi o texto usado
pela escola Mahasanghika, e ele mais tarde encontrou uma versão Sarvastivadin
do vinaya, bem como uma cópia do Sutra Maha Paranirvana.
Fa Hsien encaminhou-se ao longo do Ganges para Tamralipti, em cujo porto
marítimo ele passou dois anos traduzindo os textos que conseguira. Então ele
adquiriu passagem em um navio e foi para Sri Lanka, onde permaneceu mais dois
anos, estudando as escrituras de lá e adquirindo uma cópia do vinaya Mahishasaka e alguns textos
Sarvastivadin. Só então ele embarcou para a China, uma viagem que era quase tão
perigosa como seu périplo Asiático para a Índia. Uma tempestade desviou o navio
para uma ilha, provavelmente Java ou talvez Sumatra, e ele teve de tomar outro
navio para Cantão. Também este navio padeceu com as tormentas e enfim encontrou
um porto, não no sul da China, mas algures na península de Shantung. De lá ele
tomou rumo sul até Chien-k'ang (agora Nanking).
Quando Pao-yun deixou Fa Hsien em Peshawar, voltou para Ch'ang-an, onde
se tornou um discípulo de Buddhabhadra, um monge indiano que foi para a China
em 406. Depois Buddhabhadra deslocou-se para Chien-k'ang e ali morou permanentemente
em um templo, com Pao-yun como seu devoto assistente. Quando Fa Hsien chegou em
Chien-k'ang, em torno de 416, ele entrou naquele templo e encontrou Pao-yun. Só
podemos supor as comoventes palavras que eles podem ter trocado nesta notável
reunião. Fa Hsien permaneceu em Chien-k'ang pelo resto de sua vida para
traduzir os textos que obtivera na Índia, passando do mundo da existência
condicionada quando já estava bem entrado nos seus oitenta anos. O discípulo
que encorajou Fa Hsien a escrever um breve relato de suas viagens não nos
deixou seu nome. Mas sua breve conclusão à obra expressa sua própria devoção a
Fa Hsien e resume também o que as gerações subseqüentes vieram a sentir.
"Este homem é um daqueles que raramente se viu desde os tempos antigos
até os dias de hoje. Desde que a Grande Doutrina fluiu para o Oriente, não
houve ninguém que se comparasse a Fa Hsien no esquecimento do eu e busca pela
Lei. Doravante eu sei que a influência da sinceridade não conhece obstáculo que
não suplante, por maior que seja, e que a força de vontade não falha em acabar
qualquer serviço que empreenda. O sucesso de um tal serviço não surge do
esquecimento do que é geralmente considerado importante e da atribuição de
importância ao que geralmente é esquecido?"
"As obras não prendem aquele que renuncia a todos os atos através da
yoga, aquele que pela sabedoria despojou-se de todas as dúvidas, aquele que
domina a si mesmo, oh Dhananjaya".
Bhagavad-Gita, IV, 41
SHRI KRISHNA
OM