"O fato é que aquele
cujo propósito é saber qualquer coisa melhor do que a multidão deve ultrapassar
em muito todos os outros, tanto em sua natureza como em seu treinamento
precoce. E quando ele chega à primeira adolescência ele deve se tornar imbuído
de um ardente amor pela verdade, como um inspirado; nem um dia ou noite ele
pode deixar de incitar-se e esforçar-se a fim de aprender completamente tudo o
que tenha sido dito pelos mais ilustres Antigos. E quando ele o tiver
aprendido, então por um longo período ele deve testar e prová-lo, observando
qual parte está de acordo e qual em desacordo com os fatos óbvios. Assim ele
escolherá uma coisa e rejeitará outra".
Peri Physikon Dynameon III, 10
GALENO
Pérgamo emergiu rapidamente no mundo Helenístico depois
que Átalos I Sóter derrotou os Gálatas invasores, em 235 aC. Apesar de que sua
aliança com Roma levasse á absorção de Pérgamo pelo império em 133 aC,
possibilitou a Átalos e seus sucessores fazerem de sua cidade a maravilha da
Ásia Menor. Sua localização protegida por colinas, dispondo de rios e vales
férteis, abriu espaço para inspirada arquitetura e sustentou uma agricultura
grandemente diversificada. Eumenes II, filho e sucessor de Átalos, estabeleceu
uma biblioteca planejada para rivalizar com a de Alexandria. Embora nunca
atingisse tal nível, chegou perto o bastante para alarmar os Ptolomeus, que
proibiram a exportação de papiros para impedir o crescimento da biblioteca de
Pérgamo. Em resposta, os artesãos de Pérgamo desenvolveram os 'charta pergamena',
peles de animais especialmente tratadas que evoluíram até o pergaminho dos
séculos posteriores. Quando eruditos fugiam do tumultos políticos que
periodicamente irrompiam em Alexandria, mais freqüentemente iam para Pérgamo.
Ergueu-se um grande 'Asclepieion', ou templo de cura, do outro lado do rio
defronte ao centro da cidade, e como hospital e lugar sagrado, desenvolveu-se
como principal centro de Esculápio (ou Asclépios, filho de Apolo e pai de
Higéia, deusa da saúde), assim como Delfos era especialmente dedicada a Apolo,
Elêusis a Deméter e Éfeso a Ártemis. Pérgamo se tornou uma cidade onde a
prosperidade econômica, a cultura clássica e as artes curativas se mesclaram,
como se fossem destinadas a prover o berço e lar de Galeno, o maior médico do
mundo antigo.
Galeno nasceu em 130 aC em uma florescente propriedade rural entre
Pérgamo e o mar. Seu pai, Nikon, era arquiteto, matemático e um conhecido
praticante de criação racional de animais, e sua mãe era irascível e belicosa,
um temperamento salientado pelo contraste com a natureza amável de seu marido.
'Galenos', sereno, foi o nome escolhido para a criança, talvez para direcionar
seu caráter, embora falhasse em indicar sua capacidade de concentração intensa
e sua impaciência com pontos de vista dogmáticos. À medida que Galeno crescia,
ia aprendendo matemática, astronomia, agricultura e criação racional de animais
de seu pai, mas freqüentemente visitava a cidade e cresceu acostumado aos seus
hábitos. Ele assistiu à construção de um novo e maior Asclepieion no lugar do
antigo templo de cura e maravilhou-se com o seu esplendor. Uma estrada calçada
de um quilômetro, ligava a cidade e sua entrada monumental. Dentro de seus
enormes muros com colunas ficava um templo modelado a partir do Panteão, um grande
berçário circular, um teatro, um templo dedicado a Adriano, um altar para
Ártemis e Higéia Elétia (deusa do parto), e uma fonte sagrada com seu templo.
Uma passagem subterrânea ligava o berçário com o centro da praça, talvez para
funções religiosas em torno do parto. Na altura em que Galeno estava pronto
para iniciar os estudos formais na cidade, com a idade de quatorze anos, os
edifícios sacros estavam prontos.
Nikon desejava uma carreira pública para seu filho. Além de ensinar-lhe
muitas coisas a respeito da Natureza e estimular seu interesse pela ciência,
Nikon procurou imbuir em Galeno uma abertura mental e uma capacidade de
apreciação de diferentes pontos de vista. Galeno assistia às palestras dadas
pelos expoentes das quatro escolas de pensamento aceitas: a de Platão,
Aristóteles, dos Estóicos e de Epicuro. Enquanto assistia igualmente a cada
escola, seu precoce treinamento matemático fê-lo admirar-se das incertezas
implícitas nos argumentos e explicações conflitantes. Ele poderia ter se
tornado um matemático, mas um sonho inspirado por Esculápio instou-o a estudar
medicina como um meio de descoberta da verdade e de usar seus diversos talentos
de um modo integrado. Ele iniciou estudos de anatomia com o anatomista Sátiro
de Esmirna, um homem de fama tal que era hóspede permanente de Rufino, o
arquiteto que restaurara e ampliara o Asclepieion. Quatro anos mais tarde Nikon
morreu, e Galeno sentiu-se livre para continuar seus estudos em outro lugar.
Ele viajou então para Esmirna para estudar com Pélops, e então para
Corinto, para trabalhar com Numisiano. Ele encontrou tempo também para
continuar seu treinamento filosófico com Albino, o Platônico. Na época em que
chegou a Alexandria, em 152 aC, ele já era um escritor cujos livros de anatomia
eram respeitados. Além de continuar seus estudos de anatomia em Alexandria com
Heracliano, vasculhou o Egito à procura de ervas e remédios, visitou
professores renomados e engajou-se em debates médicos e filosóficos. Em 158
voltou a Pérgamo, onde foi recebido com honras e indicado médico da 'schola
gladiatorum'. Assumindo a função de médico dos gladiadores, cujos ferimentos
eram diversos e terríveis, teve a oportunidade de comparar a anatomia humana
com a dos animais que ele estudara. Seu sucesso foi demonstrado pelo fato de
que foi indicado para o posto por quatro vezes consecutivas; ele poderia ter
continuado naquela função indefinidamente, não tivesse a guerra entre Pérgamo e
os Gálatas interrompido as lutas de gladiadores. Na ausência de trabalho
estimulante, Galeno decidiu visitar Roma.
Galeno chegou em Roma em 162, bem na ocasião em que Antonino Pio foi
sucedido por Marco Aurélio. Ele escrevia, era ativo nos círculos médicos e
assistia palestras de Eudemos, o Aristotélico. Altamente respeitado em uma
cidade de luminares intelectuais e científicos, foi chamado para atender
Eudemos quando este caiu doente. Logo os principais teóricos da medicina se
engajaram em calorosos debates sobre a causa da cura da moléstia. Galeno seguiu
seu método e Eudemos curou-se, mas Galeno havia incorrido em tamanha
animosidade que Eudemos advertiu-o sobre a possibilidade de assassinato. Galeno
pensou que seria melhor voltar a Pérgamo, onde poderia escrever e praticar em
paz, mas sua reputação em Roma aumentou em sua ausência, e logo Marco Aurélio
chamou-o de volta para ser o médico régio de seu filho, Cômodo, durante a
ausência do imperador nas guerras das fronteiras germânicas.
Como médico da corte, um posto que manteve até a sucessão de Cômodo em
180, Galeno encontrou tempo para refletir sobre o que havia aprendido e para
escrever alguns tratados sobre assuntos médicos e filosóficos. Quando um
incêndio destruiu o Templo da Paz na Via Sacra, em 192, perderam-se algumas
obras de Galeno. Talvez esta tragédia tenha representado um sinal para Galeno
retirar-se da vida pública, pois ele retirou-se para Pérgamo, onde viveu e
escreveu em paz e honra, evitando a confusão e os eventos incertos do final do
século. Pouco se sabe sobre estes seus últimos anos, exceto que morreu em 199,
tendo assegurado um lugar na história da filosofia e da medicina. Ele não
poderia saber que suas concepções forneceriam as bases para a medicina Islâmica
durante mais de mil anos, ou que o renascer do interesse pelo saber clássico
asseguraria sua autoridade na medicina da Europa até que Paracelso desse um
novo impulso aos estudos médicos.
Galeno foi um escritor prolífico e às vezes prolixo. Sobrevivem cento e
dezoito obras das setecentas que ele compôs. Perto do fim de sua vida já não
podia lembrar-se de todos os seus tratados. Ele sentiu a necessidade de
estabelecer uma bibliografia de seus trabalhos e compôs dois ensaios que a
ordenavam e comentavam sobre sua evolução ao longo de sua vida como pensador e
médico. Fazendo isso ele produziu a primeira autobiografia de um cientista e a
primeira bibliografia na história registrada. Em acréscimo, ele quase
casualmente revelou os ingredientes fundamentais de suas percepções e
influência subseqüente. Em primeiro lugar, ele continuou seu treinamento
filosófico durante toda sua vida. Ele privilegiava a lógica e a matemática em
seus estudos, mas demonstrou uma notável capacidade de mesclar a abertura
mental para com diferentes pontos de vista com uma preocupação em estabelecer
conclusões firmes. Em segundo lugar, ele tinha uma profunda veneração pelos
mestres antigos e contemplava suas descobertas com reverência. Embora chamasse
repetidamente Hipócrates de 'divino', ele evitava a afirmação dogmática de
velhas concepções e a adesão escrava à tradição herdada. Terceiro, ele
acreditava que a observação empírica é essencial ao estudo da saúde humana, e
para ele a anatomia era a chave. "A menos que se saiba como um órgão
funciona", ensinava ele, "não se pode nem reconhecer sua condição
saudável nem aliviar seus males, e a função de um órgão pode ser entendida
somente dentro do contexto da unidade de todo o organismo e sua unidade com seu
ambiente". Galeno foi um dos pioneiros da Medicina holística.
Assim como Galeno houvera aprendido dos quatro sistemas filosóficos
aceitos de sua época, ele também examinou as principais escolas da medicina. E
assim como ele retirou elementos de cada escola filosófica, também extraiu a
essência de diversas visões médicas, ao mesmo tempo que rejeitava a
considerável escória a elas associada. Das antigas escolas a mais velha era a
Hipocrática. Conquanto todos os médicos prestassem homenagens ao fundador grego
da ciência médica, alguns sutentavam que a sabedoria médica inteira podia ser
encontrada no sistema Hipocrático. A escola Dogmática tentou conciliar os ensinamentos
Hipocráticos com os de Aristóteles, mas recusou-se a aceitar a possibilidade de
descobertas médicas fora desta dupla. A escola Empírica emergiu a partir dos
estudos anatômicos que floresceram em Alexandria e baseavam seus ensinamentos
no acompanhamento terapêutico ('teresis'), na história clínica e na analogia.
Infelizmente, sua obsessão pelos detalhes tendia a levar a experimentação
farmacêutica à beira do bizarro. Três escolas contemporâneas de pensamento
emergiram da conquista romana do mundo grego. A escola Metódica, baseada no
atomismo de Epicuro, reduzia todas as doenças e disfunções à constrição e
relaxamento dos poros do corpo, elevando portanto um só tipo de observação
clínica ao nível de princípio operativo. A escola Pneumática declarava que
todas as desordens eram devidas á desproporção entre os ares e gases
circulantes no corpo, mas não havia o reconhecimento de que alguns gases eram
resultado da atividade dos órgãos. A escola Episintética tentou uma variação ao
reconciliar estas visões, e embora seus proponentes tivessem excelente
treinamento médico, careciam do embasamento filosófico necessário para elaborar
um método científico consistente.
Galeno procurou basear a arte da medicina em um método científico
perdurável, apoiado em um alicerce filosófico adequado, e ele tentou incorporar
as melhores concepções de todas as escolas. "A que seita pertence
Galeno?" perguntou certa feita o anatomista Marcial, e ele respondeu que
Galeno não pertencia a nenhuma e chamou de escravos aqueles que aceitavam
quaisquer ensinamentos como definitivos e completos. Mesmo Galeno jamais sentiu
que tivesse encontrado soluções irrefutáveis. Mesmo que rejeitasse as
pretensões das escolas com veemente polêmica, sua suspeita recorrente de que a
medicina poderia ser reapresentada de forma matemática e que a anatomia poderia
se basear na geometria apontava para um sistema que sempre lhe escapou. Não
obstante, ele desenvolveu diversas visões que deram direção e coerência aos
estudos médicos.
"Hipócrates", escreveu Galeno, "foi o primeiro conhecido
por nós dentre aqueles que foram tanto médicos quanto filósofos, onde ele foi o
primeiro a reconhecer o que a Natureza faz". Galeno tomou como seu próprio
ponto de partida o ensinamento de Hipócrates de que o organismo individual é
uma unidade que reflete a unidade da Natureza ('Physis'), da qual ele é uma
parte. Tanto a saúde como a doença - qualquer condição determinável no
organismo - devem ser entendidas com referência àquela unidade, especialmente
se alguém procura fundir a diagnose, a prognose e a terapia. A fisiologia - de
'physis' e 'logos' - é portanto o estudo da razão e causalidade na Natureza.
Para Galeno, a fisiologia inclui grande parcela de física e química, elas
mesmas consideradas como o estudo dos processos inteligentes (e portanto
inteligíveis) da Natureza. Antes do que sucumbir à tendência romana de reduzir
a biologia à física, Galeno era inclinado a assimilar a física à biologia. Ele
voluntariamente aceitou e adotou livremente a metodologia científica de Aristóteles
e seu discípulo Teofrasto, mas ele tirou sua filosofia de Platão, cuja ética e
doutrina da alma foram essenciais ao pensamento de Galeno.
A principal característica da Natureza, de acordo com Galeno, é 'techne',
sua artisticidade criativa. Nos organismos vivos - embora tudo na Natureza seja
vivo em pelo menos algum grau impercebido - 'techne' é exibida no crescimento e
na nutrição, que dependem de faculdades naturais que extraem materiais
apropriados para si. Através da assimilação, o organismo altera o material
incorporado a si mesmo. Embora os organismos sejam sujeitos a 'phora',
movimento passivo, que é representado pelas leis mecânicas, eles funcionam por
movimento autônomo. 'Drastike kinesis', movimento ativo, ou 'alloiosis',
alteração, não podem ser incluídos nas leis mecânicas, porque o movimento
próprio é um tipo de autodeterminação que depende da natureza do organismo ou
órgão. Este movimento pode ser entendido de três modos: como 'dynamis'
(potencialidade), 'energeia' (realização) e 'ergon' (o resultado de 'energeia')
- isto é, em termos do trabalho a ser feito, do trabalho sendo feito e do
trabalho completado. Enquanto que as categorias do movimento autônomo podem ser
entendidas a priori, a observação clínica baseada em detalhado conhecimento
anatômico é crítica para a diagnose de qualquer doença ou desequilíbrio no
sistema orgânico. Se a ciência médica há de progredir, contudo, os detalhes de
casos específicos têm de ser redutíveis á generalização. Galeno preferiu o
poder de dedução às incertezas do método indutivo, de modo que tentava elaborar
conclusões genéricas a partir das observações a fim de deduzir uma teoria
prática da doença. Ele achava a metodologia Euclidiana convincente, mas ele
sabia que nem a anatomia nem a medicina poderiam aplicá-la de modo inflexível,
mesmo que analogias pudessem ser úteis.
Para Galeno, a lógica e a observação não poderiam por si fornecer os
requisitos da ciência médica. Insistindo na importância da experimentação, ele
se tornou o primeiro fisiologista experimental, concentrando-se no estudo das
funções renais e na fisiologia da medula espinhal. Seus estudos levaram-no a
aceitar duas posições, que ele intermitentemente tentou conciliar. Em primeiro
lugar, tomando a disfunção orgânica e a doença como fenômenos que não eram
radicalmente distintos em natureza mas sim diferentes pontos no espectro da
doença, ele provisoriamente aceitou a teoria Hipocrática dos humores. Nesta
visão, as doenças são causadas por excesso de um ou mais dos quatro humores -
sangüíneo, fleugmático, bilioso negro e bilioso amarelo. O excesso não é
determinado pela quantidade de cada humor presente no organismo, mas pela sua
proporção em relação aos outros humores. Cada sistema orgânico tem seu próprio
equilíbrio - um reflexo da unidade na multiplicidade - e se um ou outro humor
aumentar significativamente, o equilíbrio sistêmico é abalado e resulta a
doença ou distúrbio. Embora a teoria dos humores não seja parte da ciência
médica ocidental contemporânea, a teoria dos hormônios é originada dela, e os
humores permanecem essenciais na medicina tibetana até hoje. A tentativa de
restaurar o equilíbrio dos quatro humores levou Galeno a procurar substâncias
curativas pela Ásia Menor, Egito, Ilhas Gregas, Palestina, Chipre e Itália. Sua
farmacopéia era tão grande que ele tinha de transportar boa parte dela consigo,
uma vez que não podia esperar encontrar entre os estoques dos farmacêuticos
locais os seus ingredientes exóticos.
A segunda visão que ele considerava atraente era a teoria pneumática. 'Pneuma',
literalmente alento, tinha para Galeno dois significados distintos mas
relacionados. Como ar inspirado, era reunido no coração e levado pelas artérias
a todos os tecidos do corpo. Embora Galeno não descobrisse a circulação do
sangue, ele reconheceu o coração como uma bomba. O ar circulante purificava e
restaurava os tecidos assim como dava o calor inato ao organismo. Como um
princípio vital sutil, o 'pneuma' atua de três formas. O 'pneuma physikon'
(espírito natural) viaja através das veias e governa as funções vegetativas do
organismo; o 'pneuma zotikon' (espírito vital) dá autonomia individual ao
sistema como um todo coerente e com mobilidade autônoma; e 'pneuma psychikon'
(espírito psíquico) é o princípio fisiologicamente operativo da alma, transmitido
através dos nervos. Os desequilíbrios que podem ocorrer nos humores têm efeitos
secundários, incluindo a inibição do fluxo de 'pneuma' no sistema. Porém, se o
fluxo do 'pneuma' é impedido, isso pode
afetar os humores. Assim a diagnose e a prognose baseadas na fisiologia devem
incluir a psiquiatria, bem como um estudo da história do organismo e de seu
ambiente.
Galeno aceitava a divisão tripartite Platônica da alma - ao mesmo tempo
que afirmava com Platão que a alma é uma unidade - e restringiu a medicina ao
aspecto inferior. Não obstante, ele acreditava que os médicos devem ter maior
conhecimento do que o lógico ou o filósofo precisamente porque a arte de
Esculápio tem de combinar a teoria Apolínea com a prática da razão de Ártemis,
deusa da caça, que sempre encontra sua presa. O verdadeiro curador deve dominar
os três ramos da fisiologia: a lógica, a ciência do pensamento correto e da
conceitualização; a física, a ciência da Natureza visível e invisível; e a
ética, a ciência do que fazer. O médico deve levar a mais alta integridade
ética aos seus estudos assíduos dos antigos, à experimentação cuidadosa e à
observação penetrante. A Natureza é viva e inteligente; o caráter moral do
médico reflete seu reconhecimento da operação da própria Natureza. Para Galeno,
o curador tem sucesso não só por causa de seu conhecimento, mas também porque
ele conscientemente busca auxiliar a Natureza, que revela seus segredos aos
seus servos fiéis e devotos.
Apesar de Galeno aceitar a doutrina Platônica da alma e admitir sua
onisciência potencial, ele concluiu, de seu extensivo estudo dos animais e
criança, que a Natureza estabelece já no nascimento limites ao crescimento e
pleno desenvolvimento. A educação não pode assegurar até mesmo para os
estudantes diligentes que eles, através de estrênuos esforços, se tornarão seres humanos excepcionais.
Poderia, entretanto, auxiliar a alguém extrair o pleno leque de possibilidades
que existissem dentro dos parâmetros da Natureza, e ele sentia que poucos
faziam isso. Alguns indivíduos são por natureza bons, e outros são maus, e a
educação não pode alterar significativamente suas constituições naturais. Pode,
não obstante, desenvolver os naturalmente bons e impor algumas restrições aos
inerentemente maus. A vasta maioria, contudo, vive entre estes dois extremos, e
a educação pode ser de enorme valia para eles. Para a maioria dos seres
humanos, sentia Galeno, é possível o progresso ético e intelectual. Em seu
tratado 'Sobre a Melhor Educação', ele desautorizou o método do cético Favorino,
que ensinava aos seus estudantes a argumentar com igual facilidade a partir dos
dois lados de uma questão. Esta abordagem negava o fato de que existem pontos
de partida para o conhecimento, e os estudantes eram deixados a fazer seus
próprios julgamentos sem auxílio. Se o professor não pode ver com maior clareza
intelectual que seus estudantes, argumentava Galeno, ele não deveria estar
nesta profissão.
Galeno sustentava que o caráter podia ser influenciado pela educação
porque os traços atribuídos à personalidade e caráter são parte não da alma
racional, mas da irracional - os aspectos de vitalidade e o vegetativo da
psique. Assim, as crianças que ainda não possuem uma capacidade desenvolvida de
pensar não obstante apresentam personalidades altamente idiossincráticas. Os
adultos devem assumir a responsabilidade pelos seus caracteres, uma vez que
estes podem ser alterados e afetados pela educação e treinamento. Favorino se
tornou para Galeno um símbolo do perigosamente mau professor porque ele negava
esta função quintessencial da educação. Educar uma pessoa de modo que quase
assegure que ela não usará sua educação para melhorar-se é privá-la de um dos
meios de crescimento moral e intelectual. Galeno acreditava que o estudo
exigente e o questionamento severo poderiam ser harmonizados prontamente pelo
comprometimento inabalável para com valores fundamentais. Embora ele se
abstivesse de atribuir qualquer esquema teleológico abrangente à Natureza como
um todo, ele estava convencido de que cada organismo, e a fortiori o ser
humano, poderia ser entendido funcionalmente apenas em termos de processos e
comportamento intencionais.
O interesse de Galeno em fundir a razão, a observação e a experimentação
em um poderoso método de demonstração compeliu-o a voltar sua atenção para a
lógica. Ele entendia o poder do silogismo Aristotélico, embora preferisse o
método da prova linear encontrado em Euclides. Os antigos escritores árabes,
que tiveram acesso a alguns escritos de Galeno hoje perdidos para a história,
eram unânimes em afirmar que Galeno inventara a quarta figura na lógica
silogística tradicional, e os pensadores renascentistas não sabiam o porquê se
referiam muitas vezes a isso como a 'figura Galênica'. Embora Galeno tenha
explorado as possibilidades do silogismo, ele focalizou sua atenção sobre as
falácias lógicas, e em seu 'Peri ton para ten Lexin Sophismaton' (Sobre as
Falácias Lingüísticas), ele argumentou que o pensamento falacioso emerge tanto
de falhas na argumentação devidas a ambigüidades gramaticais como de
ambigüidade nos conceitos. Ele foi o primeiro e talvez o único pensador que
tentou classificar cada ambigüidade lingüística com base em princípios
teóricos. Galeno pensava que a
linguagem essencialmente significa, e que a ambigüidade é o grau em que
o significado é obscuro. Para Galeno era essencial o reconhecimento deste
problema lingüístico, pois ele freqüentemente se viu debatendo com médicos que
confundiam rotulação com diagnóstico. Eles buscavam encontrar um rótulo
apropriado para colocar a doença sob estudo, e então tratariam o rótulo e não o
paciente. Esta abordagem tentadora e ilusória da cura constituia uma óbvia
negação da unidade do organismo. Seus seguidores inconscientes tendiam a atacar
a doença como se ela pudesse ser separada de toda a vida do paciente - uma
visão que Galeno trabalhou toda sua vida para banir da prática médica.
Galeno foi honrado por médicos e filósofos, mas o âmbito de seu gênio era
grande demais para ser compreendido por muitos, mesmo entre seus admiradores.
Seus escritos filosóficos e teóricos freqüentemente foram negligenciados, e
suas teorias médicas foram elevadas a um nível de certeza que ele jamais
pretendeu. Suas polêmica demolição de visões alternativas fez com que suas
próprias teorias, quando tiradas do contexto de suas judiciosas explicações,
tomassem um ar de autoridade que ignorava suas bases experimentais. Galeno, que
jurou jamais adotar uma única seita médica, se tornou postumamente o fundador
de uma seita dogmática que triunfou sobre todas as outras, tanto no mundo
Cristão como no Islâmico. Quando, séculos mais tarde, Paracelso queimou os
livros de Galeno em uma palestra pública sobre medicina, a faculdade médica que
o contratara ficou horrorizada e providenciou que ele fosse apresentar suas
teorias em outro lugar. Ironicamente, contudo, Galeno teria aplaudido o ato,
pois mesmo quando o sucesso e o renome recompensavam seu trabalho, ele
acreditava que a integridade intelectual do verdadeiro filósofo-médico
harmonizava a veneração pelos que haviam trabalhado antes com um exame
independente de cada teoria e ponto de vista. Galeno é um representante
exemplar não daqueles que proclamam a verdade última, mas daqueles que apontam
o caminho para ela.
"Os elementos, a vida consciente, a mente,
A força vital invisível, os nove estranhos portões
do corpo, e os cinco reinos dos sentidos;
o desejo, a aversão, o prazer e a dor, e o pensamento
profundamente entretecido, e a persistência do ser:
tudo isso é elaborado na Matéria pela Alma!"
SHRI KRISHNA
OM