"Todo o meu ensinamento
parte da concepção da própria natureza da pessoa, e aqueles que afirmam a
existência de algo fora dela revelam ignorância sobre sua natureza. 'Shila',
'samadhi', e 'prajna' - conduta, meditação e sabedoria - tudo isso são formas
da própria natureza da pessoa. Quando não há nada errado nela, temos 'shila';
quando está livre de ignorância, temos 'prajna'; quando não é perturbada, temos
'samadhi' ".
'Fa-pao-'tan-ching'
HUI NENG
Hung-jen, o quinto patriarca da
tradição Budista Ch'an, morreu em 675 dC, cerca de quatro anos depois do
surgimento de Shen-hsiu como sexto patriarca. Dezessseis anos depois de
Shen-hsiu começar seu trabalho como guia espiritual no norte de Ch'an, Hui-neng
emergiu no sul. Também discípulo de Hung-jen, ele enunciou uma doutrina de
direta percepção interior da realidade e desafiou a visão de que a
iluminação é o resultado linear de uma longa, gradual e constante disciplina em
'dhyana' e 'shila', na meditação e na conduta correta. Sua obra é preservada no
'Fa-pao-t'an-ching' ('Sutra da Plataforma'), o único texto chinês que foi
elevado ao status de escritura. Seus seguidores divergiram fortemente dos
ensinamentos aceitos no norte de Ch'an, resistiram a eles e por fim os
rejeitaram, de modo que Hui-neng desde então tem sido considerado o sexto
patriarca, e sua escola tem sido a fonte de inspiração das tradições Ch'an e
Zen subseqüentes.
De acordo com o 'Sutra da
Plataforma', Hui-neng era filho de um alto oficial, e nasceu em 638. Ainda
jovem, seu pai caiu em desgraça e foi banido, apenas para morrer
logo em seguida. Reduzido a uma pobreza extrema, Hui-neng e sua mãe se tornaram
vendedores de madeira no sul da China. Excepcionalmente inteligente mas sem os
meios de obter uma educação, Hui-neng aprendeu na praça do mercado, mesmo sendo
analfabeto. Um dia lhe aconteceu de ouvir um estrangeiro recitar versos do
'Sutra Diamante'. Quando ele ouviu as palavras "deixe sua mente funcionar
livremente, sem deter-se em lugar algum ou em nada", Hui-neng foi desperto
por um notável insight a respeito de sua verdadeira mente. Ele inquiriu o
estrangeiro sobre os versos e descobriu que o recitador era um discípulo de
Hung-jen, o quinto patriarca Ch'an, que ensinava que a assimilação do 'Sutra
Diamante' poderia levar à iluminação. Hui-neng rapidamente arranjou as coisas
de modo que sua mãe ficasse amparada, para que ele pudesse viajar para a
Montanha da Ameixa Amarela, onde Hung-jen ensinava, a quinhentas milhas ao
norte.
Quando Hui-neng atingiu seu
destino, apresentou-se ele mesmo ao quinto patriarca, que perguntou-lhe de onde
viera.
"Sou um agricultor de
Hsin-chou", respondeu Hui-neng, "e quero me tornar um Buddha".
"És um sulista",
respondeu Hung-jen, "e os sulistas não têm a natureza de Buddha. Como
podes esperar obtê-la?
Destemido, Hui-neng replicou:
"Há sulistas e nortistas, mas como podes distinguir uma natureza de
Buddha?"
Muito satisfeito com esta
resposta ousada mas perceptiva, Hung-jen não deu indícios outros de seus
sentimentos além de permitir a Hui-neng permanecer no mosteiro como moedor de
arroz da comunidade. Durante oito meses Hui-neng permaneceu nesta função,
largamente ignorado pelos outros discípulos, cumprindo seu dever, observado
secretamente pelo quinto patriarca. Então Hung-jen anunciou seu desejo de se
retirar da liderança ativa da comunidade Ch'an e convidou os monges a comporem
versos expressando seu entendimento do Ensinamento. Se algum demonstrasse uma
percepção realmente iluminada, seu autor seria feito patriarca. A maioria dos
monges se sentiu indigna de entrar em uma competição tão difícil, e os
restantes acreditavam que Shen-hsiu era superior a eles. Shen-hsiu compôs
calmamente um verso e colocou-o perto da entrada da sala de meditação:
"Este corpo é a árvore
Bodhi;
a mente é um espelho cristalino:
Limpa-os cuidadosamente hora após
hora,
e não deixa que o pó se
acumule".
O patriarca louvou o verso,
queimou incenso diante dele e instruiu os monges a contemplá-lo. Ao ler o
verso, Hui-neng compôs um outro para ser colocado ao lado dele:
"Não existe árvore Bodhi;
o espelho brilhante não rebrilha
em parte alguma:
Uma vez que o Vazio existe desde
sempre,
onde o pó pode se acumular?"
Tenham ou não estes versos sido
compostos por seus autores putativos, eles ilustram a diferença fundamental
entre as abordagens Ch'an do norte, gradual, e do sul, súbita, com respeito à
iluminação. De acordo com o 'Sutra Plataforma', Hui-neng reconheceu
publicamente os méritos do verso de Shen-hsiu, mas em segredo deu o manto e a
lei para Hui-neng, advertindo-o para ir se esconder no sul até que chegasse o
tempo de seu ensino público. Hui-neng fugiu para o sul, e é dito que os monges
o perseguiram para arrebatar o manto do patriarcado. Quando o mais atlético dos
monges agarrou Hui-neng, ele ficou impressionado pela presença do sexto
patriarca. Antes do que tomar-lhe o manto do cargo, ele respeitosamente
solicitou instrução. Hui-neng disse: "Não pensando no bem, nem pensando no
mal, diz-me qual era tua face original antes de tua mãe e teu pai
nascerem?" Ao ouvir esta pergunta notável, o perseguidor atingiu a
iluminação. Esta pergunta se tornou a marca registrada do ensinamenbto de
Hui-neng. Metodologicamnete, ela ilustra os enérgicos ditos que atordoam a mente
ao desafiarem a lógica ao mesmo tempo que apontam para a verdade.
Filosoficamente, declara o ensinamento Ch'an fundamental de que todos os seres
sempre têm a natureza de Buddha (a 'face original'), e que ela precisa ser
recuperada, e não criada. Ontologicamente, ela assevera que a natureza de
Buddha é anterior a 'shila' e a 'samadhi', a ética e a meditação. De fato, é
equivalente a 'prajna', sabedoria. Psicologicamente, ensina a terapia da
transcendência ou do 'deixar acontecer' radical, em contraste com o amadurecimento
ajustado e dirigido.
Depois de viver tranqüilamente no
sul durante dezesseis anos, Hui-neng tomou rumo para Kuang-chou (hoje Cantão) e
visitou o famoso Templo Fa-hsing. Lá ele encontrou alguns monges debatendo
sobre um estandarte ondulando na brisa. "O pendão é inanimado", disse
um monge, "e o vento o faz ondular".
"Mas", exclamou um
segundo monge, "tanto o vento como o estandarte são inanimados, e o
ondular é uma impossibilidade".
E um trerceiro acrescentou "O
ondular é devido à coincidência de causa e condição".
E um quarto insistiu: "O
estandarte não ondula, só o vento se move por si mesmo".
Percebendo que chegara o tempo de
revelar-se, Hui-neng declarou; "Nem o vento nem o estandarte, mas são as
suas mentes que ondulam". Surpresos, os monges perceberam que estavam
diante de um grande instrutor. Ele consentiu em proferir diversos discursos em
Fa-hsing, mas logo voltou para o Templo Pao-ling em Ts'ao-hsi, onde ensinou
discípulos durante quarenta anos. A despeito da existência do 'Sutra
Plataforma', dito ter sido escrito por um discípulo enquanto Hui-neng
discursava de cima de uma plataforma, seus ensinamentos não são sistemáticos.
Sobrevivem diversas versões muito diferentes do texto e elas mostram que foi acrescentado
muito material que não existe na versão mais antiga encontrada nas Grutas
Tun-huang. Justamente como há razões para crer que Hui-neng tenha se afastado
significativamente de seus predecessores em termos de método e doutrina,
existem razões iguais para duvidar que ele se considerasse um concorrente para
Shen-hsiu. Certa vez Shen-hsiu recomendou à corte imperial que convidasse
Hui-neng para para ensinar na capital, mas Hui-neng declinou. Embora seus
discípulos tenham se tornado oponentes vigorosos, os dois patriarcas parecem
ter mantido relações distantes, mas calorosas e respeitosas. Não obstante,
Hui-neng estava convencido de que o caminho gradual para a iluminação, por mais
útil que fosse na focalização da mente e na ordenação da vida individual,
poderia não levar á iluminação.
Hui-neng elaborou estas idéias
quando um mensageiro do Imperador Kao-tsung solicitou instruções para serem
levadas à corte imperial. Ele rejeitava as práticas formais de 'dhyana' porque
tendiam a externalizar a prática da meditação, ao passo que Ch'an se desdobra a
partir de dentro. Permanece, como o Tathagata, além da condicionalidade.
"Tudo é uma manifestação da
natureza de Buddha, que não é degradada nas paixões ou purificada na
iluminação. Se queres ver a natureza de teu ser, liberta tua mente dos
pensamentos relativistas e verás por ti mesmo sua serenidade e sua plenitude de
vida".
Deste ponto de vista, sentar em
meditação assume um novo significado. Para Hui-neng, 'sentar' significa
livrar-se de obstruções, uma tranqüilização da mente de modo que os pensamentos
cessem de distraí-la. 'Meditação' significa ver a sua natureza original sem
confusão. A meditação, portanto, é 'prajna' - sabedoria e percepção interior -
e iluminação. Se alguém senta em meditação com sucesso, estará sentando em
meditação seja o que quer que faça. Dada esta perspectiva, é natural enfatizar
mais o desempenho atento dos deveres e ações cotidianos antes do que as
práticas formalizadas. Hui-neng desejava extirpar todo elemento de drama da
vida espiritual.
Talvez o aspecto mais distintivo
do ensinamento de Hui-neng seja sua elaboração do 'wu-nien', traduzido
variadamente como 'não-mente', 'não-pensamento', e mesmo 'inconsciente'. Uma
tradução literal do termo sânscrito 'asmriti', 'esquecimento', ou 'falta de
significado', Hui-neng sustentava que 'wu-nien' é a natureza original da
consciência e a meta da tríplice emancipação: 'shunyata', 'animitta' e
'apranihita' - vaziez, ausência de forma e ausência de esforço. 'Wu-nien' é
tanto a realidade como a consciência que a percebe, porque qualquer distinção
entre elas constituiria uma sutil dualidade - a fonte da ignorância e do
sofrimento. Assim, a meditação ('dhyana') e a sabedoria ('prajna') são uma só
coisa.
"Em meu ensinamento não há
distinção entre 'dhyana' e 'prajna'. 'Dhyana' é o corpo de 'prajna', e 'prajna'
é a função de 'dhyana'. Quando se têm 'dhyana', 'prajna' está em 'dhyana'.
Quando se têm 'dhyana', 'prajna' está em 'dhyana'. Estas coisas são uma só, e
não duas".
Para Hui-neng, 'wu-nien' é
equivalente ao 'dharmakaya', o corpo da verdade e da realidade. A emancipação
da cilada da identificação com uma ou outra forma não é escapar do mundo de
objetos e processos mentais. Antes, um indivíduo se emancipa das formas quando
cessa de se ligar a elas, ao mesmo tempo que reconhece sua presença.
" 'Wu-nien' não reside em
parte alguma, visto que a consciência que é ignorante, iludida ou alienada de
sua natureza original incessantemente atenta para cá e para lá, tendo um
pensamento após outro. A consciência nesta condição se move através de
infinitas divisões de tempo, jamais parando, incansavelmente passando de
pensamento para pensamento. 'Wu-nien' é a consciência em um estado de inocência
a respeito da operação da mente relativa. 'Wu-nien' é o não-pensamento, em
contraste com o pensar do não-iluminado, mas não pode ser considerado a
extinção da consciência. É a substituição do envolvimento com relatividades
através da percepção do Absoluto. 'Wu-nien' é pensamento puro, consciência
original, pensamento sem objeto. Quando um discípulo inquiriu o sexto patriarca
sobre a meditação e o 'wu-nien', Hui-neng respondeu:
"Mantém tua mente como se no
espaço, e ao mesmo tempo não entretém nela nenhum pensamento sobre o vazio.
Então a verdade terá sua plena dinâmica desimpedida. Todos os teus momentos
virão como se de um coração inocente, e o ignorante e o sábio terão tratamento
igual em tuas mãos".
Uma vez que a mente é tanto o
movimento como o 'wu-nien', 'prajna' não pode ser considerado um acréscimo. Em
outras palavras, a sabedoria parcial ou relativa não é sabedoria, mesmo sendo
um reflexo dela. para Hui-neng e outros instrutores Budistas chineses, 'prajna'
é melhor traduzido por 'tun-u', que significa 'entendimento imediato'. Hui-neng
não menosprezava degraus menores de insight, mas ele via que a falha em ver
claramente a diferença entre um alto nível de disciplina, treinamento,
concentração e abstração de um lado, e a pura sabedoria de outro, leva à
confusão e a uma ilusão persistente. Nenhum grau de insight, por mais sublime
que seja, tem a iluminação como seu degrau seguinte, nada mais do que o
infinito é o próximo integrante de uma série numérica. Portanto, a iluminação é
súbita. Uma vez que não é relativa, as distinções que poderiam ser feitas entre
verdade, iluminação, sabedoria e insight colapsam em uma única realidade, para
a qual apontam uma variedade de caminhos. A iluminação não é a adição de
qualquer coisa previamente ausente na consciência ou a recuperação de algo
previamente perdido. É o desvelamento da natureza original do indivíduo, eterna
e sempre presente, embora obscurecida pela consciência relativa.
"Quando a luz de 'prajna'
penetra a natureza básica da consciência, ilumina o interior e o exterior. Tudo
passa a ser transparente, e a pessoa reconhece a sua mente mais íntima.
Reconhecer a mente mais íntima é emancipação... é a manutenção da perfeita
liberdade no ir e no vir".
"É declarado ser
não-manifesto (avyakta), impensável (achintya) e imutável (avikarya).
'Bhagavad-Gita', II, 25
SHRI KRISHNA
OM