O Islã se espalhava rapidamente;
no Oriente, da Arábia através do Egito e do Levante até os portões de
Constantinopla, no Ocidente, através da África e Espanha até Tours. A segurança
da Igreja estava ameaçada, ridicularizando sua pretensão de domínio universal,
fisicamente pela tomada da Terra Santa, e metafisicamente pela introdução de
idéias revigorantes no próprio coração da Cristandade. Os grandes filósofos
árabes preservaram e ensinaram parcelas da tradição Platônica; os cientistas
desenvolveram a astronomia, alquimia e astrologia; o esoterismo Judeu floresceu
debaixo da proteção do Corão e da influência da teosofia Sufi; a expansão
política Islâmica até a Índia renovou o interesse na matemática e importou os
numerais hindus para o Ocidente, provendo um sistema de notação adequado para a
investigação matemática avançada.
Dissensões dentro da Igreja,
incluindo o deslocamento da corte papal para Avignon em 1309, e a eleição
simultânea de dois 'Sumos Pontífices' quando de seu regresso a Roma em 1377,
enfraqueceram a credibilidade de qualquer reivindicação de autoridade universal.
Vozes corajosas como a de John Wycliffe (1320-1384) questionaram os dogmas
supersticiosos - o perdão dos pecados, o poder de excumunhão e a
transubstanciação - e pavimentaram o caminho para uma reconsideração racional
do conceito sobre o homem, a natureza e a deidade.
A Segunda Onda encontrou sua
expressão mais rica na jóia da Renascença italiana, Giovanni Pico della
Mirandola (1463-1494), filho mais moço do Conde de la Mirandola e Concordia.
Ele estudou nas universidades de Bolonha, Ferrara, Pádua e Paris, dominando o
italiano, latim, grego, árabe, aramaico e hebreu. A reverência de Pico pela
'prisca theologia', a antiga sabedoria, atraiu-o à Academia Platônica de
Florença, estabelecida por Marsilio Ficino, sob a égide e apoio de Cosimo dei
Medici. Sua consciência da universalidade da verdade levou-o a rejeitar
tendências humanistas tais como a ênfase no estilo oratório dentro do
pensamento filosófico e a dependência exclusivamente da Grécia antiga para
inspiração. Pico estudou Zoroastro e Moisés, Orfeu e Pitágoras, a teologia
Cristã, a filosofia Islâmica e a Qabbalah Hebraica. Ficino traduziu Platão para
o latim e Pico estudou suas obras avidamente. Quando agentes dos Medici
trouxeram os escritos Herméticos para Florença, Pico incitou Ficino a traduzí-los,
argumentando que eles conteriam a raiz da sabedoria e a síntese entre
filosofia, ciência e religião. O próprio Pico pessoalmente trouxe a Qabbalah
para o coração da Renascença.
Em 1486, com a idade de 23 anos,
Pico publicou novecentas teses que seriam debatidas livremente pelos eruditos e
teólogos por toda a Europa. Sete foram condenadas por Roma como heréticas, e
seis outras como 'dúbias' Incluídas entre as heresias estavam as proposições de
que (1) Orígenes, o condiscípulo Cristão de Plotino sob Amônio Sacas e líder da
Escola Catequética de Alexandria, tendo sido excomungado por ensinar a
reencarnação, deveria ser imaginado estando no céu, antes que no inferno, e
(2), que a ciência da magia e da Qabbalah provam a divindade de Cristo. Ele
preparou um pronunciamento aberto, 'Oratio de Hominis Dignitate' (Sobre a
Dignidade do Homem), mas abandonou o projeto em face à censura papal.
A 'Oratio' de Pico tocou a
nota-chave do ciclo do século XV. Ensinando que só a dialética poderia
harmonizar as filosofias díspares, sintetizar ciência e religião, e desvelar o
cerne de todos os sistemas, ele introduziu na Renascença o conceito de
liberdade de escolha.
Na 'Oratio', Pico faz o
'mestre-construtor' dizer a Adão, o homem arquetípico:
"Eu te coloquei no centro do
mundo... Nem celeste nem terrestre, nem mortal nem imortal Nós te fizemos. Tu,
como um juiz indicado por ser honrado, és o modelador e fazedor de ti mesmo,
podes esculpir a ti mesmo na forma que preferires. Podes descer até as
naturezas inferiores que são brutas. Podes ainda ascender a partir do
entendimento da alma até as mais elevadas naturezas que são divinas... É dado
ao homem obter aquilo que escolhe e ser o que deseja".
Este era, dizia Pico, parte do
significado por trás da simbolização do homem através de Prometeu, nos
mistérios atenienses. A liberdade não negava um universo regido pela lei, mas
antes depende dele. As sementes de todo tipo de vida e ser no cosmo também são
inatos no homem. Se se permite crescerem as sementes da sensação, o homem se
torna um bruto; se germinam as sementes racionais, ele se torna um animal
celeste; mas se florescem as sementes do intelecto intuitivo, o homem se torna
angélico. "E se ele não se contenta com o quinhão de uma criatura
qualquer, mas o incorpora a si mesmo, à sua própria unidade, então, tornado um
só espírito com Deus e estabelecido na treva solitária", o homem se torna
Kutastha, "acima de todas as coisas", e "à frente de todas as
coisas". Pois, "como Asaf o profeta diz: 'Sois deuses, e filhos do
Altíssimo' ", e "podemos ser o que queremos".
Pico fundiu a metafísica e a
ética enraizando a liberdade, a dignidade essencial do homem, na estrutura do
cosmo. O método de realizar esta possibilidade divina era a meditação que
acende os fogos da discriminação, da inteligência intuitiva e da compaixão - a
Tríade Superior. Quem ativar estes três fogos em si, restringindo os afetos
através da ciência moral, descartando as névoas da razão através da dialética e
purificando a alma, se torna um serafim, um amante que "está em Deus, e
mais, Deus está nele, e Deus e ele são um só".
Sabendo muito bem que não ousaria
falar abertamente desta vasta concepção da deidade, ele usava a palavra 'Deus'
para se referir à Treva Absoluta que está além da luz da consciência finita e
também do tríplice Logos e do mestre-construtor do cosmo. O olho casual só vê
as muitas referências a Deus, mas a mente intuitiva reconhecerá muitos tipos de
deuses na 'Oratio'. A despeito da busca papal por heresia, este ensinamento
passou impercebido por aqueles que buscavam evitar a ressurgência do
pensamento.
A liberdade humana é devida ao
fato de que o homem contém todos os deuses dentro de sua forma encarnada, e
também tem o poder "de obter o que escolher e ser o que deseja". Na
vontade, o homem é mais parecido ao impulso criativo por trás e dentro da
manifestação, pois ela não tem qualidades e nenhum lugar na constituição
humana. O homem não é "nem celeste nem terrestre, nem mortal nem
imortal", mas se torna assim através da consciência.
A meditação e a magia são as
chaves para a autotransformação. Temos uma natureza dupla que nos atrai para
cima para o reinos divinos e homogêneos do ser, e também nos puxa para as
esferas mais baixas e indiferenciadas de luta. "Governado pela disputa e
pela discórdia como um louco, e banido para longe dos deuses, o homem é
precipitado na profundeza". Mas a filosofia moral, o amor pela sabedoria
dentro de um contexto de um desprendido cumprimento do dever, trará a paz. Só
então podemos começar a subir a escada de Jacó "estendida desde a baixeza
da terra até as alturas do céu, e dividida pela sucessão de muitos
degraus". Pois "quem pode tocar a escada do Senhor com pés sujos ou
mãos impuras? Como os mistérios dizem, é sacrilégio para o impuro tocar no que
é puro". Mas uma vez feito, podemos cultivar um amor universal por todos
os seres, e se tivermos sucesso, "subitamente incandesceremos como chamas
à semelhança do serafim". Manas despertará plenamente e se unirá a Buddhi,
o princípio da discriminação espiritual que, como um "trono, permanece na
perenidade do julgamento". O "querubim brilha com a radiância da
inteligência" e Manas Taijasi se manifesta no indivíduo.
"Se encontramos um
contemplador puro, desligado do corpo, banido para os recessos mais íntimos da
mente, ele não é nem terreno, nem um animal celeste; mais esplêndido, ele é uma
divindade vestida de carne humana".
"Com a paz concedida pela
dialética, que transcende tanto a retórica como o debate lógico, e que permite
aos princípios inferiores do homem travar amizade com a Tríade Superior através
de Manas, a meditação é possível.
"Quando alcançamos isso
através da atuação da arte da razão, então animado por um espírito de querubim,
filosofando ao longo das escarpas da escada da Natureza, e penetrando em tudo
de centro para centro, em dado tempo estaremos descendo, despedaçando, como
Osíris, o uno no muitos através de uma força titânica; e em outro tempo
estaremos subindo e reunindo o muitos no uno, como os membros de Osíris,
através de uma força Apolínea, até que o contemplador obtém a amizade que é a
alma única, a amizade através da qual todas as mentes não meramente concordam
em um só intelecto mas de uma forma inexprimível se tornam absolutamente
unificadas".
A filosofia natural, que leva à
magia, é transmitida primeiro através do estudo e depois, quando o homem todo
está purificado e preparado, através da iniciação.
"Deixe que os que estão
ainda impuros e necessitados de conhecimento moral vivam com as pessoas fora do
tabernáculo a céu aberto, e deixe-os enquanto isso purificarem-se como os
sacerdotes tessalonicences. Que aqueles que já colocaram suas vidas em ordem
sejam recebidos no santuário".
Pico ensinava que a demonologia
da Idade Média constituía uma degradação do Santo dos Santos e uma fascinação
por potências inferiores, uma magia que levava à feitiçaria. Mas existe ainda
uma magia natural mais elevada baseada na 'Sympatheion', as harmonias
simpáticas ou ressonantes que ligam os espíritos da terra, as imagens
celestiais e as potências verdadeiramente espirituais. Os objetos materiais não
têm poder em si mesmos, embora contenham figuras astrais e akáshicas e símbolos
que são potentes. Estas matrizes invisíveis podem ser levadas a um alinhamento
e sintonia com a luz divina que se irradia delas difusamente, mas podem brilhar
em seu esplendor pristino focalizado através do coração do Mago. "Assim o
Mago casa a terra com o céu, isto é, as forças das coisas inferiores com os
dons e propriedades das coisas sobrenaturais". A magia natural, usada pelo
feiticeiro, é purificada e transformada passando-se para além do reino astral,
até o 'plenum' supracelestial. O processo requer, além de uma perfeição moral e
espiritual e vontade, um profundo conhecimento sobre as cores, números e sons
como potências e relações criativas. Através deste conhecimento e prática, o
homem se torna pessoalmente invulnerável no mundo e imortal na consciência, um
Adepto-Mago, e quando é escalada toda a escada do ser, se torna um Mahatma, um
homem divino. Daí que o mágico superior "Não faz tanto milagres, mas serve
cuidadosamente a Natureza que os faz".
Devem ser cumpridos três
'Preceitos Délficos', se a pessoa há de entrar no "augusto templo da
verdade, não do Apolo inventado, que ilumina toda alma que vem a este
mundo". O primeiro é nada em demasia, pois o princípio da moderação em
todas as coisas harmoniza a mente e o corpo de quem aspira ao conhecimento
espiritual. O segundo é conhecer a si mesmo, pois a obediência "nos
desperta e incita em direção ao conhecimento de toda a Natureza, da qual a
natureza humana é o meio e como se fosse a união". O terceiro é Tu és, que
"devemos endereçar ao verdadeiro Apolo", o Atma que paira acima de
todo o ser.
Pico escreveu uma longa
'Apologia' onde defendeu suas concepções, mas foi forçado a fugir de Roma sob
ameaça de perseguição pelo Papa Inocêncio VIII. Embora preso na França por
Carlos VIII a pedido dos enviados papais, Pico voltou a Florença sob a proteção
pessoal de Lorenzo dei Medici, e passou os últimos poucos anos de sua vida
escrevendo e disseminando os ensinamentos que formam o fulcro da Renascença.
Tomando a doutrina de Orígenes,
de que a escritura tem três chaves de interpretação - literal, alegórica e
celestial ou oculta - Pico escreveu o 'Heptaplus', um relato da história da
criação do Gênesis, sob forma de um entendimento sétuplo da evolução e da
Natureza, desde os reinos elementais até os reinos supramundanos.
Em 1491 Pico renunciou ao seu
título e fortuna e revelou que desejava se tornar um asceta errante e
professor, assim que sua obra literária fosse completada. Ele foi completamente
exonerado de qualquer acusação pelo Papa Alexandre VI, que era ele mesmo
profundamente interessado em magia, mas antes que pudesse abraçar a vida de
andarilho, sucumbiu de uma febre. Morreu em 17 de novembro de 1494, no dia em
que Carlos VIII entrou em Florença após a expulsão de Piero dei Medici.
O espírito de sua obra deixou uma
marca permanente na mente da raça, e ele mereceu, em seu sentido mais oculto, a
simples denominação que deu a si mesmo: Explorador.
Embora suas obras jamais tenham
sido totalmente traduzidas para a linguagem moderna, sua posição central no
rensacimento do Ocidente é clara. Nas palavras de Frances Yates,
"A profunda significância de
Pico della Mirandola na história da humanidade dificilmente pode ser
superestimada. Ele foi o primeiro que audaciosamente formulou uma nova
posição para o homem europeu, o homem como um Mago usando tanto a Magia como a
Cabala para atuar sobre o mundo, para controlar seu destino através da ciência.
"A ciência de Pico é uma ciência da Natureza, enraizada
no amor pela sabedoria, e uma ciência do Espírito, uma verdadeira religião que
nos devolve à Antiga Fonte".