"Meu mestre costumava expor
os assuntos da lei de acordo com seu sentido literal, em cada um dos seis dias
da semana. Mas depois ele costumava expor os significados secretos em honra do
Sabbath.
"O estudo da Torah deve ter
como sua motivação primária ligar a alma à sua fonte através da Torah, a fim de
completar a árvore superna - os Sephiroth - e completar e aperfeiçoar o homem
superno... Se uma pessoa não se aperfeiçoou cumprindo os 613 mandamentos a
respeito da ação, fala e pensamento, por força da necessidade ela se verá
sujeita à 'gilgul' - reencarnação - e quem quer que não tenha estudado a Torah
de acordo com os quatro níveis indicados por 'p r d s', que é um conjunto
composto pelas letras iniciais das quatro palavras: 'peshat', literal; 'remez',
alegórico; 'derash', homilético; e 'sod', místico, terá sua alma voltando à
encarnação de modo que ela possa completar cada um deles".
'Shulhan Aruk'
JACOB ZEMAH
O ano de 1492 é lembrado como o
do início da grande era de explorações, uma queda das crostas dos olhos
europeus e uma revelação das civilizações do leste, do sul e do 'novo mundo'
além do oceano ocidental. A Renascença florira e frutificara na Itália, e
começava a se mover para o norte, mas como ocorre com as grandes luzes, suas
sombras foram escuras e profundas. Os Muçulmanos foram expulsos da Espanha e a
Inquisição florescia. Assim como as maiores civilizações da América seriam
brutalmente destruídas nesta nova época, também a cultura Islâmica representada
pelo resplendente Alhambra seria erradicada. Os Judeus, que haviam prosperado e
ascendido a posições de poder e proeminência sob o governo Islâmico, foram
ameaçados e perseguidos. Em 1492 deu-se a todos os Judeus da Espanha quatro
meses para deixarem o país, ou seriam executados. A conversão, uma opção
inaceitável para a maioria, era igualmente inaceitável para a Inquisição, que
processava indiscriminadamente Judeus marranos e verdadeiros conversos. O vasto
êxodo resultante desta política implacável foi chamado de 'O Exílio', e teve
seu efeito próprio e profundo no mundo mediterrâneo. Alguns do exilados
perambularam pela Europa Central e alguns acabaram parando na Itália e Grécia,
mas um grande número fugiu para o norte da África e o Oriente Médio.
O conhecimento Muçulmano havia
brilhado no sul da Espanha, onde seus dinâmicos movimentos Sufi haviam
construído um pano de fundo para o ressurgimento dos ensinamentos
Kabbalísticos. Lá o 'Zohar' havia se tornado amplamente conhecido, e centros de
estudo Kabbalístico desenvolveram penetrantes doutrinas filosóficas e
sofisticadas técnicas de meditação, ambas enraizadas no princípio de que a
percepção interior é cultivada por uma vida ética purificadora. Como a
destruição do Segundo Templo pelos romanos, em 70 dC, levou à disseminação da
Kabbalah através da Diáspora, do mesmo modo o Exílio de 1492 estimulou a
criação de novos centros de aprendizado Kabbalístico e levou à sua difusão no
Judaísmo popular da Europa. Fez, no Marrocos, se tornou um destes centros, onde
o pensamento Sufi há muito havia encontrado um porto. O Egito e a Turquia
também forneceram lugares para a contemplação mística, mas o principal centro
estava localizado na antiga Galiléia, a terra natal de Jesus, na cidade de
Safed. Safed era o local tradicional do túmulo de Simeão ben Jochai, o
Instrutor que primeiro ordenara que partes da Kabbalah deviam ser postas por
escrito, depois da destruição do SegundoTemplo.
Joseph Karo, nascido em Toledo,
foi levado por sua família para Constantinopla, durante o Exílio. Renomado
erudito Talmudista e pensador jurídico, suas intensas meditações privadas
levaram-no em 1536 a Safed. Lá ele se tornou 'rabbi'-chefe e cultivou um grupo
de jovens Kabbalistas, métodos de meditação e doutrinas sobre a imortalidade e
reencarnação que foram comparadas ao Yoga hindu e às filosofias Budistas
tibetanas. Moisés Cordovero, cuja primeira parte de sua vida é desconhecida
pela história, estabeleceu-se em Safed e estudou com Karo. Com a idade de vinte
e seis anos ele já havia composto o 'Pardes Rimmonim' ('Pomar de Romãs'), que
delineava treze caminhos para estados transcendentais de consciência. Ele
sustentava que a incessante troca de energias entre os Sephiroth fornece uma
chave para o entendimento do ser humano e de sua relação com a Natureza visível
e invisível. Como membro do grupo conhecido como Chaverim - Associados - ele
compilou uma lista de preceitos pelos quais ele e seus companheiros procuravam
viver. Estes princípios eram Pitagóricos em sua natureza e incluíam o voto de
jamais ser forçado à raiva, de evitar comida em excesso, de falar a verdade, de
aceitar sem agitação tanto a dor como o deleite, e de rever os pensamentos e
ações próprios antes de cada refeição e antes de se retirarem para dormir. Assim,
em Safed formou-se um vórtice místico em torno da memória de Simeão ben Jochai,
iluminado pela luz numinosa do 'Zohar', e reunindo aqueles que viam que o fim
só poderia ser encontrado no início, e que percebiam na turbulência do Exílio
um símbolo da alienação de toda alma humana de sua fonte transcendental. Isaac
Luria entrou neste vórtice e se tornou seu foco fulgurante em sua própria época
e nos séculos que viriam depois.
Isaac Luria, que veio a ser
chamado de Ha-Ari, 'o Leão', a partir das iniciais de Ha-Elohi Rabbi Yizhak, 'o
divino Rabbi Isaac', nasceu em Jerusalém em 1534. A família de seu pai era de emigrantes Ashkenazi vindos da Alemanha, e sua mãe pertencia à
família Sefardita Frances, talvez exilados na expulsão espanhola de 1492. Lendas
obscurecem sua vida inicial, sugerindo que com sete anos ele tenha ido para do
Egitrto com sua mãe, logo depois da morte de seu pai. Ele mais tarde atestou,
contudo, que havia estudado a Kabbalah com o Kabbalista polonês Kalonymus, em Jerusalém. A história verifica que ele estudou no Egito com Davi ben Salomon ibn Abi Zimra, e
com seu sucessor Bezalel Ashkenazi, ambos mestres do 'halakha', o sistema legal
ortodoxo. Ele conquistou uma sólida reputação no estudo da lei e da literatura
rabínica, e pelo menos um de seus pareceres 'halakha' sobrevive até hoje. O
Genizha no Cairo contém documentos que mostram que ele era comerciante, uma
atividade que manteve em Safed, onde ele colocou seus negócios em ordem apenas
três dias antes de morrer. Enquanto ganhava reconhecimento público como
participante ortodoxo na comunidade, ele estudava assiduamente os mistérios da
Kabbalah. Antes de se mudar para Safed ele escreveu um breve tratado sobre o
'Livro da Ocultação', uma seção fundamental do 'Zohar', mas nada neste
comentário sugere as concepções extraordinárias que mais tarde ele haveria de
transmitir aos seus discípulos.
Em 1570 Isaac Luria
estabeleceu-se em Safed com sua família, onde ele foi reconhecido como um
exímio estudante e professor da Kabbalah, incluindo suas rigorosas práticas
meditativas. Ele já entendera que a Kabbalah, quando aplicada aos estados de
consciência, conduz a poderes extraordinários, e advertiu seus seguidores para
que evitassem toda fascinação com práticas mágicas ambíguas através da adesão à
busca desinteressada de sabedoria espiritual. Ele estudou com Moisés Cordovero
pouco antes da morte deste no outono de 1570. Cordovero teve a oportunidade de
ler alguns livros de Luria antes de morrer, e não havia dúvidas de que, a
despeito do curto período que estava em Safed, Luria seria o sucessor de
Cordovero. Reuniram-se discípulos em um círculo esotérico em torno de Luria,
muitos dos quais haviam estudado com Cordovero. Enquanto sua fama por sua
sabedoria 'halakha' e pureza de conduta pessoal haviam se espalhado tão longe
como no Egito e Europa, ele mantinha seus ensinamentos sobre a Kabbalah
completamente ocultos. Construindo aposentos especiais para eles e suas
famílias, este grupo muito íntimo se ocupava de estudos intensivos, trabalho
comunal e meditação individual, todos guiados por Luria. Quando ele morreu em
1572, com a idade de trinta e oito anos, menos de três anos depois de chegar a
Safed, ele já havia deixado uma marca indelével na Kabbalah e uma poderosa convicção
entre seus seguidores a respeito de sua inspiração divina.
Luria, como todo o verdadeiro
estudante da sabedoria perene, não buscou mudar ou acrescentar nada à Kabbalah.
Ele tomava a tradição, especialmente como ela era apresentada no antigo 'Zohar',
como a moldura e guia para suas meditações profundamente intuitivas, e sua
percepção interior e compreensão racional eram embasadas solidamente na
disciplina diária da vida ética. Como todos os verdadeiros aprendizes, ele
trouxe uma nova perspectiva para os assuntos sagrados que estudou. Embora a
tendência de pensar sobre a origem divina do mundo em termos temporais como uma
'creatio ex nihilo' já houvesse afetado o pensamento Judeu, Luria entendia os
primeiros versos do 'Gênesis' em seu sentido original: "Quando Deus
(Elohim) começou a criar o céu e a terra, a terra era um vazio informe". A
criação emergira da atividade divina na e sobre a matéria primordial. Para
Luria a verdadeira questão era: de onde vinha esta matéria primordial? Se a
Deidade é onipresente - uma mera expressão semelhante para Aquilo que não tem
espaço e tempo - então onde haveria lugar para existir a matéria primordial? Antes
do que imaginar o caos existindo em algum espaço fora da Deidade, Luria
ensinava que a existência manifesta teve seu primeiro início etéreo na
'zimzum', contração.
Ain-Soph, o Infinito e Ilimitado,
a Fonte Desconhecida e Incognoscível de todas as emanações e diferenciações, 'deus
absconditus', não pode ser ligado à cadeia de emanações progressivas representadas
na Árvore Sefirotal. Não é a primeira das causas: está além da causação e
portanto alheio a todo relacionamento com qualquer coisa finita. Neste sentido,
existe um hiato entre aquilo que é completamente não-manifesto e todas as
formas de manifestação. Ain-Soph não pode emanar nada; nem há lugar para nada
além de Ain-Soph. A primeira atividade que marca o começo da existência
manifesta é 'zimzum', a contração, a retirada da Deidade de algum lugar,
"a entrada de Deus em Si mesmo", uma limitação do Divino através da
ocultação. Comparado com a Infinitude, o lugar de retirada é apenas um ponto, e
este ponto é 'tehiru', o espaço primordial. A retirada do Divino deixa um
espaço de resíduo ou aroma caótico, 'reshimu', a dimensão matérial do futuro
universo. Este resíduo de Luz Absoluta é o substrato receptivo para a criação e
o poder ordenador da emanação que se segue à contração, e em si mesmo é o
espaço. Assim, tanto substrato como potência têm sua origem na Deidade
Incognoscível. De Ain-Soph, que abrange o espaço, surge um Raio cujo foco
suscita uma resposta de 'reshimu' sob forma de um vaso primordial que pode
receber o Raio. Uma vez que o Raio vem como que de todos os lados, o vaso
refrator é esférico, e uma vez que o Raio é uma 'medida cósmica' ascendente e
descendente, conhecido como 'rahamin' (compaixão), o pulso universal é
refletido em um vaso décuplo, os dez 'kelim' ou vasos dos Sephiroth. Tomados
juntos, os Sephiroth constituem Adão Kadmon, o homem primordial, o elo entre
Ain-Soph e o espaço puro ou 'zimzum'. Contração e expansão, regressão e
progressão, 'histalkut' e 'hitpashtut', são o ritmo da evolução cósmica e a
batida do coração de Adão Kadmon, o Homem Cósmico. Toda existência
corporificada no universo tende para a esfera em sua forma e para o homem em
suas potencialidades oviformes.
Metafisicamente, a origem do mal
é encontrada na limitação do Absoluto representada pelo 'zimzum'. O ato
ontológico e atemporal que permite a existência dos indivíduos é também a fonte
do impulo evolutivo e da necessidade de escolher entre o bem e o mal. A vida
ética - a vida da escolha consciente - é tão primordial e original como a
própria existência. Não obstante, outros eventos ontológicos precedem a
existência dos indivíduos concretos e das escolhas práticas. O Raio que entra
em 'reshimu' inicia duas atividades encontradas na geometria Pitagórica do
ponto: o movimento dinâmico que é descrito geometricamente como 'iggul
ve-yosher', círculo e linha. O círculo é a forma natural da energia divina, e a
linha é a atividade voluntária que procura criar um todo unificado. Muito
parecido com uma mola de cobre que permanece inerte até que um ímã se mova
sobre ela, criando uma corrente elétrica na mola, os Sephiroth esféricos são
vivos por causa das linhas que os conectam em relações vivas. A Árvore das
Luzes é o aspecto ativo das esferas concêntricas quiescentes de Adão Kadmon. As
linhas da vontade elétrica dão uma alma ao Home Cósmico. Da cabeça de Adão
Kadmon se irradiam tremendas luzes em padrões complexos, a língua pristina da
Torah que é o reino dos arquétipos espirituais. Assim, os Sephiroth, quando
entendidos voltados para sua Fonte derradeira, são cada um deles um Nome
divino.
Esta coleção inicial de luzes foi
chamada de 'olam ha-tohu', o mundo do caos, pois ela representa a limitação
original de 'zimzum' sem a perfeição ordenada de toda a Árvore, uma vez que o
movimento linear do Raio ainda não estabilizou as relações entre os Sephiroth. Cada
luz é contida em um vaso de luminosidade mais densa derivado de 'reshimu'. À
medida que a luz do Raio flui de Kether, o primeiro Sephira, para os outros
Sephiroth, ocorre um desastre cósmico. A tríade superior de Sephiroth suportou
a luz, mas as duas outras tríades se despedaçaram com a sua intensidade
espiritual, e o Sephira mais baixo, Malkhuth, o reino astral, rompeu-se. Algumas
das luzes caídas de imediato voltaram para sua fonte, mas algumas caíram junto
com os vasos, e estes fragmentos materiais vivificados se tornaram os
'kelippoth', as cascas vampíricas e forças demoníacas de 'sitra ahar', a região
das emanações tenebrosas. Ao passo que este desastre poderia parecer
inexplícável, é o resultado necessário da natureza de 'zimzum' como limitação. De
certa maneira, a restauração da Árvore das Luzes à sua forma perfeita é uma parte
inerente do processo de evolução. A vida moral e espiritual dos seres humanos
individuais é um aspecto integrante da urgência divina de manifestar um
microcosmo que seja a imagem temporal perfeita da Deidade transcendente.
A história da emanação e evolução
é a história de 'tikkun', a restauração de uma ordem intencional que jamais
existiu no tempo. Tikkun, a redenção do mundo e de cada indivíduo dentro dele,
é o cumprimento do impulso original da vontade inteligente e também é, assim,
essencial à lógica de 'zimzum'. A luz fragmentada que emanou da cabeça de Adão
Kadmon deve ser restaurada para o todo harmonioso que se manifesta como a
comunidade universal dos seres justos. Esta luz quintessencial, que na
consciência é a sabedoria espiritual, é o principal elemento em todas as
tentativas de restauração. A tríade mais alta de Sephiroth - Kether (a coroa e
semente das emanações), Hokhmah (sabedoria pura) e Binah (inteligência
abstrata) - é o suporte para a restauração, uma vez que não foi afetada pelo
desastre cósmico. Elas ligam as luzes desfiguradas como sendo a primeira fase
de um processo alquímico de transmutação no qual a espessura da treva pode ser
removida ao mesmo tempo que se preserva a luz espiritual embutida. A Árvore das
Luzes se manifesta nesta forma intermediária como as cinco fisionomias ou
"faces" de Adão Kadmon, correspondendo aos quatro mundos, desde o
arquetípico até o material e ilusório. A primeira 'parzuf' ou face consiste de
Kether como Arikh Anpin, a paciente, correspondendo ao mundo arquetípico
Aziluth. As segunda e terceira 'parzufim' são Abba e Imma, pai e mãe, Hokhmah
masculino e Binah feminina, consideradas do ponto de vista da restauração e
correspondendo a Beriah, o mundo da potência criativa. De sua união surge a
'parzuf' Ze'eir Anpin, a impaciente, constituída pelos seis Sephiroth ou o
mundo formativo que contém os seis poderes da Natureza no mundo de Yetzirah. O
Sephira inferior, Malkhuth, se torna a 'parzuf' Nukha de-Ze'eir, o aspecto
feminino receptivo da Natureza, correspondendo ao mundo material de Asiah,
manifesto aos cinco sentidos.
As cinco 'faces' constituem o
Adão Kadmon como o cosmo parcialmente restaurado que só a humanidade pode levar
à completude. Esta descida a partir do Adão Kadmon pristino estabilizou o mundo
com uma ordem e harmonia intermediárias que permitem a continuidade dos
esforços alquímicos de restauração. É uma restauração externa; a tarefa do ser
humano é a restauração interna. Desta forma, cada Sephira fica um degrau abaixo
do que sua ordem natural. Assim, Malkuth, o reino astral, se manifesta à
consciência como o mundo físico, uma ilusão. Para o ser humano, a 'tikkun' tem
dois aspectos: cumprimento dos mandamentos e meditação mística. A vida pura
pode ser estabelecida em termos dos 613 mandamentos ou injunções encontrados na
Torah (O número é significativo, pois 6 se refere aos poderes da Natureza e 13
é um a menos do que 2 x 7, o número da perfeita unidade ascendente e
descendente, enquanto que 6 + 1 + 3 = 10, o número Pitagórico da completude e perfeição
cósmicas). Cada mandamento tem um sentido literal, alegórico e espiritual.
Enquanto que cada ser humano contém mais ou menos da luz superna associada a
uma das sete hierarquias ou raízes de luz, correspondendo aos sete vasos
danificados, é impossível cumprir todos os mandamentos em uma vida comum. Assim,
todos os seres humanos são envolvidos na 'gilgul', reencarnação, na qual cada
alma progride para a 'tikkun' interna, a restauração através do aperfeiçoamento
gradual, e as 'gilgulim' ou reencarnações tomadas em seu conjunto trabalham
para a restauração do cosmos.
A prece é tornada eficaz através
de 'kavvanah', a intenção mística, quando é uma meditação profunda sobre a
natureza e sobre a necessidade por unidade cósmica. Ao mesmo tempo, é a reunião
das forças da restauração, a subida da alma para sua Fonte divina através da
contínua purificação e da continuidade da consciência espiritual, e a fonte da
magia. A prece deveria sempre ser voltada para dentro e para cima, em direção
ao Divino, de modo que não se torne uma tentativa degradada, embora poderosa,
de tentar manipular o mundo. A prece, portanto, é um esforço espiritual de
focalizar a vontade no todo, cujo 'afflatus' será a compaixão e a benevolência,
assim como uma poderosa corrente elétrica que circula em uma espiral ascendente
(combinando 'iggul ve-yosher,', círculo e linha) cria um campo magnético que
tende a alinhar em torno de si mesmo entidades suscetíveis de magnetização. No
processo de autotransformação, a pessoa une os Sephiroth em sua apropriada
ordem elevada, contribuindo para a 'tikkun' do cosmo, e dissolvendo as
'parzufim' de modo que o Adão Kadmon pristino e primordial se manifeste na
consciência, apontando para o sempre não-manifesto Ain-Soph. Porque a meditação
baseada na autropurificação ética é uma força poderosa para o bem universal,
sua sombra é igualmente poderosa. Daí que os 'dibbukim', os demônios obsessores
da inversão e da magia negra, serão reais enquanto o cosmo não for uma harmonia
perfeita. Entre os ensinamentos mais secretos de Luria estava a doutrina do
'ibbur', o ensinamento de que almas muito avançadas em encarnações que foram
cheias de justiça poderiam desfrutar de experiências nos mais altos Sephiroth,
de modo que não reeencarnariam completamente como indivíduos, mas antes
iluminariam aqueles que reencarnam. Entretanto, esta doutrina desafiava tanto
as concepções ordinárias sobre a individualidade que os discípulos de Luria não
ousavam divulgá-la em sua inteireza.
Issac Luria recusou-se a deixar
seus ensinamentos seminais por escrito. Quando seus discípulos solicitaram que
o fizesse, ele respondeu: "É impossível, porque todas as coisas estão
inter-relacionadas. Mal posso abrir minha boca para falar sem sentir como que o
mar rompendo seus limites e inundando tudo. Como então eu expressaria o que
minha alma recebeu, e como poderia colocá-lo em um livro?" A despeito de
sua recusa em dar a seus ensinamentos um fórum público, a pureza de seu caráter
e sua visão compassiva se tornaram conhecidos em todos os centros de estudo
místico no Egito, Itália e Europa Central. Muitos de seus discípulos mais
próximos se reuniram, depois de sua morte, em torno de Hayyim Vital, e Vital
escreveu muitas das doutrinas que podiam ser reduzidas a palavras. Por fim, as
idéias de Luria seguiram sua reputação, e durante dois séculos elas eletrizaram
e transformaram a religião popular Judaica e afetaram profundamente os
pensadores do fim da Renascença. Enquanto que suas instruções individuais sobre
meditação não podiam ser transmitidas, uma vez que variavam de acordo com o
caráter e temperamento de cada discípulo, o espírito de sua obra interior em
prol da restauração é descoberto em uma leitura intuitiva de cada uma de suas
preces litúrgicas, ainda em uso hoje em dia.
"Com tua compaixão multiforme,
unifica meu coração,
e o coração de todo teu povo
para que amem e venerem teu Nome.
"E ilumina nossos olhos
na luz de tua Torah,
pois em ti está a fonte da vida:
em tua luz nós veremos a luz".