"Enquanto vivemos nas
sombras não podemos ver o próprio sol, pois como disse São Paulo enxergamos
obscuramente através de um espelho. Mesmo assim a sombra é iluminada pelo sol
de modo a percebermos as distinções entre todas as virtudes e toda a verdade
que são de valor para nossa condição mortal. Mas se havemos de nos tornar unos
com a luz do sol devemos seguir o amor e esquecer de nós mesmos no
"Sem-Caminho", e então o sol atrairá a nós, com nossos olhos cegos,
para dentro de seu fulgor, onde possuiremos a unidade com Deus... Em Sua
benevolência Ele quer ser todo nosso: então Ele nos ensina a viver nas riquezas
das virtudes. Em Seu toque interno todos os nossos poderes nos abandonam, e
então sentamos sob Sua sombra, e Seu fruto é doce para nossos sentidos, pois o
fruto de Deus é o Filho de Deus, a Quem o Pai faz nascer em nosso espírito.
Este Fruto é tão infinitamente doce aos nossos sentidos que não podemos nem
engolí-lo e nem assimilá-lo, mas antes é Ele quem nos absorve em Si mesmo e nos
assimila em Si mesmo".
A
Pedra Faiscante, XI
Jan Van
Ruysbroeck
A Europa do século XIV
testemunhou o declínio da Idade Média e o primeiro fulgor da Renascença.
Enquanto que a reorganização do papado, o crescente poder secular dos príncipes
e a força emergente de algumas cidades emprestava algum lustro régio a uns
poucos centros de riqueza e cultura, o período não era promissor para o homem
comum. Em grande medida preso nas terras feudais ou em ofícios hereditários, e
com pouca esperança de educação fora da igreja, o indivíduo comum levava uma
vida empobrecida e precária. Os papas, exilados em Avinhão desde 1309 até 1377,
colocaram em movimento as complexas causas que resultaram nos excessos do
papado renascentista e na Reforma. Os camponeses se revoltaram em Flandres e na
França, só para serem duramente reprimidos. Entre instabilidades econômicas
irrompeu a Guerra dos Cem Anos (1347-1453), na mesma época em que a Peste Negra
cobrava seu triste tributo. A organização da Igreja decaía enquanto a corrupção
se alastrava e o extremismo religioso florescia. Não obstante, o caos político,
a decadência social e a degradação espiritual forneceram uma arena para a
ressurgência de uma autêntica visão mística em uma constelação de iluminados:
Meister Eckhart, Richard Rolle, John Tauler, Henry Suso, o autor da Nuvem do
Desconhecido, Catarina de Siena, Walter Hilton, os Amigos de Deus, Juliana de
Norwich e os Irmãos da Vida Comum. Jan van Ruysbroeck nasceu no início deste
turbulento período e morreu no advento da Renascença italiana, estendendo-se
sua vida por quase todo o século.
Embora Jan van Ruysbroeck fosse
apreciado em seu tempo e através da influência de muitos discípulos, pouco se
conhece de sua vida. Isto só em parte se deve à sua reticência em falar de si,
pois aqueles que o conheciam bem concordavam que sua vida foi despida de
grandes eventos. Determinado, ele participou dos assuntos do mundo durante
muitos anos, mas de uma forma em que não chamasse a atenção para si mesmo. Para
Ruysbroeck a vida real era vivida nos planos internos; o resto era uma questão
de dever obrigatório. Ruysbroeck nasceu em 1293, na vila de onde ele tirou o
seu nome, situada entre Bruxelas e Hal. Ele viveu toda sua vida dentro da
província de Brabante. Foi educado por sua devotada mãe, que considerava a sua
vontade forte e aventurosa acima de seu poder de orientação, embora sua própria
piedade serena e amor incondicional deixasse uma impressão permanente em seu
filho. Com onze anos Ruysbroeck partiu - alguns dizem que fugiu - para
Bruxelas, onde encontrou seu tio Jan Hinckaert, Cânon da Catedral de S. Gudule.
Aparentemente Hinckaert reconheceu em Ruysbroeck as mesmas profundas promessas
espirituais que se agitavam em seu próprio peito, pois imediatamente tomou o
menino sob seu cuidado, e, junto com seu companheiro íntimo Francis van
Coudenberg, formaram uma associação para toda a vida.
Hinckaert pagou os estudos de
Ruysbroeck na escola de Bruxelas, onde ele estudou o trivium e o quadrivium
- gramática, dialética, retórica e música; aritmética, geometria e astronomia.
Ruysbroeck falava o thiois, um dialeto germânico que evoluiu para o
atual flamengo, e assim ele teve de aprender latim. Embora ele se saísse bem em
todos os estudos e firmasse uma sólida base no conhecimento medieval, seu
interesse e talento estavam na teologia. Ele absorveu, talvez indiretamente,
Platão, Plotino, Dionísio Areopagita e Agostinho. Alguns historiadores crêem
que ele foi até Colônia e aprendeu os ensinamentos de Meister Eckhart e a
metodologia de Alberto Magno. Ele passou a ver a logomaquia escolástica como vã
e os outros estudos como distrações. Seu coração governou sua cabeça de modo
que ele veio a desejar nada além da Divina Sabedoria, e no devido tempo seus
estudos filosóficos e teológicos deram origem a intensas meditações. Nesta
altura a reputação de Ruysbroeck no estudo e piedade natural se haviam
espalhado para além de sua vila natal, e sua mãe veio ter com ele em Bruxelas. Já que não podia viver na casa do Cânon Hinckaert, ela se tornou uma béguine,
uma irmã de uma ordem mendicante. Ruysbroeck freqüentemente a visitava na béguinage,
e quando, alguns anos mais tarde, ela morreu, em diversas ocasiões ela o
visitou em sonhos vívidos, para dar-lhe bons conselhos e encorajamento
espiritual.
Na altura de seus 24 anos, em
1317, Ruysbroeck foi ordenado padre e colocado sob a jurisdição eclesiástica de
Hinckaert. Nesta época, Hinckaert e Coudenberg haviam resolvido seguir uma vida
espiritual disciplinada. Eles distribuíram sua modesta riqueza entre os pobres
e se retiraram para uma casa simples só com o mínimo necessário para a vida.
Ruysbroeck foi profundamente afetado pelo seu exemplo e logo se juntou a eles.
Durante vinte e seis anos Ruysbroeck serviu como padre em S. Gudule, realizando os sacramentos e ministrando junto ao povo. Exceto por um incidente,
ele trabalhava com diligência e silêncio, e aqueles a quem ele beneficiava o
consideravam caloroso e compassivo, embora um solitário em todos os aspectos.
Não obstante, ele observava cuidadosamente a natureza humana. Ele se afligia
com a degradação da igreja e do clero de um lado, e de outro com as tendências
a posições extremadas entre o povo oprimido pelas instabilidades da época. Ele
escreveu atacando bispos e prelados que viajavam com luxo. Em uma ocasião ele
disse que "os negócios progridem, o dinheiro aflui para sua bolsa e as
almas não são tocadas". Os padres pediam recursos na Catedral, mesmo que a
Igreja já os sustentasse. Vendo isso, e vendo o clero quebrando todos os votos,
o leigo era compreensivelmente cínico e vulnerável a arrivismos
pseudo-espirituais. Os Cristãos perdiam o "gosto pelo serviço do
Senhor".
"Vejam - para estas pessoas
o mosteiro é uma prisão e o mundo é um paraíso. Pois eles não têm prazer em
Deus ou na beatitude eterna".
A igreja estava viciada pela sua
própria corrupção, em parte porque ela havia tornado o Divino tão remoto pela
insistência em uma distinção completa entre Criador e criatura. A reação entre
o povo freqüentemente encontrava expressão em uma afirmação extremada da
imanência, que incluía glossolalia, emocionalismo, desafiadora amoralidade e
panteísmo. Durante seu tempo de serviço como padre na Catedral, Ruysbroeck
protestou apenas uma vez. Um grupo difuso conhecido como Irmãos do Espírito
Livre pregava que aqueles sobre quem descera o Espírito já eram divinos e,
portanto, não estavam sujeitos a códigos de conduta humanos. Uma mulher chamada
Bloemardinne assumiu a liderança deste movimento e fazia alegações extravagantes.
Além de reivindicar poderes sobrenaturais e proféticos, ela se dizia
acompanhada de dois serafins. Ela sustentava que o "amor seráfico"
substituía todos os votos e ritos, e traduziu esta doutrina em um erotismo
cavalheiresco. Ruysbroeck ficou horrorizado e atacou suas idéias em uma série
de panfletos. Este panteísmo egoísta e unidimensional, dizia ele, confundia
imagens toscas do Divino com a autêntica experiência mística, e assim rejeita
como disciplina inútil a prática e os votos, e encoraja a indulgência em todas
as tendências. Embora tanto os tratados de Bloemardinne quanto as refutações de
Ruysbroeck estejam hoje perdidos, a história registra reações variadas. Foram
escritas canções ridicularizantes contra Ruysbroeck, e dele se zombou pelas ruas.
Com o tempo a disputa feneceu, deixando Ruysbroeck livre para sua rotina
diária.
Em 1343 os três companheiros
espirituais resolveram se retirar do tumulto do mundo e morar em algum
eremitério remoto. João III, Duque de Brabante, há muito os respeitava por sua
vida simples e de bom grado cedeu-lhes a posse de um velho pavilhão de caça que
havia servido como eremitério. Groenendael ou Le Vau-vert (O Vale verde) estava
localizado no centro da floresta de Soignes, que recebera seu nome
(originalmente Sonien) de um antigo centro de culto ao Sol. Lá os três irmãos
viveram por cinco anos sem serem incomodados. A sinceridade de sua iniciativa,
sua calma virtude e sua radiante jovialidade em circunstâncias difíceis
gradualmente atraíram muitos seguidores sérios. Enquanto que alguns vinham em
busca de conselho espiritual, outros vinham para ficar e procuravam orientação.
Este desenvolvimento imprevisto fez sua vida informal insustentável em uma
época em que a Igreja se preocupava com associações espontâneas de tendências
heréticas, e assim a Inquisição expandia suas atividades. Depois de cuidadosa
deliberação, o grupo adotou a Regra dos Cânones Agostinianos. Ruysbroeck se
recusou a ser preboste, um ofício que recaiu sobre Coudenberg. Ruysbroeck
aceitou a posição de prior, mas Hinckaert, temendo que sua idade avançada lhe
impedisse de seguir a Regra, separou-se de seus amigos e se retirou para uma
cela na floresta, onde morou até sua morte.
A necessidade de ensinar os
irmãos novos do Priorado de Groenendael, o expansivo silêncio da floresta e a
ativa vida interior de Ruysbroeck se uniram para obrigá-lo a falar e escrever.
Ele desejava transmitir a quintessência da "vida supra-essencial"
como uma prática e modo de vida abertos a todos os seres humanos. Ele rejeitou
o latim como veículo de seu discurso e escolheu em seu lugar o seu próprio
dialeto, a despeito de sua pobreza em termos espirituais e filosóficos. Durante
as três décadas seguintes ele compôs pelo menos onze primorosos tratados de
instrução espiritual. O Tabernáculo Espiritual interpretava o
tabernáculo Israelita estabelecido por Moisés no deserto como um arquétipo da
vida espiritual. Em Os Doze Pontos da Verdadeira Fé deu uma
interpretação mística do Credo dos Apóstolos. Seus trabalhos mais sistemáticos
e elaborados são O Reino dos Amantes de Deus, e O Adorno da Boda
Espiritual, que tratam do desenvolvimento da alma. Ele deixou instruções
detalhadas sobre ascetismo e misticismo como um autêntico modo de vida porque
ele sabia por experiência própria que uma pessoa inclinada a elevações se
arrisca a ser atraída para um ou outro abismo ou ficar presa em um dos planos
de consciência. Sempre insatisfeito com sua expressão escrita, ele desejou dar
explicações sempre mais lúcidas, até que a frutificação de sua maturidade
encontrou expressão no Livro da Pedra Faiscante, no Livro da Verdade
Suprema e no As Doze Béguines.
O princípio inicial e onipresente
da vida mística - que para Ruysbroeck é a vida real, a vida no espírito - é o
amor intensamente experimentado no interior, e expresso como ajuda amigável
exterior. No As Doze Béguines ele escreveu:
"Aqueles que seguem o
caminho do amor
São os mais ricos dos viventes:
São ousados, francos e
destemidos,
não têm aflições nem
preocupações,
pois o Espírito Santo carrega todos
os seus fardos.
Eles não procuram aparências
exteriores,
nem desejam nada que o homem
estima,
não ostentam uma conduta
especial,
e passariam por homens bons como
quaisquer outros".
Todas as práticas necessárias
provêm do mais profundo amor, e não são elas que o originam. Sem um amor que
brilhe para todos os seres humanos, a prática e a disciplina se tornam, na
melhor das hipóteses, excentricidades, e na pior, formas distorcidas de
egoísmo. Assim, um ser humano espiritual, um verdadeiro Cristão, é em primeiro
lugar um homem bom e zeloso, e em segundo um homem interiorizado e espiritual.
Ele se torna um homem elevado e que vê a Deus, e então se torna "um homem
expansivo para com todos". Quando alguém tem estas quatro qualidades,
pode-se dizer que se tornou perfeito. Esta quádrupla fundação estabelecida
sobre o diamante do amor constitui a base e a substância da vida espiritual
como apresentado no O Livro da Pedra Faiscante.
Dados estes requisitos para a
realização do Divino, Ruysbroeck ensinou como eles são adquiridos. Um ser
humano se torna bom através de três meios: uma consciência purificada através
do auto-exame e diligência esclarecida; obediência a Deus, às regras da Igreja
e às próprias convicções, todas reivindicando igual obediência; e desempenho da
ação com o Divino em mente, já não havendo razão outra para empreender ou
finalizar a ação. Uma consciência limpa produz discriminação impessoal e
concede à vontade um exercício próprio, e a tríplice obediência bloqueia o
orgulho e auto-importância de um lado, e a tendência a encontrar escusas e
autojustificação de outro. Agir em nome do Divino diminui a atração exercida
pelo mundo. Também há três requisitos para se tornar interiorizado. O primeiro
de todos é a libertação do coração em relação às imagens, o que significa que
ele já não pode ser atraído por nada - objetos, pessoas, sentimentos ou idéias.
Em segundo lugar, a pessoa deve ganhar "liberdade espiritual" em
relação aos seus desejos, esquecendo todos os amores menores em troca de um intenso
anelo pelo Divino, que é o único objeto digno de amor incondicional. Em
terceiro lugar a pessoa deve desejar a união com Deus, o que requer a
dissolução até mesmo das imagens sagradas, "pois Deus é um Espírito de
quem ninguém pode fazer para si mesmo uma imagem verdadeira". Este é o
início da vida no espírito, não o seu mundo.
"O homem deve mergulhar
naquela Nudez sem imagens que é Deus; esta é a primeira condição, e o
fundamento, de uma vida espiritual".
Os dois primeiros elementos do
indivíduo espiritual dizem respeito à reordenação de sua atitude para com o
mundo e a reconstituição de sua natureza psíquica; o outro diz respeito à via
interna, transcendental, da qual muitos recebem chamados, outros poucos a
provam, e ainda menos aprendem a vivê-la plenamente. Existem três requisitos
para ser um homem que vê a Deus:
"O primeiro é o sentimento
de que a base do mundo é um abismo, e ele deve possuí-lo desta forma; o segundo
é que seu exercício interior deve ser desprovido de fórmulas; o terceiro é que
seu recolhimento deve ser uma fruição divina".
Quando uma pessoa de fato
experimenta a união com o Divino, a união que inclui a Deidade e o indivíduo é
revelada como abismal - sem dimensão finita, completamente escura, um vazio no
que diz respeito a imagens e o mundo. Neste sentido, o indivíduo que vem a
viver no Divino morre para si mesmo e para o mundo. A Divina Unidade é o Divino
Abismo, onde a pessoa fica nua (desprovida de qualidades) e sem imagens (sem
pensamento discursivo), o que constitui o mais interno centro do seu próprio
espírito.
"Lá ele encontra revelada
uma Luz Eterna, e nesta Luz ele sente a eterna demanda pela Divina Unidade, e
ele sente ser ele mesmo um eterno fogo de amor, que deseja acima de tudo ser
uno com Deus. Quanto mais atende a esta demanda, mais a sente... e assim
pode-se ver que a Unidade interior de Deus não é nada mais do que o Amor
insondável... e portanto devemos todos alicerçar nossas vidas sobre um abismo
insondável, para que possamos mergulhar eternamente no Amor e nos precipitarmos
na Profundeza insondável".
Deste ponto de vista, uma regra
de vida pode ser adotada com grandes e duradouros benefícios, mas uma vida de
meditação não pode ser ensinada. Um indivíduo que tenha chegado a este pináculo
de experiência espiritual não só atingiu uma meta desejada ou adquiriu uma
característica excepcional: ele passou por uma transmutação de sua natureza.
Embora tenha seguido o caminho para o abismo interior, agora ele é um
"Sem-Caminho", sem motivo, intenção, maneira ou direção em qualquer
sentido temporal ou categórico. Sua existência consciente é um espaço
transcendente chamado Deidade, um estado iluminado incompreensível para o
intelecto discursivo. Assim, ele recebe uma pedra faiscante com um novo nome
inscrito sobre si, que somente quem a recebe pode conhecer. Esta pedra é o
Verbo Eterno como Ele se manifestou a ele. Cada um se aproxima do Divino de seu
próprio modo e assim recebe um nome diferente, mas todos que o fizeram se
purgaram do pecado. O pecado tem menos a ver com os atos do que com os motivos,
pois os dons divinos podem ser usados tanto para a virtude como para o erro.
Dentro desta psicologia
espiritual, Ruysbroeck distinguiu cinco tipos de pecadores e três companheiros
do Divino. Entre os pecadores, o primeiro tipo consiste daqueles que são
mundanos e desprezam as boas obras; eles sofrem pela multiplicidade do coração.
O segundo tipo realiza boas obras e ama a justiça, embora condescenda no erro
voluntariamente. O terceiro grupo são os descrentes, os que têm uma fé pequena
ou errônea (a fé deve ser no Divino e em suas próprias naturezas internas, e
não só nos dogmas). O quarto tipo são desavergonhados e desprovidos de
sensibilidade moral. O quinto são externamente puros de modo que o mundo os
julga santos, mas seu motivo é errado, pois buscam um fim efêmero. Nenhuma
destas condições é predestinada ou inata, e assim todos os pecadores podem
resgatar sua dignidade humana e um sentido de sagrado dentro de si mesmos. Não
obstante, há gradações entre aqueles que se voltam para o Divino. Os
mercenários de Deus seguem o que consideram ser ordens divinas, mas o fazem por
amor-próprio. Temem perder a promessa do céu e temem ainda mais o inferno. A
graça Divina é compaixão ilimitada, e assim o medo do inferno surge só em
decorrência do amor-próprio. Este medo é justificado de um modo paradoxal e
invertido, pois é o próprio amor-próprio quem produz o inferno. O servo fiel
venceu este medo porque entregou tudo ao Divino, e assim entregou a sua própria
individualidade, demonstrando o primeiro nível da genuína fé. Suas ações são
resultado do amor por Deus.
O interiorizado ou amigo secreto
de Deus vai além do motivo do amor e ao mesmo tempo o engloba. Ele abandonou o
mundo completamente, e seu coração já não mais conhece divisão. Para o
observador externo ignorante ele parece não fazer nada, porque ele não pode
agir de modos influenciados por imagens e motivos mundanos. Na parábola de
Marta e Maria, Jesus louvou ambas por sua devoção. Marta ilustra o serviço
fiel, mas Maria recebeu o elogio maior porque era uma amiga secreta, uma
verdadeira contemplativa. Para Ruysbroeck, contudo, o homem meditativo existe
além da análise por padrões mundanos, mas ele não esquece suas obrigações para
com a humanidade. Fugir dos deveres para com a humanidade, que podem todos ser
reunidos sob a rubrica do amor divino e traduzidos em serviço altruísta, é
iludir a si mesmo: o amigo secreto permanece um fiel servidor. Embora os amigos
internos experimentem o afflatus da Presença Deífica, ainda preservam
uma sutil imagem de si mesmos e da Deidade. "Eles não podem por si mesmos
e por sua própria atividade penetrar na Nudez sem imagens". Mantendo algum
fragmento de sua individualidade, não passam para o "Sem-Caminho".
Os filhos ocultos de Deus - a
suprema possibilidade de conquista para o homem - transcendem todas as imagens,
incluindo qualquer imagem de si mesmo e do Divino. Como a gota desaparecendo no
abraço consumidor do mar, nada se perde exceto a imagem do que é real. Esta
imagem, embora da natureza mais sutil e mais purificada, é em última instância
falsa, e deve ser eliminada. O filho oculto se aproxima da Deidade sem
atributos e portanto descobre que a Deidade é da mesma maneira desprovida de
atributos. A imagem do Divino não era nada mais do que uma projeção da auto-imagem.
Desnudado, o indivíduo mergulha no Abismo Divino, que é o infinito, o ígneo
oceano da Vida Eterna.
"Se pudéssemos renunciar a
nós mesmos e a todo o egoísmo em nosso trabalho, deveríamos, com nosso espírito
nu de imagens, transcender todas as coisas, e sem intermediários ser conduzidos
pelo Espírito de Deus até a Nudez... Quando transcendermos a nós mesmos, e nos
tornarmos, em nossa ascensão para Deus, tão simples que o amor nu das alturas
possa nos tomar, onde o amor abraça o amor, acima do exercício de qualquer
virtude - isto é, em nossa Origem, de Onde nascemos espiritualmente - então
cessamos, e nós e toda nossa individualidade morre em Deus. E nesta morte nos tornamos filhos ocultos de Deus, e descobrimos uma nova vida em nosso
interior: e esta é a vida eterna".
Assim, Jan van Ruysbroeck viveu
uma vida gentil e amigável, ensinando uma mensagem de grande dificuldade
precisamente porque era simples e sem qualificação. Mesmo quando se tornou
fraco ajudava a todos que chegavam, incluindo Poor Clares e Geert Groote, que
fundaram os Irmãos da Vida Comum. Certa noite sua mãe lhe apareceu em um sonho
e lhe disse que ele morreria antes do Advento. Assim avisado, ele insistiu em
ser levado para a enfermaria comum, onde imediatamente sucumbiu a uma febre. Duas
semanas mais tarde, ele chamou os irmãos junto a si, encomendou-se à sua
memória e, sorrindo, passou sem sofrimento para a existência desencarnada, com
a idade de 88 anos, em 2 de dezembro de 1831. Diz-se que Groote soube
imediatamente da morte de Ruysbroeck e que os sinos de Deventer tocaram
sozinhos. Ele apareceu em visões para aqueles discípulos que enterraram o corpo
da "mais doce flor monástica". Embora suspeito de heresia e
panteísmo, Ruysbroeck entrou na mesma linha sagrada de heróis espirituais que
oferecem ajuda e esperança a todos os seres humanos. Seu brilho entrou naquele
Brilho sobre o qual ele amava escrever:
"Este brilho é tão grande
que o amante contemplativo, sobre o chão em que repousa, não vê nem sente nada
exceto uma Luz incompreensível; e apesar desta Nudez Simples que engloba todas
as coisas, ele se descobre e sente a si mesmo como sendo esta mesma Luz através
da qual ele vê e nada mais... Benditos os olhos que vêem assim, pois eles
possuem a vida eterna".
O Adorno da Boda Espiritual