O CRISTIANISMO ESOTÉRICO
ou
OS MISTÉRIOS
MENORES
ANNIE
BESANT
3ª Impressão
The Theosophical Publishing House
Adyar, Chennai
(Madras), Índia
Reimpresso em 1914
***
"Ao procedermos à
contemplação dos mistérios do conhecimento, havemos de aderir à celebrada e
venerável regra da tradição, começando pela origem do universo, apresentando
aqueles pontos da contemplação física que é necessário
termos como base, e removendo quaisquer obstáculos que possam haver no
caminho; de modo que o ouvido possa ser preparado para a recepção da tradição da
Gnose, sendo limpo de ervas daninhas o solo e preparado para o plantio do
vinhedo; pois há um conflito antes do conflito, e mistérios antes dos
mistérios". São Clemente de Alexandria
"Que a amostra baste para os que tem ouvidos. Pois não se requer desvelar o mistério,
mas apenas indicar o que é suficiente". São Clemente de
Alexandria
"Quem tiver ouvidos, que ouça". São Mateus
PREFÁCIO
O objetivo deste livro é sugerir
certas linhas de pensamento sobre as profundas verdades subjacentes ao
Cristianismo, verdades geralmente consideradas de modo superficial, e mui
freqüentemente negadas. O generoso desejo de dividir com todos o que é precioso,
de disseminar amplamente verdades inestimáveis, de não excluir ninguém da
iluminação do conhecimento, resultou em um zelo indiscriminado que vulgarizou o
Cristianismo, e tem apresentado seus ensinamentos sob uma forma que
freqüentemente repele o coração e aliena o intelecto. O mandamento de "pregar o
Evangelho a todas as criaturas" (Marcos, XVI, 15) " embora
reconhecidamente de autenticidade duvidosa " tem sido interpretado como
proibindo o ensino da Gnose só a poucos, e aparentemente ignorou o dito menos
popular do mesmo Grande Instrutor: "Não deis o que é santo aos cães, nem lanceis
vossas pérolas aos porcos" (Mateus, VII, 6).
Este sentimentalismo espúrio " que se
recusa a reconhecer as desigualdades óbvias de inteligência e moralidade, e por
isso rebaixa o ensino do altamente evoluído para o nível alcançável pelo menos
evoluído, sacrificando o mais elevado ao menos elevado de um modo que prejudica
a ambos " não tinha lugar no viril bom senso dos Cristãos primitivos. São
Clemente de Alexandria diz incisivamente, após aludir aos Mistérios: "Mesmo
agora eu receio, como é dito, "lançar as pérolas aos porcos, para que não as
pisoteiem, e se voltem contra nós e nos despedacem". Pois é difícil exibir as
palavras realmente puras e transparentes a respeito da verdadeira Luz aos
ouvintes suínos e despreparados" (Clemente de Alexandria, Stromata, livro
I, XII " Clarke"s
Ante-Nicene Christian Library).
Se o verdadeiro conhecimento, a
Gnose, há de formar parte novamente dos ensinos Cristãos, só poderá sê-lo com as
antigas restrições, e a idéia de o rebaixarmos às capacidades dos menos
evoluídos deve definitivamente ser abandonada.. Somente
pelo ensino acima do nível de compreensão do pouco evoluído pode ser aberto o
caminho para uma restauração do conhecimento arcano, e o estudo dos Mistérios
Menores deve preceder o dos Maiores. Os Maiores jamais serão publicados através
de livros; eles só podem ser transmitidos de Mestre a discípulo, "da boca para o
ouvido". Mas os Mistérios Menores, que são o desvelar parcial de verdades
profundas, podem ser restaurados agora mesmo, e um volume como este tenciona
delineá-los, e apresentar a natureza dos ensinamentos que devem ser
dominados. "Onde só são dadas sugestões, a tranqüila meditação sobre as verdades
sugeridas com discrição faz que seus contornos se tornem visíveis, e a luz mais
clara obtida com a meditação continuada aos poucos as apresentará mais
completamente. Pois a meditação aquieta a mente inferior, sempre engajada no
pensamento sobre objetos externos, e só quando a mente inferior fica tranqüila
ela pode então ser iluminada pelo Espírito. O conhecimento das verdades
espirituais deve ser obtido assim, a partir de dentro, e não de fora, do
Espírito divino cujo templo nós somos" (I Coríntios, III, 16), e não de
um Instrutor externo. Estas coisas são "discernidas espiritualmente" por
aquele divino Espírito interior, aquela "mente de Cristo" da qual fala o
Apóstolo (ibid., II, 14-16), e esta luz interna é lançada sobre a mente
inferior.
Este é o caminho da Sabedoria Divina,
da verdadeira TEOSOFIA. Ela não é, como alguns pensam,
uma versão diluída do Hinduísmo, ou do Budismo, ou do Taoísmo, ou de qualquer
religião particular. Ela é tão verdadeiramente Cristianismo Esotérico como é
Budismo Esotérico, e pertence igualmente a todas as religiões, e a nenhuma com
exclusividade. Esta é a fonte das sugestões feitas neste pequeno volume,
para o auxílio daqueles que buscam a Luz " aquela "verdadeira Luz que ilumina
todos os homens que vêm ao mundo" (João, I, 9),
embora a maioria ainda não tenha aberto seus olhos para ela. Ela não traz a Luz.
Apenas diz: "Vêde a Luz!". Assim ouvimos. Ela apela somente aos poucos que
anseiam por mais do que os ensinamentos exotéricos lhes dão. Pois
ela não é dirigida para aqueles que estão satisfeitos com os ensinamentos
exotéricos, pois por que o pão deveria ser forçado aos que não têm fome" Para
aqueles que têm fome, possa ela provar-se pão, e não pedra.
CAPÍTULO I
O Lado Oculto das
Religiões
Muitos, talvez a maioria, que virem o
título deste livro, de imediato objetarão, e negarão que haja qualquer coisa
valiosa que possa ser descrita corretamente como "Cristianismo Esotérico".
Existe uma idéia amplamente disseminada, e além disso
muito popular, de que não existe essa coisa de um ensino oculto em conexão com o
Cristianismo, e que "Os Mistérios", sejam Menores ou Maiores, foram uma
instituição puramente Pagã. O próprio nome dos "Mistérios de Jesus", tão
familiar aos ouvidos dos Cristãos dos primeiros séculos, soaria com um choque de
surpresa nos de seus sucessores modernos, e, se mencionado como denotando uma
instituição especial e definida na Igreja Primitiva, provocaria um sorriso de
incredulidade. Na verdade tem se tornado um motivo de gracejos que o
Cristianismo não possua segredos, que o que quer que tenha a dizer o diz para
todos, e o que quer que tenha a ensinar, ensina para todos. Suas verdades são
supostas ser tão simples que "um caminhante, embora tolo, não possa enganar-se
com elas", e o "Evangelho simples" se tornou uma frase feita.
É necessário, portanto, provar
claramente que pelo menos na Igreja Primitiva o Cristianismo não ficava nem uma
vírgula atrás das outras grandes religiões no fato de possuir um lado oculto, e
que ele guardava, como tesouro inestimável, os segredos
revelados em seus
Mistérios somente a uns poucos escolhidos. Mas antes de fazermos isto será bom
considerarmos toda a questão do lado oculto das religiões, e averiguarmos por
que um tal lado deve existir se uma religião há de ser
forte e estável; pois assim sua existência no Cristianismo parecerá uma
conclusão natural, e as referências a ele nos escritos dos Padres Cristãos
parecerão simples e naturais em vez de surpreendentes e ininteligíveis. Como um
fato histórico, a existência deste esoterismo é demonstrável; mas pode ser
demonstrado também que intelectualmente é uma necessidade.
A primeira questão que devemos
responder é: Qual é o objetivo das religiões" Elas são dadas ao mundo por homens
mais sábios do que as massas do povo ao qual são outorgadas, e têm o propósito
de estimular a evolução humana. A fim de fazer isto efetivamente elas devem
atingir os indivíduos e influenciá-los. Mas os homens não estão todos no mesmo
nível de evolução, a evolução poderia ser figurada como uma escala progressiva,
com homens em todos os estágios. Os mais altamente evoluídos estão muito acima
dos menos evoluídos, tanto em inteligência como em caráter; as suas capacidades
de entender e de agir também variam em cada estágio. Portanto, é inútil dar a
todos o mesmo ensino religioso; aquilo que ajudaria o
homem intelectualizado seria inteiramente ininteligível para o estúpido,
enquanto que aquilo que lançaria o santo em êxtase deixaria o criminoso
inabalado. Se, por outro lado, o ensinamento adequado para auxiliar o não
inteligente é intoleravelmente cru e tosco para o
filósofo, enquanto que aquilo que redime o criminoso é completamente
inútil para o santo. Mesmo assim todos os tipos (de pessoas) precisam de
religião, de modo que cada um possa se alçar a uma vida mais elevada do que
aquela que está levando, e nenhum tipo ou nível deve ser sacrificado a nenhum
outro. A religião deve ser tão graduada como a evolução, senão falhará em seu
objetivo.
A seguir vem a questão: De que modo
as religiões procuram estimular a evolução humana" As
religiões buscam desenvolver as naturezas moral e intelectual, e auxiliar a
natureza espiritual a desabrochar. Considerando o homem como um ser complexo,
elas procuram tocá-lo em todos os pontos de sua constituição, e portanto trazer mensagens adequadas para cada um,
ensinamentos adequados às mais diversas necessidades humanas. Os ensinamentos
devem portanto ser adaptados a cada mente e coração a
que são endereçados. Se uma religião não alcança e adestra a inteligência, se
ela não purifica e inspira as emoções, terá falhado em seu objetivo, até onde
isso envolver a pessoa buscada.
Ela assim não apenas se dirige à
inteligência e às emoções, mas procura, como foi dito,
estimular o desabrochar da natureza espiritual. Ela responde àquele impulso
interno que existe na humanidade, e que está sempre impulsionando a raça para
diante. Pois fundo no coração de todos " amiúde suplantada por situações
transitórias, amiúde submersa debaixo de interesses e ansiedades prementes "
existe uma contínua busca por Deus. "Assim como o cervo busca pelas fontes
d"água, assim busca" (Salmos, XIII,
1) a humanidade por Deus. A busca às vezes é interrompida durante algum
tempo, e o anelo parece desaparecer. Fases são recorrentes na civilização e no
pensamento, daí que este grito do Espírito humano pelo Divino " buscando sua
fonte assim como a água busca seu nível, para tomar um exemplo de Giordano Bruno
" este anelo do Espírito humano por aquilo que lhe é semelhante no universo, da
parte pelo todo, parece aquietar-se, parece ter-se desvanecido; não obstante o
anelo reaparece e o Espírito lança o mesmo grito. Sufocado por algum tempo,
aparentemente destruído, mesmo que a tendência do momento possa ser esta, ele se
ergue de novo e novamente com persistência imorredoura, repete-se sempre e
sempre, não importa quantas vezes tenha silenciado; e assim prova-se constituir
uma tendência inerente à natureza humana, e portanto
uma parte constituinte inerradicável. Aqueles que declaram
triunfantes "Ora!, está morto!" o encontram face a face
de novo, e com a mesma vitalidade. Aqueles que edificam sem dar-lhe espaço vêem
seus edifícios tão bem construídos derrocar como se abalados por um terremoto.
Aqueles que o sufocam encontram as mais brutas superstições seguirem-se à
negação. É tanto uma parte integral da humanidade, que o homem terá
alguma resposta aos seus questionamentos; antes uma resposta falsa do que
nenhuma. Se ele não puder encontrar a verdade religiosa, ele abraçará o erro
religioso antes do que ficar sem religião alguma, e aceitará os ideais mais
toscos e incongruentes do que admitir a inexistência do ideal.
A religião, assim, satisfaz esta
ânsia, e tomando conta do constituinte humano que lhe dá surgimento, o treina,
fortalece, purifica e guia em direção ao seu fim próprio " a união do Espírito
humano com o divino, de modo "que Deus possa ser tudo em todos" (I
Coríntios, XV, 28).
A próxima pergunta com que nos
deparamos neste estudo é: Qual a origem das religiões" A isto foram dadas duas
respostas nos tempos modernos " a da Mitologia Comparada e a da Religião
Comparada. Ambas respaldam suas respostas em uma única base comum de fatos
admitidos. A pesquisa provou irrefutavelmente que as religiões do mundo são
marcadamente semelhantes nos seus ensinamentos principais, na existência de
Fundadores que apresentam poderes sobre-humanos e extraordinária elevação moral,
nos seus preceitos éticos, no seu uso de meios para entrar em contato com os
mundos invisíveis, e nos símbolos pelos quais expressam suas crenças principais.
Esta similaridade, chegando em muitos casos até a
identidade, prova " de acordo com ambas escolas " uma origem comum.
Mas sobre a natureza desta origem
comum as duas escolas estão em litígio. Os Mitologistas Comparados
pretendem que a origem comum seja a ignorância comum, e que as mais elevadas
doutrinas religiosas sejam simplesmente expressões refinadas das crenças cruas e
bárbaras dos selvagens, dos homens primitivos, a respeito de si mesmos e do seu
ambiente. O animismo, o fetichismo, o culto à natureza, o culto ao sol " estes
são os constituintes do barro primevo do qual brotou o esplêndido lírio da
religião. Um Krishna, um Buda, um Lao-Tsé, um Jesus, são altamente civilizados,
mas descendentes diretos do curandeiro dançante do selvagem. Deus é uma
fotografia compósita dos inumeráveis Deuses, os quais são personificações das
forças da natureza. E assim por diante. E é tudo resumido na frase: as religiões
são ramos de um tronco único " a ignorância humana.
A Religião Comparada considera, por
outro lado, que todas as religiões sejam originadas dos ensinamentos dos Homens
Divinos, que dão a diferentes nações do mundo, de tempos em tempos, as partes
das verdades fundamentais da religião que os povos são capazes de receber,
ensinando sempre a mesma moralidade, inculcando o uso
de meios similares, empregando os mesmos símbolos significativos. As religiões
selvagens " animismo e o resto " são degenerações, resultados da decadência,
distorcidos e atrofiados descendentes das verdadeiras crenças religiosas. O
culto ao sol e as formas puras de culto à natureza foram, em seus dias, nobres
religiões, altamente alegóricas, mas cheias de verdade e conhecimento profundos.
Os grandes Instrutores " como é proclamado pelos
Hinduístas, Budistas, por alguns que estudam a Religião Comparada, como os
Teosofistas " formam uma Fraternidade perene de homens que se elevaram para além
da humanidade, que aparecem em certas épocas para iluminar o mundo, e que são os
guardiães espirituais da raça humana. Esta visão pode ser resumida na frase: "As
religiões são ramos de um tronco único " a Sabedoria Divina".
Esta Sabedoria Divina é chamada de
Sabedoria, Gnose, Teosofia, e alguns, em diferentes eras do mundo, desejaram
enfatizar assim sua crença nesta unidade das religiões preferindo o nome
eclético de Teosofia, antes do que qualquer designação mais estreita.
O valor relativo dos argumentos das
duas escolas opostas deve ser julgado pela reunião das evidências apresentadas
por cada uma. A aparição de uma forma degenerada de uma idéia nobre pode
semelhar-se muito ao produto refinado de uma idéia grosseira, e o único método
de discernir entre degeneração e evolução seria o exame, se possível, de formas
ancestrais intermediárias e remotas. A evidência trazida pelos crentes na
Sabedoria é deste tipo. Eles alegam que os Fundadores das religiões, a julgar
pelo registro de seus ensinamentos, estavam muito acima do nível médio da
humanidade; que as Escrituras das religiões contêm preceitos morais, ideais
sublimes, aspirações poéticas, profundas asserções filosóficas, dos quais sequer
se aproximam em beleza e elevação os escritos posteriores nas mesmas religiões "
isto é, que o antigo é mais elevado do que o novo, em vez de o novo ser mais
elevado que o antigo -; que não pode ser demonstrado nenhum caso do processo de
refinamento e melhoramento suposto ser a fonte das religiões atuais, enquanto
que podem ser apresentados muitos casos de degeneração de ensinos puros; que
mesmo entre os selvagens, se suas religiões forma cuidadosamente estudadas,
muitos traços de idéias elevadas podem ser encontrados, idéias que obviamente
estão acima da capacidade dos próprios selvagens em produzi-las.
Esta última idéia foi desenvolvida
por Andrew Lang, que " a julgar pelo seu livro The Making
of Religion " deveria ser classificado como adepto da Religião
Comparada antes do que da Mitologia Comparada. Ele aponta para a existência de
uma tradição comum, a qual, alega ele, não pode ter
sido desenvolvida pelos selvagens por si mesmos, sendo homens cujas crenças
ordinárias são do tipo mais tosco e cujas mentes são pouco desenvolvidas. Ele
mostra, debaixo de crenças brutas e visões degradadas, elevadas tradições de um
caráter sublime, chegando mesmo a tratar da natureza do Ser Divino e Suas
relações com os homens. As deidades adoradas são, em sua maior parte,
verdadeiros demônios, mas por trás, para além de todos eles, existe uma
tênue mas gloriosa Presença acima de tudo, raramente ou
nunca nomeada, mas sussurrada como sendo a fonte de tudo, como poder, amor e
bondade, terna demais para despertar terror, boa demais para requerer preces.
Tais idéias manifestamente não podem ter sido concebidas pelos selvagens onde
são encontradas, e elas permanecem como testemunhos eloqüentes da revelação
feita por algum grande Instrutor " do qual geralmente é
detectável um vestígio de tradição " que era Filho da Sabedoria, e que comunicou
alguns de seus ensinamentos em uma era há muito passada.
A razão, e na verdade a justificação, da visão dos que assumem a Mitologia
Comparada é patente. Eles encontram em todas as direções formas inferiores de fé
religiosa, existindo entre tribos selvagens. Isto foi visto como acompanhamento
da falta geral de civilização. Considerando os homens civilizados evoluindo dos
não civilizados, o que seria mais natural do que considerar a religião
civilizada derivando da religião não civilizada" È a primeira idéia óbvia. Só um
estudo posterior e mais profundo pode mostrar que os selvagens de hoje não são
nossos protótipos ancestrais, mas são a prole
degenerada de grandes raças civilizadas do passado, e que o homem em sua
infância não foi deixado crescer sem treinamento, mas foi cuidado e
educado pelos mais velhos, de quem ele recebeu sua primeira orientação tanto em
religião como em
civilização. Esta visão está sendo substanciada por fatos tais como aqueles
abordados por Lang, e logo suscitará a pergunta: "Quem foram estes
mais velhos, dos quais são encontradas tradições em todo lugar""
Ainda prosseguindo em nossa pesquisa,
passamos à próxima questão: A que povos as religiões foram dadas" E aqui de
imediato chegamos a uma dificuldade com a qual todo Fundador de religião deve
lidar, aquela já mencionada envolvendo o objetivo primário da própria religião,
a estimulação da evolução humana, com seu corolário de que todos os graus da
humanidade em evolução devem ser considerados por Ele. Homens em todos os
estágios de evolução, do mais bárbaro ao mais desenvolvido; são encontrados
homens de elevada inteligência, mas também de mentalidade a mais
subdesenvolvida; em um local existe uma civilização altamente desenvolvida e
complexa, em outro, uma política crua e simples. Mesmo dentro de cada
civilização encontramos os tipos mais variados " o mais ignorante e o mais
educado, o mais pensativo e o mais relaxado, o mais espiritual e o mais brutal;
mesmo assim cada um destes tipos deve ser alcançado, e cada um deve ser ajudado
no estágio em que estiver. Se a evolução for uma verdade, esta dificuldade é
inevitável, e deve ser enfrentada e superada pelo Instrutor divino, senão Sua
obra será um fracasso. Se o homem está evoluindo como tudo em seu redor está
evoluindo, estas diferentes de desenvolvimento, estes variados graus de
inteligência devem ser uma característica da humanidade em toda parte, e devem
receber atenção em cada religião do mundo.
Assim somos trazidos face a face à
evidência de que não pode haver só um e o mesmo ensino religioso sequer para uma
só nação, muito menos para uma civilização que seja, ou para o mundo todo. Se
houver apenas um ensino, um grande número daqueles a quem seria endereçada escapariam inteiramente á sua influência. Se for
conformada àqueles cuja inteligência é limitada, cuja
moralidade é elementar, cujas percepções são obtusas, de modo que possa
ajudá-los e treiná-los, capacitando-os assim a evoluir, seria uma religião
completamente inadequada para aqueles homens, vivendo na mesma civilização, que
têm percepções morais finas e delicadas, inteligência brilhante e sutil, e uma
espiritualidade em
evolução. Mas se, por outro lado, esta última classe há de ser auxiliada, se à
inteligência há de ser dada uma filosofia que possa ser considerada admirável,
se as delicadas percepções morais hão de ser ainda mais refinadas, se à natureza
espiritual que desperta há de ser possibilitado que frutifique até a plenitude,
então a religião deve ser tão espiritual, tão intelectual, e tão moral, que
quando for pregada à primeira classe não tocará suas mentes ou seus corações,
para eles será como um rosário de frases sem sentido, incapazes de suscitar sua
inteligência latente, ou de dar-lhes qualquer padrão de conduta que os ajude a
evoluir para uma moralidade mais pura.
Olhando, então, para estes fatos a
respeito da religião, considerando seu objetivo, seus meios, sua origem, a
natureza e variadas necessidades dos povos a quem foi endereçada, reconhecendo a
evolução das faculdades espirituais, intelectuais e morais no homem, e a
necessidade de cada homem por um treinamento tal que lhe seja adequado para o
estágio de evolução em que chegou, somos conduzidos à absoluta necessidade de um
ensinamento religioso variado e graduado tal que atenda a estas diferentes
necessidades e ajude a cada homem em sua própria posição.
Existe ainda uma outra razão pela
qual o ensinamento esotérico é desejável a respeito de certas classes de
verdades. Este é eminentemente o fato a respeito desta classe que "conhecimento
é poder". A promulgação pública de uma filosofia profundamente intelectual,
suficiente para treinar um intelecto altamente desenvolvido e atrair a adesão de
uma mente excelsa, não pode prejudicar ninguém. Pode ser pregada sem hesitação,
pois não atrai o ignorante, que se afastará dela considerando-a seca, rígida e
desinteressante. Mas existem ensinamentos que tratam da constituição da
natureza, explicam leis recônditas, e lançam luz sobre processos ocultos, cujo
conhecimento dá controle sobre energias naturais, e capacitam seu possuidor a
dirigir estas energias para certos fins, do mesmo modo que o químico lida com a
produção de compostos químicos. Tal conhecimento pode ser bastante útil para
homens altamente evoluídos, e pode aumentar seu poder de servir a raça. Mas se
este conhecimento fosse publicado ao mundo, poderia ser e seria mal empregado,
assim como o conhecimento de venenos sutis foi mal empregado na Idade Média
pelos Borgia e por outros. Passaria às mãos de pessoas de poderoso intelecto,
mas de desejos descontrolados, homens movidos por instintos separativistas,
procurando o lucro para seus eus separados e descuidados do bem comum. Eles
seriam atraídos pela idéia de ganhar poderes que os colocariam acima do nível
geral, e poriam a humanidade à sua mercê, e correriam para adquirir o
conhecimento que exalta seus possuidores a uma posição super-humana. Com esta
posse, eles se tornariam ainda mais egoístas e confirmados em sua
separatividade, seu orgulho seria alimentado e seu senso de distanciamento
intensificado, e assim eles inevitavelmente seriam levados pela estrada que leva
ao diabolismo, a Senda da Mão Esquerda, cuja meta é o isolamento e não a união.
E não só eles sofreriam em sua natureza interna, mas também se tornariam uma
ameaça à Sociedade, que já sofre o suficiente nas mãos de homens cujo intelecto
é mais evoluído que sua consciência. Disto emerge a necessidade de ocultar
certos ensinamentos daqueles que, moralmente, ainda não estão prontos para
recebê-los; e esta necessidade pesa sobre todo Instrutor capaz de transmitir
este conhecimento. Ele deseja dá-lo àqueles que usarão para o bem comum, para
estimular a evolução humana, os poderes que o conhecimento confere; mas ele
deseja igualmente não ter parte alguma no dá-lo àqueles que o usariam para seu
próprio engrandecimento à custa dos outros.
Tampouco isso é um assunto teórico,
de acordo com os Registros Ocultos, que dão detalhes dos eventos aludidos no
Gênesis VI et seq. Este conhecimento, naqueles antigos dias e no
continente de Atlantis, foi dado sem nenhum requisito rígido a respeito da
elevação moral, pureza e altruísmo dos candidatos. Aqueles que eram
intelectualmente qualificados eram ensinados, assim como aos homens são
ensinadas as ciências comuns nos dias modernos. A publicidade que ora é exigida
tão imperiosamente foi dada então, com o resultado de que os homens se tornaram
gigantes em conhecimento mas também gigantes no mal,
até que a Terra gemeu debaixo de seus opressores e o grito de uma humanidade
arrasada ecoou através dos mundos. Então sucedeu-se a
destruição de Atlantis, o afundamento daquele vasto continente
debaixo das águas do oceano, do que alguns detalhes são dados nas Escrituras
Hebraicas através da história de Noé e o dilúvio, e, nas Escrituras Hindus, na
história do Manu Vaivasvata.
Desde aquela experiência do perigo de
permitir-se mãos impuras tocar no conhecimento que é
poder, os grandes Instrutores impuseram rígidas condições sobre pureza,
altruísmo e autocontrole para todos os candidatos àquela instrução. Eles
terminantemente recusam transmitir conhecimento deste tipo a quem quer que seja
que não se sujeite a uma rígida disciplina, planejada para eliminar a
separatividade de sentimento e interesses. Eles avaliam a força moral do
candidato ainda mais do que seu desenvolvimento intelectual, pois o próprio
conhecimento desenvolverá o intelecto, enquanto ele coloca um freio sobre a
natureza moral. É muito melhor que os Grandes sejam acusados pelo ignorante, por
Seu suposto egoísmo em reter o conhecimento, do que Eles terem de precipitar o
mundo em outra catástrofe Atlante.
Apresentamos muita teoria sobre a necessidade de um lado oculto em todas as religiões. Quando
da teoria passamos aos fatos, naturalmente perguntamos: Este lado oculto existiu
no passado, formando parte das religiões do mundo" A resposta deve ser uma
imediata e convicta afirmativa; todas as grandes religiões têm alegado possuir
um ensinamento oculto, e têm declarado que ele é o repositório do conhecimento
místico - ou oculto - teórico, e ainda mais do prático. A explicação mística de
ensino popular era pública, e a expunha como alegoria, dando a asserções e
histórias cruas e irracionais um significado que o intelecto pudesse aceitar.
Por trás deste misticismo teórico, assim como por trás do popular, existia além
o misticismo prático, um ensino espiritual oculto, que só era concedido sob
condições muito definidas, condições conhecidas e divulgadas, que deviam ser
preenchidas por todos os candidatos. São Clemente de Alexandria menciona esta
divisão dos Mistérios. Ele diz que depois da purificação "há os Mistérios
Menores, que têm alguma base de instrução e de preparação preliminar para o que
vem depois, e os Grandes Mistérios, através dos quais nada resta para aprender
do universo, mas só para contemplar e compreender a natureza e as coisas"
(Stromata, livro V, cap. XI. Ante-Nicene
Christian Library (A.-N.C.L), vol. XII).
Esta posição não pode ser considerada
controversa a respeito das antigas religiões. Os Mistérios do Egito eram a glória daquela terra antiga, e os mais nobres filhos
da Grécia, como Platão, foram para Saís e para Tebas para serem iniciados pelos
Instrutores de Sabedoria egípcios. Os Mistérios Mitraicos dos
persas, os Mistérios Órficos e Báquicos e mais tarde os semiMistérios Eleusinos dos gregos, os Mistérios da
Samotrácia, Cítia, Caldéia, de nome são familiares, senão pelo
menos como frases feitas. Mesmo nas formas extremamente diluídas dos Mistérios
Eleusinos, seu valor é mui altamente louvado
pelos mais eminentes homens da Grécia, como Píndaro, Sófocles,
Isócrates, Plutarco, e Platão. Eles eram considerados especialmente
úteis com relação à existência pós-morte, e o iniciado aprendia aquilo que
garantiria sua futura felicidade. Sopater alegou ainda que a Iniciação estabelecia uma afinidade da alma com a Natureza divina, e no
exotérico Hino a Deméter são feitas referências veladas ao santo infante,
Iacchus, e à sua morte e ressurreição, assim como eram apresentadas nos
Mistérios (vide o artigo "Mistérios", Encyclopaedia Britannica, 9ª ed.
inglesa).
De Jâmblico, o grande teurgo dos
séculos III e IV, muito pode ser aprendido sobre o objetivo dos Mistérios.
Teurgia era magia, "a última parte da ciência sacerdotal"
(Psellus, citado por T. Taylor em Iamblicus on the
Mysteries, p.343, nota na p. 23, 2ª ed.) e era praticada nos
Grandes Mistérios para evocar a aparição de Seres superiores. A teoria sobre
onde se baseiam estes Mistérios pode ser apresentada brevemente da seguinte
forma: Existe UM, antes de todos os seres, imóvel, habitando na solidão de Sua
própria unidade. D"AQUELE surge o Deus Supremo, o Auto-engendrado, a
Bondade, a Fonte de todas as coisas, a Raiz, o Deus dos Deuses, a Causa
Primordial, desdobrando-Se em Luz (Iamblicus, sic ante, p.
301). D"Ele brota o Mundo Inteligível, ou universo
ideal, a Mente Universal, Nous, e os Deuses incorpóreos ou inteligíveis
relacionados a ela. Dali surge a Alma Mundial, a que
pertencem "as formas intelectuais divinas que existem junto dos corpos
visíveis dos Deuses" (Ibid., p. 72). Então derivam várias hierarquias de seres
super-humanos, Arcanjos Arcontes (Regentes) ou Cosmocratores, Anjos, Gênios
[Daimons, no original " NT], etc. O Homem é um ser de ordem inferior,
aliado àqueles em sua natureza, e capaz de conhecê-los; seu conhecimento era
adquirido nos Mistérios, e conduzia á união com Deus (O artigo Mysteries
da Enc. Britannica tem a seguinte continuação no ensinamento
de Plotino [204-206 dC]: "O UM [o deus
Supremo citado antes] é exaltado acima de nous e das idéias;
transcende toda a existência e não é cognoscível pela razão. Permanecendo Ele
mesmo em repouso, como que irradia de sua própria plenitude uma imagem de Si
mesmo, chamada nous, e que constitui o sistema de idéias do mundo inteligível. A
alma por sua vez é a imagem ou produto de nous, e a alma por seu movimento toma
matéria corpórea. A alma deste modo olha para dois caminhos " para
nous, de onde se origina, e para a vida material, que é seu próprio
produto. O esforço ético consiste em repudiar o sensível; a existência material
é em si um estranhamento em relação a Deus... Para atingir sua meta última, o
próprio pensamento deve ser deixado para trás, pois o pensamento é uma forma de
movimento, e o desejo da alma é pelo descanso imóvel que pertence ao UM. A união
com a deidade transcendente não é tanto conhecimento ou visão, mas êxtase,
coalescência, contato. O Neoplatonismo é assim antes de tudo um sistema
de completo racionalismo; é pressuposto, em outras palavras, que a razão seja
capaz de mapear todo o sistema das coisas. Mas, porquanto Deus seja afirmado
estar além da razão, o misticismo se torna de certo modo o necessário
complemento do todo-abrangente racionalismo último. O sistema culmina em um ato
místico"). Nos Mistérios estas doutrinas eram expostas, "a progressão do UM, e a
regressão de todas as coisas para o UM, e a completa supremacia do UM"
(Iamblichus, sic ante, p. 73), e, mais ainda, estes diferentes Seres eram
evocados, e apareciam, algumas vezes para ensinar, algumas vezes, por Sua mera
presença, para elevar e purificar. "Os Deuses", diz Jâmblico, "sendo
benevolentes e propícios, concediam sua luz aos teurgos com abundância
generosíssima, chamando as almas deles para cima, para si mesmos,
buscando que se unissem a si mesmos, e acostumando-as, enquanto ainda estando em
corpos, a ser separadas dos corpos, e ser levadas diretamente ao seu princípio
eterno e inteligível" (Ibid., pp. 55-56). Pois "a alma, tendo uma vida dupla,
uma em conjunção ao corpo, mas outra separada de todos os corpos" (Ibid., pp.
118-119), e "é muitíssimo necessário aprender a separá-la do corpo, para que ela
possa unir-se aos Deuses por sua parte intelectual e divina, e aprender os
genuínos princípios do conhecimento, e as verdades do mundo inteligível"
(Iamblichus, pp. 118-119). "A presença dos Deuses, em verdade,
concede-nos saúde de corpo, virtude de alma, pureza de intelecto e, numa
palavra, eleva tudo em nós até sua própria natureza. Ela (a presença dos Deuses)
exibe o que não é corpo como corpo aos olhos da alma" (Ibid., pp. 95-100).
Quando os Deuses aparecem, a alma recebe "uma liberação das paixões, uma
perfeição transcendente, e uma energia inteiramente mais excelente, e participa
do amor divino e de uma imensa alegria" (Ibid. p. 101).
"Com isso ganhamos uma vida divina, e somos tornados em realidade divinos"
(ibid., p. 330).
O ponto culminante dos Mistérios era
quando o Iniciado se tornava um deus, seja pela união com um Ser divino fora de
si, seja pela percepção do Eu divino em si. Isso era chamado êxtase, e era um estado que o
Yogi indiano chamaria Samadhi, sendo posto em transe o corpo denso
e a alma liberta efetuando sua própria união com o Grande Ser. Este "êxtase não
é propriamente falando uma faculdade, é um estado da alma, que a transforma de
tal modo que então ela percebe o que antes estava oculto de si. O estado não era
permanente antes que nossa união com Deus fosse irrevogável; aqui, na vida
terrena, o êxtase não passa de um instante... O homem pode cessar de ser homem,
e passar a ser Deus; mas o homem não pode ser Deus e homem ao mesmo tempo"(G.R.S.Mead, Plotinus, p. 42-43).
Plotino declara ter atingido este estado "somente três vezes".
Também Proclo ensinou que a única
salvação da alma era retornar à sua forma intelectual, e assim escapar do "ciclo
de geração, das peregrinações multiplicadas", e atingir o verdadeiro Ser, "a
energia simples e uniforme do período de igualdade
[sameness, no original " NT], em vez do movimento
abundantemente errante do período em que é caracterizada pela diferença". Esta é
a vida procurada pelos iniciados por Orfeu nos Mistérios de Baco e Prosérpina, e
este é o resultado da prática das virtudes purificativas, ou catárticas
(Iamblichus, p. 364, nota na p. 134).
Estas
virtudes eram necessárias para os Grandes Mistérios, já que estavam
relacionadas à purificação do corpo sutil, no qual a alma atuava quando fora do
corpo denso. As virtudes políticas ou práticas pertenciam à vida comum dos
homens, e era requerido que existissem em certo grau antes que ele pudesse ser
candidato mesmo para uma Escola tal como a descrita antes. Então vinham as
virtudes catárticas, pelas quais o corpo sutil, o das
emoções e da mente inferior, era purificado; em terceiro lugar vinham as
virtudes intelectuais, pertencendo ao Augoeides, ou a forma
luminosa do intelecto; em quarto, as contemplativas, ou paradigmáticas, pelas
quais era realizada a união com deus. Porfírio escreve: "Aquele que age de
acordo com as virtudes práticas é um homem digno; mas o que age de acordo com as
virtudes purificativas é um homem angélico, ou também um gênio
[daimon, no original " NT] bom. Aquele
que atua de acordo só com as virtudes intelectuais é um Deus; mas o que age de
acordo com as virtudes paradigmáticas é o Pai dos Deuses" (G.R.S.Mead,
Orpheus, pp. 285-286). |