Na pergunta de H.G. Wells que serve de abertura ao livro
'The Loom of Language' , "de que modo a linguagem, escrita ou falada surgiu",
está implícita de certo modo a resposta à questão forma e linguagem. "O
implemento da linguagem é tão completo quanto o do aço ou da pedra. Seu uso
envolve conseqüências sociais", acrescenta Wells. "Produz coisas tanto quanto o
metal ou a máquina". Por outro lado, a forma é a síntese de uma relação
dialética de cujo núcleo emerge a linguagem. Aprofundando a questão, a forma é o
real, o concreto, a abrigar em seu bojo o invisível, componente simbólico ou
aura do qual o demonstrativo grego (teós é exemplo ao apontar para o real e
estabelecer na Antigüidade o acordo ou fundamento do numinoso na linguagem
enquanto representação do Ser.
Na relação entre forma e linguagem o simbólico é a base
de toda uma tradição místico-filosófica, da India, do Egito, da Grécia, das
comunidades arcaicas,onde o signo era a um tempo significante e significado. A
fundação do Ser processou-se de maneira a refletir o signo, a imagem e no signo
configurar-se a representação do que emerge da diferença, o análogo,
desdobrando-se o ordenamento da língua do qual resultou o código ou pressuposto
do discurso elevado à categoria de linguagem. Com o evento do alfabeto inicia-se
uma transição, cedendo à razão e à História o aspecto ritualístico de uma
simbologia ainda hoje visível nas escritas chinesa e japonesa ou no antigo
alfabeto hebraico do qual Eliphas Levi retirou o sentido antropológico de uma
inscrição hermética.
O avanço da Ciência, no Século XVIII, faz ressurgir
paradoxalmente a tradição esotérica, guardiã do culto da palavra, repercutindo
sobretudo no campo filológico as questões do conhecimento com o interesse do
então filólogo alemão Friedrich W. Nietzsche (1844 — 19OO) pelo início grego da
filosofia, de onde traduz alguns fragmentos, enfatizando aspectos de uma
arqueologia que apresenta surpreendente afinidade com as teorias da relatividade
de Albert Einstein. O filólogo converte-se em filósofo e tenta operar em toda
sua obra a restauração do mito. Nesta mesma época Ferdinand de Saussure
(1837-1913) faz estudos lingüísticos (as palavras sob as palavras) sobre o que
chamou de anagramas as palavras-tema encontradas na poesia indo-européia.
O retorno ao início grego da filosofia ao levantar a
questão lingüística reacende concomitantemente o antigo humanismo socrático
inspirado na inscrição do templo de Delfos Nosce te ipsum, o qual, se no Séc.
XVII motivara a Descartes a questão da dúvida metódica, a partir do Séc. XVIII
dá origem a uma inquietação existencial com repercussão nas artes, na política
e, sobretudo, na filosofia sob o reconhecimento tácito de teorias englobando
ciência e religião, arte e política, ética e estética, liberdade e necessidade,
etc., às quais se convencionou rotular de ideologias.
Admitindo-se a queda da filosofia denunciada por Pierre
Fougeyrollas em A filosofia em questão2 , a pretendida restauração do mito
empreendida por Nietzsche encontra a sua adequação intemporal no assimétrico, no
descontínuo, fundamentando uma queda no poético, que Michel Foucault busca
desvelar sob o critério epistemológico de uma arqueologia do conhecimento,
tomando por base as cinco similitudes. A queda prefigura, deste modo, a retomada
do fio invisível, o simbólico, com o qual se constroem os novos quadros da
representação cultural sob um critério estrutural de ampla repercussão,
derivando para o sociologismo antropológico de um Lukacs, para os estudos
fonológicos da Escola de Praga empreendidos via Saussure por Roman Jakobson,
cuja técnica dá origem à moderna terapia da palavra.
Desde o fim da idade arcaica até os nossos dias existe
todo um cortejo dos que inadvertidamente se alienaram, os "loucos" na acepção de
Foucault, permanecendo todos em sua teia na qual conseguem todavia resgatar o
intemporal certos do que advirá do (fim) início cujo prenúncio a física
einsteiniana demonstrou ao fundir tempo, espaço. velocidade em uma teoria que se
ajusta à voz profética do Dioniso anunciada por Nietzsche, aos sutras hindus via
Krishnamurti, todos convictos de um aqui e agora, de uma permanência no
incondicionado cujo pressuposto cosmológico é o de se conviver com a Natureza em
oposição à dialética heraclítica precursora da Lógica que coloca o absoluto do
Ser em constante ampliação e liberdade na História, segundo a fenomenologia
hegeliana.
Seria este o retorno à unidade restaurada, que Nietzsche
pressente ao falar da "alegre esperança de que o exílio da individuação pode ser
rompido com o nascimento de um terceiro Dioniso do qual a arte é a
indicação"?3
A queda da filosofia no poético precipita-se no sentido
de um encontro com o seu princípio, não mais no início grego e o projeto jônico
da totalidade do saber fundamentado primeiro na Natureza, depois no Logos, na
razão do discurso, mas na retomada empreendida por Shopenhauer na antiga
tradição que vem dos hinos védicos. Tal retomada sugere ao filósofo a noção de
uma espaço-temporalidade de cujo núcleo emerge a diferença para uma relação
dramática que se irradia em permanente comunhão com a beleza e a verdade.
Manifesta-se como um eco a repetir na "orelha da filosofia" a Palavra
antiga.
De uma entrevista de Jacques Derrida4 alguns tópicos
ajustam-se a essa teia de Penélope que são a memória, a voz e o discurso. Em seu
livro De la grammatologie, ao tentar a desconstrução do discurso filosófico
Derrida critica a escrita fonética do Ocidente em relação ao sistema
Iogocêntrico. Estabelece a divisão do Eu e a heterogeneidade da fonte ou origem
da Voz. "Se existe fonte, a fonte é outra e plural. A alteridade produz a Voz. A
origem ou fonte da Voz torna-se deste modo uma metáfora".
A presença da palavra no inconsciente produz a voz por
vibração da memória que, de modo indireto, atinge o mecanismo da língua. O
timbre é a voz ouvida antes na memória. O eco reproduz a Voz, tornando-se a
divisão do Eu unida por um instante ao que o divide, o espelho, que, na fonte, é
o próprio Eu. Então, o espelho na verdade é a representação do que nele se
manifesta em sua origem tal como a luz que só se ilumina por vibração das
moléculas do ar.' A sombra é o avesso dessa luz assim como a voz é espelho da
memória. A origem é o abismo da diferença. Só a beleza consegue igual à voz
capturar a vertigem desse abismo que leva ao delírio, ao fogo primordial, ao
foco abrasador.
Com Ovidio o mito de Narciso perde-se na duplicidade.
Valéry, Freud, Lacan, Derrida ocuparam-se do mito. Para os alquimistas a luz é
negra. A claridade é seu espelho. Todos nos repetimos no labirinto de espelhos
que nos multiplicam sem que nenhum Eu seja capaz de encontrar-se a si mesmo na
pluralidade que o representa. Por isso é que Homero faz Ulisses dizer que seu
nome é Ninguém. Nossa voz é apenas memória de uma pluralidade cuja origem se
perde na espiral do Tempo. Valéry, perturbado, diz: "Que o céu me proteja das
questões da origem".
Discurso é o desenrolar da forma na linguagem; é
manifestação do Ser na plurivocidade do significado. Assim, a imagem é espelho
do real que o signo aprisiona para o liberar do discurso. Pensar o signo é
refletir as figuras que o circundam. O signo é diacrônico enquanto símbolo,
enquanto imagem capturada ao real, é indicador de uma relação que se repete,
servindo de referência a um código que se estratificou e ao mesmo tempo se
renova no falar materno, que Chomski e a teoria lacaniana da linguagem concebem
como discurso do inconsciente. O recurso fônico utilizado pelos poetas reflete a
tradição da memória no exercício real da palavra. "A aliteração não é um ato
ocasional na poesia, nem as leis fônicas são arbitrárias na tradição da poesia
indo-européia" segundo descoberta de Saussure6, pois atendem a uma rígida
disciplina que os poetas se impõem a fim de preservar o uso da língua a nível
sincrônico, isto é, em oposição ao tempo e à História. Depois de Saussure, Roman
Jakobson desenvolve estudos na Escola de Praga sobre as Afinidades Fonológicas
entre as línguas, desencadeando-se a partir daí uma sucessão de abordagens com
reflexos na "etnologia, na mitologia e na psicanálise".'
Da
constatação dos anagramas indo-europeus à Gramática Gerativa, de Chomski,
passando por outros lingüistas, o som é sempre a matéria-prima, o fator de
articulação da voz que, ao modelar a imagem, recria de modo figurado o real,
gerando o signo, a forma, elementos da linguagem que expressam na verdade o
pensamento, manifestação primordial de uma arquitetura que não cessa de
processar-se, evoluindo do mito à História, do intemporal à temporalidade a qual
se dá no interior da mente, emergindo sob a forma ambígua de pensamento.
O núcleo da relação do signo é a priori uma
espaço-temporalidade que se manifesta no Ser em função do sagrado por toda uma
idade que não cuidava de outra relação senão a simbólica. Tal relação tinha por
fundamento a verdade. A simbólica implica uma iniciática que remete a arquê, de
onde a verdade emerge enquanto salvaguarda do Eu. O cogito cartesiano possui um
vínculo muito estreito com a ontologia socrática a qual assegura o emergir da
diferença em um universo que não comporta o vazio, o nada hegeliano oriundo da
dialética de Heráclito, que teria vivido cem anos após o evento do alfabeto e da
polis.
q emergir da diferença evolui do mito à filosofia,
do Oriente para o Ocidente numa lenta trajetória até precipitar-se enfim neste
crepúsculo do qual somos testemunhas. Até o Século V I I a.C. A arquê preservava
a diferença na simbologia dos mitos os quais constituíam o fundamento muitas
vezes milenar de uma civilização registrada por Hesíodo. A partir de então cessa
o tempo repetitivo e tem início a idade da razão. O logos heraclítico acolhe o
Ser da interpretação do discurso da temporalidade até precipitar-se a partir do
século XVII de nossa era na cientificidade radical deste final de século.
O período mitopoético da filosofia grega começa
aproximadamente com Tales de Mileto (625-558), indo até Demócrito de Abdera
(46O-37O) a.C., quando então a irrupção socrática se pronuncia em torno da
consciência enquanto núcleo do Ser. Assim, com Sócrates, o saber torna-se
certeza de não saber, surgindo a experiência como projeto de uma técnica de
produção. A forma, deste modo, adquire correspondência conceitual de produção na
medida em que se torna discurso metodológico, objetivando a matematização da
economia e contribuindo assim para um maior rendimento de produção.
Do nome (nume) ao número se processa, de modo abrupto, a
passagem da qualidade para a quantidade, onde a consciência do tempo confirma o
evento da moeda e do alfabeto, da polis e da História. Nome e nume, a palavra
cria a relação com o real, estabelecendo-se o acordo ou o pousar do aberto na
linguagem heidegueriana, que o logos recolhe. O número é a irrupção do numinoso
na temporalidade, preservando-se todavia o seu princípio de imperativo
categórico da unidade. Ao desdobrar-se da unidade, a pluralidade se configura na
incontável composição de uma totalidade que absorve de início a fantasia dos
cálculos e das figurações para desvelar-se enfim na conexão tripla de uma
categoria estrutural que, na epistemologia aristotélica, corresponde à
quantidade. A forma à qual se associa a produção constitui, para Platão, a
idéia, o incorpóreo e, como tal, a linguagem a discorrer sobre o modelo
tornando-o visível e, portanto, objeto de comemoração. A forma ou idéia,
preexistindo, deixa-se incorporar enquanto linguagem, sendo por isso mesmo
modelo na medida em que recorda aquilo que o signo indica, a imagem do
real.
As idéias seriam causas intemporais que, projetadas,
transformam-se em produção do saber, da cultura, na medida em que refletem a
origem ou princípio que determinou a avaliação criadora, ergo produtora do
saber. Esta é uma posição do apriorismo contra a escolástica, que Descartes
condenou, retomando o que julgou princípios verdadeiros da tradição socrática
que atribui à consciência. as verdades fundamentais.
A imagem, na origem, concede a noção de divisão do Eu,
que produz a seguir com a voz a certeza de que está sempre a emergir, a refletir
essa alteridade a qual, por sua vez, é sinal, na heterogeneidade da fonte, da
pluralidade. "A oposição do Eu, sua divisão, pressupõe uma fonte", assim
raciocina Derrida em sua entrevista a Lucette Finas, ao comentar a reflexão de
Valéry: "Havendo fonte, a fonte é outra e plural".
O eco e a voz correspondem no plano da escritura a essa
divisão que a linguagem artística captura ao resolver a ambigüidade do Eu o qual
somente através da linguagem se torna real, pois ali a fugacidade da imagem e da
voz torna-se prisioneira do que representa o Ser da linguagem, o signo, ou marca
da divisão do Eu transmutado em Código, que a memória renova com a
leitura.
Com a Ciência tecnê, manifesta-se o desdobramento do Ser
na composição do signo, evoluindo da arte ao saber, do mito ao conhecimento, do
rito à religião, da tragédia à comédia, início e fim de uma relação inesgotável,
pois aquele que se faz presente, a diferença, é o belo no sentido grego de luz,
energia que, com a representação, ao desenrolar-se a ação, mescla-se ao
simulacro da semelhança, à identidade. A mimesis ao desfazer a ação, e ao
refazê-la, compõe os atos, o belos atos do sacrifício, da paixão, ou drama
permanente que, em suma, é a representação do que é presente.
O signo corresponde ao sentido estrutural da diferença
incorporada à representação na medida em que reflete em sua capacidade a beleza,
o brilho contido na forma que o gesto e a voz prenunciam como manifestação ou
espelho do Ser. O gesto e a voz são as inscrições primordiais da linguagem. A
noção de pluralidade, por outro lado, é a origem do número, sinal a representar
a legenda contida na simbologia do tempo e do espaço. Nessa legenda é que
Pitágoras buscou desenrolar o saber em graus, todavia que se confinam a
simbologia iniciática, possibilitando no entanto às matemáticas progressos que,
na verdade, aprofundam o seu fundamento metafísico, cuja rede constitui a
simbologia do número na construção da forma.
A teoria da forma, originária da physis grega e das
primeiras cosmogonias, encontra na síntese aristotélica da tábua das categorias
- unidade, pluralidade, totalidade — sua formulação inicial, formulação
dialética a qual, passando por Kant na Crítica da Razão Pura reaparece como
episteme e doxa no movimento estruturalista francês sob um critério lingüístico
que repensa o fundamento da palavra.
Ferdinand de Saussure ao
observar a palavra-tema na poesia indo-européia atinge o núcleo da linguagem, no
período arcaico, quando então convergia para o signo a fonte do saber, e dali
espraiava-se a noção circular de espaço e tempo, a partir da qual se comemorava
a sacralidade teofânica dos grandes mitos. Tudo convergia para o encontro da
forma — imagem ou signo, ou símbolo — espelho do Ser da linguagem.
BIBLIOGRAFIA
1. Frederick
Bodmer, The Loom of Language,
George Allen & Unwin Ltd., London
2.
Pierre Fougeyrollas, La Philosophie en question, Tradução de Roland Corbisier,
Editora Paz e Terra
3. Nietzsche, Vida e Obra, In Col. Os Pensadores,
Abril Cultural
4. La Quinzaine Littéraire, N9 152, Paris,
France
5. Jean Pierre Bayard, Le Feu, Flamarion, Paris,
France
6. Saussure, Vida e Obra, Col. Os Pensadores, Abril
Cultural
7. Roman Jakobson, Vida e Obra, Col. Os Pensadores, Abril
Cultural
Revista Logos, Nº15