AS CRISES
NA VIDA DO HOMEM COMO OPORTUNIDADE PARA A FELICIDADE
Edimar Silva
(Membro da Sociedade Teosófica pela Loja Fênix, de Brasília-DF)
(Palestra apresentada em 13/02/1999, no Instituto Teosófico de Brasília, durante o
seminário "A Eterna Busca da Felicidade")
Comecemos nossa
abordagem desse tema buscando definir a palavra "crise", e podemos verificar que
o dicionário nos oferece 12 definições diferentes para essa palavra. Vejamos algumas
delas, obtidas no Novo Dicionário Aurélio (Editora Nova Fronteira), cujo sentido
interessa à nossa conversa:
- manifestação violenta e repentina de ruptura de
equilíbrio;
- manifestação violenta de um sentimento (crise de
raiva, por exemplo);
- estado de dúvidas e incertezas (crise religiosa,
crise moral)
- fase difícil, grave, na evolução das coisas, dos
fatos, das idéias (período de crise, crise familiar, crise literária, crise política,
crise agrícola, etc.)
- momento perigoso ou decisivo (crise histórica)
- tensão, conflito (crise diplomática, crise
internacional)
- deficiência, falta, penúria (crise de
mão-de-obra, crise do café)
- ponto de transição entre uma época de
prosperidade e outra de depressão e vice-versa.
Se formos fazer uma rápida análise dessas definições verificaremos que em todas elas
existe uma situação de falta de alguma coisa, seja falta de equilíbrio, de razão, de
alguma coisa de natureza material ou prática, etc. Apenas a última definição não tem
esse significado e, por isso, voltaremos a ela no final de nossa conversa. Um outro fator
comum às situações de crise e também àquelas que se enquadram nas definições acima,
é que todas elas envolvem algum tipo de sofrimento,
seja físico, moral, espiritual, sofrimento de grupos de pessoas, nações, etc. Sempre
que houver crise haverá sofrimento e, creio poder afirmar, sempre que houver sofrimento
haverá uma crise, mesmo que seja potencialmente.
Quem nasceu primeiro, a crise ou o sofrimento?! O sofrimento ou a crise?! A galinha ou o
ovo?! O ovo ou a galinha?! O ovo traz dentro de si uma galinha potencial e a galinha traz
dentro de si vários ovos potenciais. Portanto, o ovo e a galinha estão sempre nascendo
juntos. Com a crise e o sofrimento acontece algo semelhante, mas com uma diferença que
pode ser fundamental para nossas existências, porque quando começa uma situação de
sofrimento, nós temos ali, potencialmente, uma crise que poderá ou não desabrochar em
algum momento. Mas talvez consigamos atuar de maneira tal que aquele sofrimento se
mantenha dentro de determinados limites que não chegue a configurar uma crise, ou seja,
não escapa ao nosso controle. Aí teríamos o nascimento de um sofrimento e,
potencialmente, de uma crise, que não chega a se instalar. Se permitimos que esse
sofrimento cresça a ponto de fugir de nosso controle, teremos o nascimento de uma crise;
isso talvez possa ser caracterizado pela grande quantidade de energia que gastaremos na
tentativa de sobreviver e eliminar aquele problema, o que será um sofrimento muito maior
do que o do início da situação. Estou querendo mostrar que, se permitimos que a crise
se instale, virá junto com ela um grande sofrimento, no lugar daquele menor, com o qual,
talvez até conseguíssemos conviver e sobreviver.
Não sei se é correto afirmar que sofrimento e crise são a mesma coisa; mas, no mínimo,
os dois são amigos íntimos e costumam andar de mãos dadas. Ao que tudo indica, o
sofrimento gosta de abrir caminho e, depois, sentindo-se sozinho, traz a crise para lhe
fazer companhia; essa costuma ser a rotina de nossas vidas, pois, em maior ou menor grau,
sempre temos conosco elementos que nos fazem sofrer e, com frequência variável, deixamos
eles crescerem e tomarem conta de grande parte de nossas energias.
É necessário ser sempre assim? Essa é a questão básica que nos ocupará durante essa
conversa. Antoine de Saint-Exupéry no livro O Pequeno Príncipe (Editora Agir), relata
que esse queria levar um carneiro para seu pequeno planeta, na verdade um asteróide, e
indagou se os carneiros comiam arbustos; o narrador, que é o outro personagem da
história, diz que sim, os carneiros comem arbustos, e o príncipezinho afirma que, se é
assim, então os carneiros podem comer baobás. O narrador então argumenta que os baobás
são enormes, gigantescos e nem uma manada de elefantes seria capaz de destruí-los.
Sabiamente, o príncipe diz o óbvio, que, por ser óbvio é igualmente sábio : "Os
baobás, antes de crescer, são pequenos". E era nessa fase em que os baobás são
pequenos que o nosso personagem pretendia que o carneiro os comesse. Em seguida, ele conta
a história de um preguiçoso, que também morava em um asteróide e não tinha o
saudável hábito de fazer uma limpeza diária em sua morada, limpeza essa que consistia
em arrancar as ervas daninhas e, por isso acabou permitindo que três baobás vingassem e
tomassem conta da superfície do pequeno astro, não deixando que nada mais nascesse ali.
Três árvores tão grandes em um habitat tão pequeno, sugarão todos os nutrientes que
ali existirem, em situação análoga ao que acontece conosco quando deixamos prosseguirem
as situações insustentáveis, aquelas que consomem grande parte de nossas energias, para
podermos sobreviver em presença delas. No interior do asteróide sempre existiram
sementes de roseiras, de rabanetes e de baobás, entre outros vegetais, desejáveis ou
indesejáveis; somente uma vigilância constante permitiria que apenas os brotos das boas
sementes vingassem.
Penso que essa singela história ilustra muito bem o que acontece conosco com relação
aos problemas menores que muitas vezes permitimos crescer e que acabam se transformando em
crises. Temos dentro de nós as sementes para todo tipo de experiências, tanto as úteis,
como aquelas aparentemente inúteis, e devemos estar sempre atentos para que apenas as
primeiras brotem e cresçam. Isso não será conseguido, com perfeição, do dia para a
noite, mas, agindo de maneira adequada, poderemos fazê-lo sempre melhor.
No que foi dito acima está implícito que temos dentro de nós as sementes de situações
que nos trazem sofrimento e de outras que trazem experiências felizes. Se temos dentro de
nós as possibilidades de entrarmos em crise ou de controlarmos uma situação
desfavorável, por que deixarmos que um sofrimento perdure e escape ao nosso controle?
Devemos nos esforçar para que as situações de crise não nos dominem, buscando o
cultivo de determinadas práticas, tais como o entendimento das origens das referidas
situações. Inclusive, devemos nos abrir para a possibilidade de que as origens sejam
kármicas e, como consequência desse entendimento, poderá surgir uma aceitação dos
fatos e também um contentamento, que deve ser realmente o fruto do entendimento e da
aceitação e não algo imposto a nós mesmos, que só faz mascarar uma situação de
sofrimento por baixo de uma carapaça de alegria.
Existe uma infinidade de métodos e técnicas para nos livrarmos de nossas dificuldades,
desde métodos calcados em antigas filosofias e religiões, até os atuais livros de
auto-ajuda, as preces e invocações aos anjos, para que eles resolvam nossos problemas,
passando, também, por soluções mais materialistas, como, por exemplo, as viagens de
férias, as noitadas regadas a álcool, e outros tipos de sensações, mais fortes, ou
mais suaves. Buscamos todo tipo de experiência, como receita para nos fazer mais felizes
ou vivermos melhor. Observemos que a maioria dos caminhos oferecidos para a nossa
felicidade tem algumas características em comum, e a principal delas costuma ser o fato
de que as técnicas atacam os problemas, sem se preocuparem com a origem dos mesmos, com o
porquê deles terem surgido e crescido; só existe preocupação com o efeito, e nenhuma
com as causas.
De todas as correntes filosóficas ou religiosas o Budismo é a que mais se preocupa com o
sofrimento e é nele que tem seus fundamentos todo o edifício da filosofia budista;
quando o Príncipe Sidharta voltou ao convívio com os homens, do qual havia se retirado
após constatar que todos os seres eram sofredores, anunciou as bases do que viria a ser o
Budismo. Essas bases foram condensadas em quatro idéias, que talvez choquem à primeira
vista pela sua aparente simplicidade ou, como no caso da citação de O Pequeno Príncipe
feita anteriormente, pela sua obviedade, que também caracteriza sua sabedoria.
Essas quatro idéias são conhecidas como "As Quatro Nobre Verdades", que são
assim enunciadas:
- A verdade da existência do sofrimento
- A verdade da causa ou origem do sofrimento
- A verdade da cessação ou extinção do sofrimento
- A verdade do caminho para a cessação ou extinção
do sofrimento.
A constatação prática dessas verdades é, com certeza, o melhor roteiro para
melhorarmos nossa qualidade de vida, mas não significa que torna o caminho fácil.
Façamos rápidas considerações sobre elas.
A Primeira Nobre Verdade nos ensina que somos todos infelizes e insatisfeitos; estamos
sempre sofrendo, porque queremos o que não temos ou, temos o que não queremos; desejamos
estar próximos de quem ou daquilo que nos agrada e desejamos nos afastar daquilo que não
nos agrada. Praticamente, é essa dualidade que dirige nossas vidas. A Filosofia
Esotérica ensina que o mundo que percebemos é uma pequena parte de tudo o que existe, e
que ele é marcado pelas idéias de separatividade e de transitoriedade. Não vivemos o
mundo da Realidade, pois esse é não-condicionado e não sujeito à transitoriedade, ou
seja, nele as coisas não são passageiras como nós percebemos no mundo que nos rodeia. A
transitoriedade ou impermanência das coisas é que nos faz sofrer, porque não queremos
morrer, não queremos que as pessoas queridas morram, não queremos que o sorvete acabe,
não queremos que o bom filme termine, etc., mas, queiramos ou não, um dia tudo acaba. O
medo da morte nos acompanha diariamente, mas nem sempre o percebemos; o envelhecimento
não significa apenas a perda da beleza física, mas, também, a aproximação da morte, e
por isso não queremos envelhecer e sofremos na busca do rejuvenescimento.
A Filosofia Esotérica ensina que existe um mundo não-condicionado, que não depende das
coisas transitórias e efêmeras para existir e que nós não percebemos sua existência.
Essa falta de percepção de realidades mais plenas está na origem de todo nosso
sofrimento, porque, quando tudo é realmente pleno, não se necessita de coisas externas,
das quais somos dependentes no mundo da manifestação (alimento, afeto, etc.). A
Realidade plena só é percebida por faculdades mais sutis, que estão potencialmente
presentes em cada um de nós, mas que ainda não foram desenvolvidas, faculdades essas
mais refinadas que o próprio pensamento, que é nosso mecanismo mais sutil de
percepção. O pensamento separa as coisas para tentar compreendê-las e essa é a origem
do sofrimento. Sempre que queremos perceber a Realidade utilizando o pensamento e outros
meios de percepção ainda menos refinados, o que percebemos são apenas as coisas
mutáveis, perecíveis, e essa mutabilidade ou transitoriedade é a essência do mundo
manifestado em que vivemos, e se alguma coisa tem como essência a própria mutabilidade,
tal coisa não possui realidade em si. Assim sendo, se considerarmos que nós fazemos
parte desse mundo da manifestação, não somos, de determinado ponto de vista, reais,
pois o que é verdadeiramente real, ou aquilo que "é", sempre será, e por isso
é real, não é efêmero.
Existe um interdependência total no mundo em que vivemos; ele é o mundo dos fenômenos,
cuja Causa Única permanece inatingível para nós como aquela Realidade Absoluta. Tudo o
que existe aqui é, ao mesmo tempo, efeito de alguma causa anterior e causa de algum
efeito futuro. A nossa própria maneira de ver a vida é o resultado da educação que
tivemos, da religião que abraçamos, dos livros que lemos, das idéias que seguimos,
etc., e muitas vezes queremos que o mundo seja calcado nesses conteúdos que assimilamos
por julgá-los corretos. Mas o mundo é muito maior do que nós e, se não conseguimos
fazer com que uma pessoa siga o modelo que nós adotamos, muito mais difícil será o
mundo se moldar àquilo que desejamos, e por isso sofremos.
Entendamos que a nossa existência está fundamentada em coisas efêmeras, que por assim
serem, nunca satisfazem completamente e, por isso, estamos sempre insatisfeitos; mas,
dentro de nossas vidas existem os momentos de felicidade, e isso não é negado pelo Sr.
Buda; a felicidade pode acontecer a qualquer pessoa, tanto a nível material quanto
espiritual, e logicamente, quanto mais próxima a nossa felicidade estiver de nossos
níveis espirituais, mais plena ela será. A plenitude total nunca será atingida pela
satisfação de nosso sentidos com os mais diversos objetos que conseguimos para lhes dar
essa satisfação; nosso pensamento estará sempre atuando nesse processo, captando nossos
desejos físicos, emocionais ou afetivos e mentais ou intelectuais, identificando aquilo
que eles estão buscando; isso nos leva ao contínuo "vir-a-ser". Por esse
processo é que reencarnamos, buscando outras vidas para satisfação de desejos que não
foram satisfeitos, o que também pode ser entendido como uma busca de conhecimento dos
objetos do desejo. Este é o próprio processo de evolução do qual estamos participando.
O desejo é, talvez, o motivo do sofrimento humano mais próximo da nossa compreensão
limitada, e essa é a Segunda Nobre Verdade a causa do sofrimento; mas a causa
profunda de nosso sofrimento é outra. Dissemos anteriormente que somos seres sem
existência real, vivendo em um mundo irreal, porque todos os nossos princípios ou
componentes são formados a partir de "matéria emprestada" aglutinada em torno
de um núcleo de consciência que está buscando conhecimento dos planos materiais e o faz
através do difícil processo de desejar e satisfazer seus desejos. Quando cessamos de
existir no mundo da manifestação, que compreende os níveis físico, emocional e mental,
toda a matéria que utilizávamos será "devolvida" aos seus próprios níveis e
a consciência se recolherá aos planos mais sutis, enquanto aguarda uma outra
existência. Quando compreendermos isso pela nossa própria experiência, compreenderemos
também que estávamos vivendo no mundo da ilusão ou no mundo de maya, porque
todas as coisas, um dia, deixarão de existir na forma em que as conhecemos. Pode-se
afirmar que existem dois mundos aparentemente irreconciliáveis, mas que estão em um
constante processo de reencontro: o da Realidade e o da manifestação, que é também o
mundo de maya ou ilusão. Quem conhece a Realidade passa a viver acima da ilusão,
pois sabe o que "é", não necessita mais do que "não é", ou seja,
daquilo que é efêmero, e insatisfatório. O mundo da Realidade é o mundo de Vidyâ,
a Sabedoria, e o da manifestação é o mundo de avidyâ ou a ignorância.
Deduzimos que só sofre quem é ignorante, quem não possui Vidyâ. Avidyâ,
a ignorância ou falta de Sabedoria, é então a grande causa do sofrimento; como não
conhecemos, ou melhor, não nos lembramos das coisas reais, que verdadeiramente trazem a
satisfação plena, e, portanto, a felicidade, ficamos durante incontáveis vidas
perseguindo o que só satisfaz parcialmente. Isso, eventualmente, até proporciona
felicidade, mas é uma felicidade limitada pela transitoriedade inerente a todas as coisas
manifestadas. Quem atinge o estado de Vidyâ nada deseja ou rejeita, porque sua
existência está centrada num nível de consciência em que a Realidade é
"ser", e não "ter" ou "não ter"; esta pessoa está livre
do apego, que é uma consequência do desejo que nos leva a não querermos ficar privados
daquilo que gostamos ou que nos satisfaz de alguma maneira. Isto significa um duplo
sofrimento, pois sofremos quando não temos algo e, quando temos, sofremos por medo de
perder. Podemos começar a resolver esse problema com a aceitação prévia de que nada
nos pertence e que, um dia, mesmo que seja na morte, enfrentaremos a perda. Como
não sabemos quando virá esse dia, seria prudente que estivéssemos sempre preparados
para ele, ou seja, desapegados de todos os objetos ou pessoas julgamos nossos.
A consequência de se atingir Vidyâ é também a concretização da Terceira Nobre
Verdade, que é a cessação do sofrimento ou a cessação do sofrimento da existência, o
mesmo que o Nirvana. Nir significa em sânscrito não, e vana
significa cordão; nirvana é, então, a não existência de um cordão
que prenda, significando não estar preso ou estar liberto. Realiza-se o
Nirvana pela completa renúncia aos objetos do desejo, incluindo-se o desejo de novas
existências no mundo da manifestação. Esta renúncia nunca virá como algo que se
decide fazer e já está feito, porque, enquanto existir desejo para ser satisfeito, ele
deverá ser atendido ou compreendido, para que se possa transcendê-lo. Deve-se ter muito
claro o fato de que nada poderá ser aniquilado, da mesma forma que o fogo só se apaga
realmente quando o combustível acaba, pois se o apagamos antes, o combustível permanece
e bastará uma pequena fagulha para que volte a queimar. O desejo, em qualquer uma de suas
inúmeras modalidades, também é uma energia que deverá ser utilizada para que se
extinga. Vivemos em uma região do planeta onde, durante séculos, foi ensinado que
determinadas manifestações do desejo devem ser aniquiladas ou negadas a sua
satisfação. Logicamente não são todos os desejos que podem ser satisfeitos, mas,
usando um exemplo radical, as guerras só acabarão quando for entendido pelos governantes
que não existe nada que as justifique e então elas não serão mais desejadas; o desejo
desenfreado por riquezas só desaparecerá quando se compreender que basta que cada um
possua o necessário e forem criados mecanismos para que todos possam viver dignamente. Ou
seja, é necessário o conhecimento, por exemplo, das reais causas de uma guerra ou da
fome, como também das suas consequências, para que se resolva não mais guerrear e não
deixar que as pessoas morram sem alimento.
Estamos tentando demonstrar que é Vidyâ, a Sabedoria, que nos faz entender o
desejo e suas consequências, para em seguida pautarmos nossas vidas por condutas não
extremadas, na busca de satisfação. Este é um primeiro passo no sentido da eliminação
do desejo, e não ignorá-lo, simplesmente. O conhecimento das causas de nossos desejos
menores, bem como de que tudo aquilo que os satisfaz, não nos fará realmente felizes,
mas acabará por fazer com que nos desinteressemos e direcionemos nossas energias para a
busca da satisfação plena e verdadeira. Como consequência disso, Vidyâ, a
Sabedoria plena, fará com que compreendamos todo o mecanismo de desejo/busca-de-satisfação/novo
desejo/nova insatisfação, num processo que tende ao infinito, e fará com que
queiramos romper o cordão que nos prende ao processo, atingindo, então, o estado de
libertação, que é o Nirvana.
Daí, surge a Quarta Nobre Verdade, que nos indica O Caminho que leva à Cessação do
Sofrimento; este caminho é conhecido como o Caminho do Meio ou o Nobre Óctuplo
Caminho; seguindo-o estaremos fugindo de dois extremos. O primeiro extremo é a
auto-indulgência (achar correto tudo o que se faz para a satisfação de si mesmo),
conforto e prazer físico, o caminho próprio dos indivíduos que buscam a felicidade
através dos prazeres dos sentidos, trazendo apego às paixões exacerbadas, acarretando
sofrimento. O segundo extremo é o da auto-tortura, que nos leva à negação de nossas
necessidades e, também, ao sofrimento. Para que o som de um violino seja perfeito, suas
cordas não poderão estar muito tensas, pois isso fará com que elas terminem por
arrebentar; mas, também, não poderão estar muito frouxas, pois assim seu som será
desarmonioso. Isto exemplifica porque devemos fugir dos extremos: se nos jogamos com muita
pressa em um caminho de busca da libertação, negamos as necessidades que ainda não
foram transcendidas e, por isso, não nos libertamos; se não começamos a buscar este
caminho, ficaremos inertes e também não atingimos a libertação.
Os oito princípios do Nobre Óctuplo Caminho, que podemos entender como pontos de conduta
correta ou não-extremada, capazes de nos conduzir à libertação, são:
Os três primeiros princípios dizem respeito à conduta ética ou moralidade, os três
seguintes à disciplina mental e meditação e os dois últimos à introspecção e
sabedoria. A palavra correto ou correta, utilizada em cada um dos
princípios, dá o padrão a ser atingido em cada um deles, que é aquele equilíbrio
característico dos não radicais o Caminho do Meio. Esse padrão é estabelecido
pelas palavras "correto/correta" e não por "perfeito/perfeita"; elas
nos dizem que só podemos esperar perfeição de quem é capaz de manifestá-la em seus
atos e, no caso humano, devemos esperar o correto, ou seja, o necessário e possível,
aquela ação que produz harmonia, que nem sempre é perfeita; ou pode ser entendida,
ainda, como perfeita com relação às condições e capacidades de quem a executa. Se
não obedecermos a esse limite, começaremos a exigir perfeição de quem não pode
oferecê-la, inclusive de nós mesmos, e isto será fator causador de sofrimento, pois
criará expectativa por alguma coisa impossível de ser atingida e ansiedade em quem exige
e em quem está sendo exigido. A expectativa em relação às pessoas com quem nos
relacionamos e, de uma maneira geral, em relação à própria vida, muito comumente se
traduz em frustração, e, consequentemente, em sofrimento.
Temos aí um rápida apresentação do mais completo "manual para a libertação do
sofrimento". A simplicidade do que foi dito não deve dar a idéia de que é fácil
praticar tais princípios e deve-se mesmo esperar muita dificuldade, aparentes avanços e
retrocessos. Este método de avanços e retrocessos é o único que nos levará ao
conhecimento que liberta; cada avanço é uma pequena felicidade e cada retrocesso é um
novo sofrimento, quando não se sabe lidar com ele. Os princípios do Nobre Caminho
Óctuplo devem ser praticados na medida da capacidade individual, caso contrário não
seriam uma proposta de caminho do meio, e estaríamos forçando nossa estrutura física,
emocional e mental; para usar o exemplo já citado, esticando demasiadamente a corda do
violino.
Um ponto a ser compreendido sobre sofrimento e crises é que eles nascem do choque de
opostos, que podemos também definir como conflito. O homem é um conflito ambulante, já
que é formado por matéria e espírito, por razão e emoção, e tem o costume de dividir
as coisas em agradáveis e desagradáveis, certo e errado, etc. A nossa constituição a
partir de elementos de polaridades opostas faz parte de nossa condição de seres que
vivem no mundo do condicionado. Não é sábio colocarmos em evidência estes choques,
permitindo que eles se transformem em conflitos quando não sabemos equilibrar os opostos
e deixamos que um tente dominar o outro de maneira forçada ou artificial. Por exemplo,
toda religiosidade mal direcionada, conduzida com muita emoção e pouca razão, leva ao
fanatismo, capaz de gerar desde o afastamento de pessoas amigas, até às fatídicas
"guerras santas". Não existe religiosidade perfeita ou espiritualidade perfeita
em que um princípio destrua o outro; não existe espiritualidade com destruição ou
afastamento sumário daquilo que se opõe ao que julgamos ser o correto. Grandes crises,
que poderão ser pessoais, de grupos, de nações ou até étnicas, ultrapassando os
limites de nações e continentes, frequentemente nascem daí.
Mas, como devemos nos portar em um mundo fundamentado em princípios opostos, em que as
causas que podem levar ao conflito e, consquentemente, às crises, pululam dentro e fora
de nós? Parte de minha pessoa quer se espiritualizar, outra parte quer "chafurdar na
lama"; parte do mundo é pobre e me convida a ser altruísta e generoso, outra parte
do mundo me convida ao consumo de coisas desnecessárias e ao egoísmo. Com isto, como já
dissemos, estamos sempre em contato com fatores que podem gerar conflito e sofrimento.
Chogyam Trungpa, no livro Além do Materialismo Espiritual (Editora Cultrix), nos
recomenda que tenhamos senso de humor perante a vida; ele diz que nós nos levamos
demasiadamente a sério, como também às coisas que nos cercam. Assim, quando alguém se
opõe ao que penso, acho isto extremamente perigoso e quero acabar com as possibilidades
de ação de tal pessoa, quando, se ela estiver realmente errada, é só deixá-la seguir
seu caminho, que não irá muito longe. Ele propõe que quando estivermos em uma
situação de sofrimento ou de conflito, busquemos nos afastar mentalmente de tal
situação e tentemos vê-la de fora ou do alto, como se subíssemos em um edifício;
assim, poderemos perceber os fatos através de pontos de vista diferentes dos que
tínhamos até então e, talvez até consigamos entender o porque do que está ocorrendo e
tudo nos pareça ridículo e sem sentido.
Enquanto estivermos ocupados em apenas resolver o problema, ele tomará posse de toda a
nossa capacidade mental, não deixando espaço para entendermos os fatos e, então, tudo
parecerá extremamente sério e importante; nestas condições deixaremos de levar em
conta que tudo é passageiro, efêmero, inclusive aquele problema ou qualquer outro.
Bastará esta perspectiva bem entendida, bem assimilada, para minimizar boa parte de
nossos sofrimentos e de nossas crises. Se, pelo contrário, conseguirmos isolar nossa
mente, acalmar nossas emoções e relaxar nosso corpo, inclusive abrindo mão, na medida
do possível, de nossos instintos de defesa, poderemos utilizar a razão e até abrirmos
espaço para que nossos princípios superiores iluminem nossos pensamentos, permitindo a
compreensão do que está realmente acontecendo. A compreensão verdadeira nos mostrará
que os acontecimentos que nos levam às crises não são fatos isolados, que estão
ligados a causas passadas, levarão a efeitos futuros e têm que ser bem compreendidos e
bem resolvidos; portanto, não chegaremos a lugar nenhum lutando contra eles, permitindo o
nascimento de uma crise, mas pelo contrário, nos integrando a eles poderemos
compreendê-los e transcendê-los.
O senso de humor não significa uma alegria tola e falsa, mas uma capacidade para irradiar
alegria, contentamento e serenidade incondicionalmente, quaisquer que sejam os fatos que a
vida nos ofereça. Isto implica em termos aquela visão abrangente de todas as crises e
conflitos que, porventura, enfrentarmos vida a fora.
A felicidade poderá ser atingida no momento que soubermos viver a vida com todos os seus
conflitos, minimizando os efeitos das causas de possíveis sofrimentos e contornando as
crises quando surgirem; mas ela acontecerá mais facilmente se não permitirmos que as
crises se instalem. A felicidade total, porém, só virá quando conseguirmos ultrapassar
nossas preferências ou repulsas, porque assim teremos harmonizado as polaridades opostas
(mas complementares) que convivem em cada ser e em todo o universo. Não estamos nos
referindo à felicidade total, o Nirvana, mas, sim, de uma capacidade para viver bem,
apesar de termos sempre presentes, em nossas vidas, fatos que poderiam nos fazer sofrer;
não estamos falando, também, em hipocrisia, mas, sim, em uma certa frieza diante da
vida, frieza essa que não nos torna maus nem desumanos, mas não permite que fiquemos
abalados pelos fatos, bons ou ruins. Estamos falando de harmonia.
Talvez uma boa síntese para o trabalho de tornar as crises uma oportunidade para a
felicidade esteja no ditado popular que ensina a fazer limonada com os limões que a vida
nos oferece, porque os limões estão sempre sendo oferecidos, na forma de acontecimentos
que nos fazem sofrer. Quando aprendemos a lidar com eles, estamos fazendo a limonada, ou
seja, nos tornando mais sábios, percebendo um pouco mais a vida e as leis que a regem.
Quando compreendemos tais leis, tornamos a vida mais simples, mais fácil e mais leve, e
estaremos sendo mais felizes. Se não permitirmos que as sementes dos baobás brotem ou se
percebermos os seus brotos ainda pequenos e os utilizarmos de alguma maneira, estaremos
transmutando a natureza de alguma coisa que poderia ser muito prejudicial; se pensarmos
nos baobás como sendo nossas crises, poderemos transformá-los em lenha, cujo fogo
servirá ao necessário trabalho de purificação.
O ideograma chinês para o vocábulo "crise" é composto por duas idéias que,
aparentemente, se excluem mutuamente, que são as palavras "risco" e
"oportunidade". Podemos observar como exemplo, aqueles homens ávidos por ouro,
que foram para Serra Pelada, correndo o risco de contrair malária e outras doenças, mas,
tendo a oportunidade de ficarem ricos; possivelmente eram pobres e, por isso, sofriam e
estavam em crise. Assumiram então o risco, em troca da oportunidade de mudar suas vidas.
As crises estarão sempre nos rondando e cabe a cada pessoa, e somente a cada uma, a
responsabilidade de não permitir que elas se instalem; mas, quando encontram espaços em
nossas vidas, não devemos encará-las como eternas, pois como dissemos, elas terminarão
por passar algum dia. Se soubermos aproveitá-las como oportunidades de aprendizado,
poderemos aceitar a definição citada no início, que diz serem elas um "ponto de
transição entre uma época de prosperidade e outra de depressão e vice-versa"; ou
seja, as crises são verdadeiramente momentos de definição de nossos futuros, em que
escolhemos entre sermos felizes ou infelizes.
Após a
apresentação da palestra foram colocadas cinco questões para a platéia, que se
subdividiu em cinco grupos a fim de debatê-las; após isso, cada grupo apresentou suas
conclusões, que transcrevemos a seguir, juntamente com as respostas de outra folha que
nos foi entregue.
Pergunta: As causas para sofrimento e crise existem; sendo assim, é inevitável
que passemos pela experiência do sofrimento?
GRUPO "A"
- Sim, o sofrimento é inevitável. A forma como
lidamos com o sofrimento
é que o tornará mais doloroso ou não. O sofrimento é oportunidade para
abrirmos o leque da compreensão da vida. Quando fugimos da dor, maior
ela se torna, porque, na realidade, estamos fugindo do aprendizado.
GRUPO "B"
- Sim. É inevitável. Só aprendemos via sofrimento.
No entanto, poder-se-ia evitar o sofrimento e a crise, desde que tenhamos consciência das
ações e das relações de nexo causal entre causa e efeito.
GRUPO "C"
- Sim; cabe, porém, a alternativa de entender,
conviver e aceitar o sofrimento. A partir daí, pode deixar de ser inevitável.
GRUPO "D"
- Concluímos que as causas para o sofrimento existem
e que são criadas por nós. Em relação à questão sobre se o sofrimento é inevitável
ou não, alguns do grupo entenderam que é inevitável, que em todos os níveis existe o
desejo e aí o sofrimento é inevitável. Outros entenderam que o sofrimento é evitável,
de acordo com o grau de consciência no momento. Foi abordada a questão da compreensão
da situação, aceitação das coisas como são e, também, a questão que a falta de
compreensão aumenta e gera mais sofrimento. "Na vida se aprende pelo amor e pela
dor."
GRUPO "E"
- Sim, enquanto não nos libertarmos das causas e dos
efeitos do sofrimento.
GRUPO "F"
- Não. Depende de como nos relacionamos com essas
causas do sofrimento, para aprendizagem.
Pergunta: A lei do karma tornaria o sofrimento inevitável?
GRUPO "A"
- Sim, a lei do karma está sempre sendo complementada
pela lei do dharma, porque o dharma correto pode vir a neutralizar a reação advinda do
karma; nesse caso, não haverá sofrimento ou haverá uma diminuição considerável dele.
GRUPO "B"
- Não. Desde que se incorpore como aprendizado, o
arrependimento, a consciência, a ação correta até poderiam neutralizar o mau karma.
GRUPO "C"
- Entendemos que a lei do karma atua através do
sofrimento, quando o sofredor da Lei não chega a aceitar suas consequências com
espontaneidade. Aí ele é submetido compulsoriamente ao sofrimento, até aprender.
GRUPO "D"
- Através da compreensão, há eliminação do
sofrimento.
GRUPO "E"
- Não, quando o indivíduo estiver em harmonia com a
Lei.
GRUPO "F"
- Sim. Enquanto formos ignorantes.
Pergunta: É possível ser feliz sozinho ou sozinha? E se
for, de que maneira?
GRUPO "A"
- Sim. Através do auto-conhecimento e, também, da
compreensão da
impermanência que conduz ao desapego. Existe um estado de "estar só", que
surge após nos integrarmos amorosamente à vida e à natureza. Não existe
solidão, se estamos em relação contínua com tudo que a vida nos
apresenta.
GRUPO "B"
- Sim, desde que se esteja com a personalidade
integrada (físico / emocional / mental / alma).
GRUPO "C"
- Sim; através da compreensão/aceitação do todo em
nós e de nós no todo, o que nos desvela todas as características estruturais que nos
compõem.
GRUPO "D"
GRUPO "E"
- Sim, porque a felicidade é um estado de espírito.
Encontrando a Fonte da Felicidade dentro de si mesmo. É impossível estar totalmente só.
GRUPO "F"
- Não. É impossível ser feliz sozinho.
Pergunta: Como conciliar a busca por uma felicidade plena, que independa de fatores
externos a nós (alimento, afeto, lazer, etc.), com a grande dependência desses fatores,
que é parte de nossas vidas?
GRUPO "A"
- Através da harmonização dos diversos elementos
que constituem o nosso
momento presente. É necessário o percebimento, a aceitação da diversidade
destes elementos e, posteriormente, a integração deles num todo, para a
realização da felicidade plena.
GRUPO "B"
- Com a utilização adequada desses fatores externos,
isto é, como meio e não como fim
GRUPO "C"
- Estabelecendo pontes de conciliação que ajudarão
a diminuir aquela dependência. Ex.: trabalho, vontade, compaixão, humildade, etc..
GRUPO "D"
GRUPO "E"
GRUPO "F"
- Meditação. Não tem como separar a vida interna da
vida externa. Há que se conciliar estes fatores, para obter uma felicidade relativa.
Pergunta:
Para sermos felizes devemos nos preocupar em viver conforme todos os condicionamentos que
assimilamos (religião, cultura, educação, etc)? Por que?
GRUPO "A"
- Não, é necessário compreendermos nossos
condicionamentos e
mecanismos condicionadores trazidos por estas influências e nos
libertarmos delas. Descobrir a alegria e o contentamento que o "novo"
nos apresenta a cada momento de nossas maravilhosas vidas. Todos nós do
grupo acreditamos no fluxo perfeito da vida e amamos cada momento deste
fluir.
GRUPO "B"
- Não, porque os condicionamentos aprisionam e
violentam a liberdade (inclusive da Alma) e, portanto, comprometem a felicidade.
GRUPO "C"
- Discordamos. Não é imperativo que não se possa
conciliar os condicionamentos assimilados.
GRUPO "D"
GRUPO "E"
- Não, porque a felicidade só pode existir através
da libertação dos condicionamentos.
GRUPO "F"
- Não! Porque é preciso exercitar a nossa
consciência, o livre-arbítrio. Na vivência de uma crise/conflito, encontramos novos
padrões e normas para a sociedade na busca da felicidade.
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Este texto foi gentilmente cedido pela Loja Teosófica Fênix - Brasilia - DF.
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